terça-feira, 27 de setembro de 2022

Ecos de Kuala Lumpur

Semana passada ocorreu a 75 a reunião da ICANN, em Kuala Lumpur, Malásia. ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers) é o órgão sem finalidades lucrativas, sediado em Los Angeles-EUA, que desde 1997 assumiu funções da antiga IANA (Internet Assigned Numbers Authority), cuidando da raíz de nomes de domínio e da distribuição de números IP.

Nas reuniões da ICANN, há fóruns abertos e gerais de debate, e há discussões mais aprofundadas, nas organizações de suporte: o GAC (governos), o gNSO (domínios internet genéricos), o ccNSO (domínios de código de país), e a ALAC (de usuários em geral). Dentre os temas críticos que estavam na pauta, um tratou da visão geral do que se está armando em termos de legislação sobre ações e conteúdos na rede, e outro das possíveis ações contra “abuso em nomes de domínio”.

É importante tentar definir o que poderia ser caracterizado como “abusivo” dentro da função de nomes de domínio. Um nome de domínio é um apontador, uma forma mnemônico de se obter o identificador de um dispositivo ou conteúdo na rede (seu número IP). Apagar um apontador para algo, assim, não elimina nem o conteúdo problemático, nem formas de acessá-lo, visto que conteúdo continua no mesmo endereço IP.

Em que situações pareceria adequado remover um mnemônico, e quais efeitos colaterais que isso poderia provocar? Veja-se, por exemplo, quando o domínio, pela sutil troca de caracteres, objetiva levar o usuário a erro: um sítio de nome wikipedla.org, pode fazer um desatento achar tratar-se de wikipedia.org e, se o sítio falso for ainda uma imitação do verdadeiro o problema está criado. Dano mais sério ocorrerá no caso de serviços financeiros, por exemplo. É conhecida como “phishing”, essa “pescaria em água turvas”.

Aqui parece claro que a remoção do domínio evitaria o “phishing” mas, em outras situações, quando um nome de domínio leva a um conteúdo nocivo ou ilegal, eliminar o apontador pode ter o efeito de servir de alerta ao dono do sítio mal-intencionado, que tratará de migrar seu conteúdo e arrumar outro apontador. Outra situação em que remover um domínio pode atingir inocentes é quando ele aponta para uma coleção de conteúdos além do causador do problema. Seria como bloquear o apontador a um prédio de condomínio, porque um dos condôminos tem conteúdo inadequado.

Um conteúdo pode ser ilegal num país e legal em outros. Assim, a discussão sobre eliminar-se o domínio pode tornar-se mais complexa. Exceto em casos flagrantes, como o “phishing” mostrado acima, a decisão sobre a legalidade ou não de um conteúdo deve ser do sistema judicial nacional envolvido. Remover o apontador elimina uma facilidade de acesso, mas não redunda em real ação sobre o conteúdo em si. E arvorar em instâncias de decisão os que apenas operam serviços na rede é plantar sementes de futuros problemas.

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https://blog.apnic.net/2022/06/14/dns-abuse-trends/

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terça-feira, 13 de setembro de 2022

Internet, a Memoriosa

Segue a inescapável discussão sobre formas de proteger nossos dados pessoais, mas podendo usá-los racionalmente quando se tratar de interações e transações seguras. Os atores principais nesse processo são as construções feitas sobre a rede que, com seus méritos e suas mazelas, proporcionam-nos experiências da informação, comunicação e do novo comércio.

Em artigo recente, outro aspecto preocupante desse labirinto de dados foi evidenciado nos comentários durante a audiência pública sobre o estado da aquisição e agregação dos dados de usuários de plataformas. Dois dos principais engenheiros de importante operadora reconheceram que, mesmo com todo o suporte técnico, é muito difícil para eles apontar com exatidão tudo o que o sistema sabe sobre alguém. A própria ferramenta colocada à disposição dos usuários para que saibam das informações que o sistema tem sobre eles é insuficiente: há dados individuais que a ferramenta não identifica. Mesmo os responsáveis pelo sistema não conseguem apontar todos os dados de alguém, embutidos no emaranhado de informações coletadas ou inferidas. Eles reconheceram, aliás, um problema algo comum em sistemas informáticos complexos, criados rapidamente a muitas mãos: sequer há documentação completa sobre os módulos desenvolvidos: a única maneira de avaliar a potência e as características finas de funcionamento do sistema é a análise do próprio código escrito. A enorme quantidade de informação recolhida ou inferida pode ser inadministrável...

No conto de Jorge Luis Borges, “Funes, o Memorioso”, essa ilimitada capacidade de memorização é tratada de forma muito criativa. É a curta história de Irineu Funes, que após ficar paraplégico numa queda de cavalo, adquire a capacidade de memorizar absolutamente tudo. Funes, por exemplo, é capaz de descrever o que aconteceu num dia qualquer, minuto a minuto. Claro que, na própria descrição se gastará outro dia inteiro. Para Funes, cada objeto, pedra, folha, número, teria um nome próprio específico; “perturbava-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quinze (visto de frente)”. Diz-se que Ciro, rei dos persas, referia-se a cada um de seus milhares de soldados pelo próprio nome…

É fato que a internet, suas ferramentas e as construções que nela existem nos trouxeram um mundo em que, não apenas nada é esquecido, como podemos recuperar instantaneamente coisas de cuja existência sequer suspeitávamos. Mergulhados nesse infinito mar de dados e informações, não distinguimos o importante do fútil, o essencial do anedótico, o real do imaginado. Os que estudam a evolução do comportamento humanos deveriam fazer um esforço concentrado para examinar que inesperadas e incontroláveis consequências isso trará. Diz o próprio Borges: “somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos quebrados”.

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O caso citado da plataforma:

https://theintercept.com/2022/09/07/facebook-personal-data-no-accountability/

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Memória e Borges:

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160207_vert_fut_super_memoria_ml

https://super.abril.com.br/ciencia/dez-animais-classicos-criados-pela-imaginacao-humana/

https://www.ingenieria.unam.mx/dcsyhfi/material_didactico/Literatura_Hispanoamericana_Contemporanea/Autores_B/BORGES/memorioso.pdf

https://globalherit.hypotheses.org/1440 (Pedro Pereira Leite):

"... soube que formava o primeiro parágrafo do capítulo XXIV do livro sétimo da 'Naturalis historia'. O assunto desse capítulo é a memória, as últimas palavras foram  ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.” .<...> A frase latina, escrita com precisão da memória contem um paradoxo. Em castelhano (e também em português), ao dizermos que “nada que tenhamos ouvido, não pode repetir-se com as mesmas palavras” afirmamos uma impossibilidade."


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http://cantinhodoalmir.blogspot.com/2019/03/funes-o-memorioso-o-conto-que-traz-uma.html