Há décadas provocava-se: “os computadores vieram prá resolver os problemas que antes não tínhamos…”. E certamente há circunstâncias em que essa ironia se aplicaria. Afinal, boa parte do “esforço computacional” que fazemos destina-se a nos proteger dos riscos e ameaças que outros “esforços computacionais”, nefastos, segundo nossa avaliação ética, fazem ao nosso espaço. Se extrapolarmos essa análise ao que a IA promete trazer, a frase deixa de ser uma boutade para se tornar um truísmo.
Um exemplo atual desse paradoxo é a corrida, constante e acelerada, entre a capacidade de gerar imagens e vídeos sintéticos hiper-realistas e as ferramentas que buscam detectá-los. Ambos os lados da disputa são alimentados por IA: tanto os sistemas que criam a "meta-realidade" artificial, quanto aqueles que almejam distinguir o real do falso. Essa dinâmica lembra a corrida interminável entre vírus de computador e antivírus — um jogo, talvez simulado, de “gato e rato”, cujo desfecho permanece incerto.Noticiou-se recentemente que as IAs já conseguem incluir respiração e expressões emocionais sutis nas personagens que figuram em vídeos sintéticos. Um dos métodos antes utilizados para identificar fraudes visuais baseava-se justamente na ausência de minúcias como padrões de batimento cardíaco, microvariações de coloração da pele associadas à emoção, ou flutuações quase imperceptíveis da respiração. Pois bem, os geradores de vídeo já imitam esses sinais e o “crivo” de detecção precisa ser revisitado. Novas ferramentas, novos indicadores, até que eles sejam novamente ultrapassados. Se essa luta é ou não inglória, o tempo dirá — os que sobreviverem verão.
Em solução de problemas, o lado positivo é que IA permite uma investigação e correlação de volumes gigantescos de dados em tempos irrisórios - um feito impossível a humanos... Uma solução eficiente para uma vasta gama de problemas que exigiriam anos de decantação. Nesse espírito, artigos recentes sugerem que a IA já superou o “teste de imitação” de Turing: em inúmeros casos, a resposta fornecida por um LLM é mais coerente e bem articulada do que a esperada de um ser humano médio. IA imita o comportamento humano com a vantagem computacional ao digerir dados em larga escala. Ainda não estamos, claro, diante da IAG, Inteligência Artificial Geral, mas o crivo de Turing parece hoje superável.
Ressurge a provocação inicial: se a IA já assimilou a produção intelectual da humanidade, o próximo passo seria a criação autônoma de problemas e soluções? Em outras palavras: após resolver os problemas que achávamos ter, a IA passaria a propor problemas próprios, e a resolvê-los sem nossa participação? Pior: pode-se imaginar que a avaliação da qualidade dessas soluções também dispense a intervenção humana: o homem deixaria de ser a “medida de todas as coisas”. Se, como diz Nietzsche, “não há fatos, apenas interpretações”, essas interpretações já não nos pertenceriam mais. “Problemas que antes não tínhamos”? Sim, e talvez agora nem sejamos mais nós a nomeá-los.
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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/a-ia-pode-ter-tirado-dos-humanos-a-capacidade-de-determinar-o-que-sao-problemas-ou-nao/
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Boutade:
https://www.dicionarioinformal.com.br/boutade/
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Sobre "batimentos cardíacos" em vídeos sintéricos:
https://noticias.r7.com/internacional/deepfakes-podem-apresentar-batimentos-cardiacos-para-dificultar-a-sua-identificacao-03052025/
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Sobre IA com "iniciativas":
https://storage.googleapis.com/deepmind-media/Era-of-Experience%20/The%20Era%20of%20Experience%20Paper.pdf
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Sobre superação do Teste de Turing:https://spj.science.org/doi/10.34133/icomputing.0102
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