terça-feira, 28 de março de 2023

O Artigo 19 do Marco Civil

Em 2009, após quase dois anos de debates até atingir consenso, o CGI publicou um decálogo de princípios sobre a Internet que foi recebido efusivamente pelos presentes no IGF (Fórum de Governança internet) de 2010 em Vilna, Lituânia. O decálogo não tem poder de “lei”, mas serve como balizador de futura legislação. Tanto assim que simultaneamente iniciou-se um debate público intenso sobre uma lei que consolidasse conceitos do decálogo.

Em 2014, na abertura da NetMundial – evento internacional multissetorial sediado no Brasil, que ousou gerar documentos de orientação sobre a Internet, obtidos após longos debates com indivíduos e representantes de quase uma centena de países – a Lei do Marco Civil foi sancionada. Ela definia o “campo de jogo” da Internet, com direitos e deveres. Do decálogo original tres itens foram incorporados ao Marco Civil: a defesa da privacidade e dos dados de usuários, a preservação da neutralidade da rede, e a correta responsabilização dos atores no processo. É este ponto, gerador do artigo 19 do Marco Civil, que hoje está em questionamento;

Diz o decálogo em seu artigo 7: “O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos." e o artigo 19: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário." Como defensor aberto do Marco Civil, nada vejo de inadequado no artigo 19. Sim, pode haver lei complementar adaptada aos tempos, mas ele permanece sólido.

Há plataformas que ignoram o que nelas trafega, e há as que conhecem do conteúdo. As primeiras não há como nem por quê responsabilizar. Com as outras ocorre que, muitas vezes, não se limitam a enviar o conteúdo do emitente aos destinatários pré-definidos, mas o repassam a outros, a seu talante. E aí é que a porca torce o rabo. Afinal, se alguém decide me mandar algo, é dele a responsabilidade pelo conteúdo. Uma plataforma que, por sua livre decisão, baseada ou não em algoritmos, escolhe repassar conteúdo a outrem, deixa de ser um “intermediário” neste caso específico. Passaria a constar da lista de “terceiros”, conforme o artigo 19: afinal, na melhor das hipóteses, estamos diante de um caso de “spam”...

Para seguir na boa trilha que o Brasil traça na Internet, seja em governança, seja em legislação, é mister construir sobre base sólida – e a temos! Solapar o que existe e foi aclamado internacionalmente, parece altamente contraindicado. Discutamos aperfeiçoamentos e acréscimos ao bom edifício, mas evitemos demolí-lo...

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https://www.estadao.com.br/link/demi-getschko/o-artigo-19-do-marco-civil-nao-pode-ser-demolido-na-busca-pela-regulacao-das-redes-sociais

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A guisa de curiosidade, o que o ChatGPT-4 acha do Artigo 19 do MCI a partir de uma pergunta que o Percival (CGI) fez:

Pergunta (Percival): Finja que é um advogado e faça uma sustentação oral defendendo a constitucionalidade do art 19 do marco civil da internet

Resposta (ChatGPT-4) Meritíssimos Ministros, Excelências, senhores e senhoras presentes,

Ilustre presidente, venho perante esta Egrégia Corte defender a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Este dispositivo legal equilibra os interesses entre a liberdade de expressão, o acesso à informação e a proteção dos direitos individuais, como a honra, a imagem e a privacidade dos cidadãos brasileiros.

O referido artigo estabelece que provedores de aplicações de internet somente poderão ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.

Permitam-me destacar que o artigo 19 coaduna-se com os princípios fundamentais da nossa Constituição Federal. A liberdade de expressão é assegurada pelo artigo 5º, inciso IX, e pelo artigo 220 da Constituição. Contudo, a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Os incisos V e X do artigo 5º também protegem o direito à indenização por dano moral ou material decorrente de violação à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas.

Nesse sentido, o artigo 19 do Marco Civil da Internet harmoniza os princípios constitucionais, estabelecendo um mecanismo equilibrado de responsabilização dos provedores de aplicações de internet. A necessidade de uma ordem judicial específica para a remoção do conteúdo infrator confere maior segurança jurídica e reforça a preservação da liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que protege os direitos individuais das vítimas.

Vale ressaltar que a inexistência dessa previsão legal poderia levar os provedores de aplicações de internet a adotar posturas excessivamente cautelosas, removendo conteúdos em resposta a simples alegações de ofensa, sem a devida análise judicial. Tal cenário poderia resultar em uma forma de censura privada, com graves impactos sobre a liberdade de expressão e o acesso à informação.

Além disso, o artigo 19 não impede a responsabilização dos autores das ofensas. Esses continuam sujeitos às sanções civis e penais previstas na legislação, independentemente de qualquer ação por parte dos provedores de aplicações de internet.

Portanto, Excelências, o artigo 19 do Marco Civil da Internet é compatível com os princípios e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal. Ele proporciona um equilíbrio justo entre a proteção dos direitos individuais e a preservação da liberdade de expressão, garantindo um ambiente digital sadio e respeitoso para os cidadãos brasileiros.

Ratifico, assim, a defesa da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet e solicito que esta Corte reconheça e confirme sua conformidade com os princípios consagrados na Constituição Federal.

Muito obrigado, Excelências.
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terça-feira, 14 de março de 2023

Nomes, Domínios e Palavras

Está acontecendo em Cancun a 76a ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers). Criada em 1998, a ICANN teve sua primeira reunião em Cingapura em março de 1999 e, a partir dali, faz tres reuniões por ano. Duas foram no Brasil: a ICANN16 no Rio de Janeiro e a ICANN27 em São Paulo. É uma organização não governamental, sem fins lucrativos, sediada em Los Angeles, Estados Unidos, e tem como função precípua cuidar da raíz de “nomes” da Internet (que ancora os “domínios de topo” como .com, .net, .org, .br, .de ...), e também distribuir “números”: a numeração IP (Internet Protocol) a regiões e países, que depois os repassam a entidades. Entre os domínios de topo há os de “código de país”, como o .br (Brasil), o .de (Alemanha) e mais algumas centenas; e os “genéricos”, .com, , .net e mais uns milhares. Importante diferença em sua caracterização: enquanto muitos dos “de país” são anteriores à própria ICANN e são em geral operados sem fins de lucro gozando de autonomia em suas regras, os “genéricos” tem contrato com ICANN e são, em geral, operados por instituições comerciais.

A ICANN é uma organização multissetorial: dela participam diversos segmentos da Internet: da área técnica, de organizações de usuários, do terceiro setor, e de representantes de governos. Tópicos recorrentes nas últimas reuniões tem sido o debate sobre necessidade ou não de haver mais domínios do tipo genérico (e como isso seria tornado viável de modo seguro), e formas de se combater o abuso de estruturas da Internet como o DNS (Domain Name System, o sistema hierárquico de nomes). O .br vai bem neste ponto: mesmo sendo um domínio com mais de 5 milhões de registros, está entre os mundialmente mais seguros: suas regras de registro têm se mantido constantes, fiéis aos princípios originais da Internet, e é restrito a quem possui CPF ou CNPJ, portanto limitando o conjunto de seus registrantes a quem tem relação com o país.

Enquanto se esperam resultados da ICANN-76 – voltaremos a eles - não resisto a uma provocação (não de minha competência!) ao que me parece outro tipo de abuso: o de palavras. Claro que a língua é dinâmica, e de há muito foram-se os dias em que texto de jornal era usado em sala de aula como exemplo de escrita, mas, se já incomodavam neologismos mal-formados como “gordofobia”, eles ganham irmãos igualmente disformes: “velhofobia” anda por aí, provando que “nada está tão mal que não possa piorar”… Fobia é medo ou aversão, não ódio ou ataque (para ódio há “miso”: misoginia, misantropia). Há medos definidos: acrofobia (de beiradas altas), claustrofobia (de ambientes fechados), agorafobia (de praça pública). Talvez, à luz das “novidades", essa semântica mude... Acrofobia passaria a ser o “ódio aos acreanos”? Claustrofobia o “ódio a freiras e frades”? E agorafobia o “ódio ao que ocorre hoje”? Piedade!

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https://meetings.icann.org/en/