No caminho para Ilhéus, na Bahia, notei o mesmo que em muitos outros lugares: qualquer bodega despretensiosa anuncia Wi-Fi aberto. E isso é muito bom para nós. Em 2009, dois anos após o caso Cicarelli, que gerou um primeiro bloqueio a uma aplicação, o Comitê Gestor da Internet no Brasil divulgou um decálogo cujo objetivo básico era arrolar e defender conceitos fundamentais da Internet livre e aberta. Foram quase dois anos de discussão, dentro de um comitê multissetorial, com representantes de todas as áreas, de governo ao terceiro setor, até se lograr consenso.
À época prosperava a discussão sobre que legislação seria adequada para a rede, esse mundo ainda novo. Vimos prevalecer a sensatez. Ao invés de uma lei punitiva optou-se por legislação principiológica, de balizamento de direitos e deveres: o Marco Civil da Internet no Brasil. A lei n.° 12.965/14 foi sancionada em 2014, após anos de debates públicos. Ela inauguraria uma instigante forma da comunidade discutir abertamente projetos de lei e foi saudada internacionalmente como a mais moderna legislação a tratar da rede.Tudo parecia bem, mas – e é aí que a porca torce o rabo – há sempre aquelas “boas intenções”, das que abundam no reino do Tentador. Hoje tramitam dezenas de projetos que visam a modificar o Marco Civil, alguns de forma sutil, outros expressamente. Há, por exemplo, uns que pretendem redefinir conceitos da rede, outros propõem exceções ou adições que descaracterizariam seu ânimo original. Há os que propõem, por exemplo, que para usar o Wi-Fi num restaurante tenhamos que preencher um cadastro! Voltando ao caso de Ilhéus, imagine-se ter que preencher uma ficha de cadastro com nossos dados pessoais completos, CPF, endereço etc. Estaria o Brasil no caminho da “inovação retrógrada”?
Lembrei-me da Revolução dos Bichos, de Orwell. Lá, após a reunião dos animais em prol de seus interesses e coordenados por porco velho, o Major, a comunidade estabeleceu um conjunto de sete regras a ser seguido por todos e para o bem geral. Entre as regras estavam: os animais não dormirão em camas, nem beberão álcool, nem matarão outros animais. Em resumo, os animais serão todos iguais entre si.
Claro que o consenso e os princípios iniciais foram sendo desvirtuados pelos que tiveram mais condições e poder. Na alegoria de Orwell, em pouco tempo outro porco, o jovem Napoleão, passa a liderar a comunidade e instala-se com seus apaniguados na casa dos humanos. Adota o calor e o conforto da cama, o gosto pelo uísque e a embriaguez do poder. Inconspicuamente as regras mudam. Primeiro pequenas adições: os animais não dormirão em camas “com lençóis”, não beberão álcool “em excesso”.
Depois mudanças mais radicais: os animais não matarão outros animais “sem motivo”, para finalmente chegar a rever o próprio princípio fundamental daquela comunidade: “os animais são todos iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. E o final óbvio foi a diluição dos bons propósitos, o desmantelamento da comunidade e sua dispersão no ambiente vizinho hostil. Cuidemos do nosso Marco Civil da forma em que foi definido pela contribuição aberta de todos e o defendamos de ideias que o levariam ao Capiroto. Arreda!