terça-feira, 30 de março de 2021

Internet dos Corpos

Que as coisas comuns estão cada vez mais ligadas à Internet, já é bem conhecido. Há, entretanto, diferenças importantes entre o nosso televisor receber e transmitir dados via Internet, e nosso marca-passo cardíaco estar conectado.

Se a preocupação mais imediata é a proteção de dados pessoais, indiscrições que o televisor cometa podem levar ao mapeamento dos gostos de seu dono: que programas prefere, se troca de canal quando entrem comerciais, ou a eles presta atenção, etc. Com a TV interativa isso será potencializado: o antes mero espectador e piloto do controle remoto, passa via “setup box”, a navegar na rede e a fazer pedidos. É um simples adicionar ao que já se sabia dele que coisas ele busca, que sítios visita, que interações mais atraem sua atenção e interesse.

Na outra categoria de equipamentos, as que integram o ciborgue em que estamos nos transformando, a coisa pode ser bem mais complicada. Há uns meses li um artigo que descrevia um caso interessante, de 2016. Um indivíduo que perdera a casa num incêndio relatou como, a duras penas, quebrou a vidraça com sua bengala e sair carregando o que pode, incluindo-se aí o carregador de seu equipamento de suporte cardíaco instalado em seu corpo. Ele solicitou o resgate do seguro de seu imóvel… A priori um drama pessoal em que ele, ainda mais por sua frágil condição de saúde, escapara com vida,.
A empresa de seguros, ao investigar o caso, desconfiou da origem do incêndio e da complicada história de como o homem lograra escapar. E como havia um equipamento permanentemente instalado em seu corpo, a empresa pediu acesso aos dados gerados pelo equipamento, esperando que eles revelassem outra versão. Haveria registrada no equipamento, por exemplo, uma excitação proporcional à que seria de esperar naquelas condições? Seguiu-se uma guerra jurídica que não chegou à conclusão porque o demandante faleceu antes.

O que se tira disso é, por si, bastante preocupante. Equipamentos que passam a integrar nosso “organismo expandido” – e mesmo os chamados “vestíveis” - são fonte de informações muito íntimas. Uma vez acessíveis pela rede, esses dados poderão ser garimpados por alguém. Imagine-se um invasor conseguindo acesso a um marca-passo, ou a uma bomba de insulina, e passando a cobrar resgate para não interferir no funcionamento destes equipamentos! Pesadelos não faltarão...
O cenário hoje é bem mais complexo que o de 2016. Se, por um lado, as coisas se tornaram cada vez mais conectadas – e com elas também nossos corpos - por outro temos o apoio de leis que protegem nossos dados pessoais. A lei, porém, pune mas não impede. Afinal, mesmo com a lei definindo crime a invasão de um equipamento vital, como agiremos se o invasor, no controle da situação, exigir resgate?
Sim, as informações vitais nossas devem estar disponíveis, mas sempre a nosso único critério, para as repassarmos a médicos quando necessário. Em viagens, por exemplo, um prontuário acessível (ou parte dele) poderia ser mostrádo a médicos e hospitais em caso de necessidade, Ainda restaria não resolvido o caso em que, por algum incidente grave, não tenhamos condições de conscientemente liberar com presteza o acesso a nossos dados vitais.

A simbiose do homem com dispositivos eletrônicos incorporados traz melhoras importantes em disgnósticos, tratamentos e suporte vital, mas não podemos ignorar os aspectos éticos e de segurança a preservar. Que a atenção e divulgação dadas a estes avanços divulgue também com o mesmo destaque seus efeitos colaterais e riscos inerentes. Como em Hamlet, “nada é simplesmente bom ou mau em si”.

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Artigos que tratam do tema e do exemplo acima:
https://www.rand.org/blog/articles/2020/10/the-internet-of-bodies-will-change-everything-for-better-or-worse.html
https://www.cybersecurity-insiders.com/malware-and-ransomware-attack-on-medical-devices/

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Artigo sobre riscos de dispositívos "vestíveis":
https://aircconline.com/ijnsa/V8N3/8316ijnsa02.pdf

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Sobre riscos de segurança no uso de injetores de insulina conectados:
https://www.healthcareitnews.com/news/fda-issues-new-alert-medtronic-insulin-pump-security

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https://i.ytimg.com/vi/4GPgJjoYI-g/maxresdefault.jpg



terça-feira, 16 de março de 2021

Privacidade e Coerência.

O lema do correio norte-americano é bem conhecido: “nem a chuva, nem o calor, nem a escuridão da noite impedirão o carteiro de completar eficazmente sua missão”. No tema lembro-me de um livro da adolescência: “Miguel Strogoff, o correio do Czar”, de Júlio Verne, onde essa heróica missão era a bela viagem a que o autor nos levava.

Além de garantir a entrega expedida da correspondência, seu conteúdo considera-se inviolável: o sigilo da correspondência seria sagrado, como o eram as confissões e os diários pessoais, As coisas tem mudado rapidamente com a informática. Diários pessoais se transformaram em “blogs”, cartas migraram para uma versão eletrônica e, logo depois, fundiram-se com outras formas de comunicação. Especialmente, deixaram de ser algo um-para-um e tornaram-se um-para-muitos, através das redes sociais. Novos modelos de negócio surgem fundados, por exemplo, no impacto que cada um pode causar pelo que afirma, verdadeiro ou não, desde que seja suficientemente bombástico.

Para este novo ambiente em que, sem dúvida, também multiplicam-se ameaças, a Comissão Européia estuda formas de solicitar aos provedores de serviços Internet que, “transitoriamente”, todas as comunicações entre seus usuários, tanto no correio eletrônico, como nas conversas pela rede, sejam monitoradas para a “prevenção de ameaças e crimes”. Para a “nossa própria segurança”, as comunicações pessoais seriam passíveis de constante e obigatório monitoramento pelas plataformas e provedores. E essa idéia ganha força e apoio através dos representantes da maioria dos países no Parlamento Europeu.

Sou do tempo em que se considerava o correio inviolável. Não é um objetivo recente: há referências sobre técnicas de criptografia já na antiga Grécia. Nwste mesmo tema, há dias, outra curiosa notícia dava conta de que cartas com mais de 300 anos e quenão puderam ser entregues a seus destinatáios, foram encontradas, intactas, guardadas em Haia. O artigo aproveitou para ilustrar diversas maneiras que os remetentes usavam para tornar visível uma violação da correspondência. Podiam, por exemplo, dobrar o papel de uma forma tão complexa que uma tentativa de desdobrá-lo seria fatalmente notada no destino. Ou usar lacres aplicados à carta, de forma a deixar claro que se ela fossa aberta, isso seria facilmente notado. Aliás, o próprio envelope fechado com cola, mais recente, é forma de garantir alguma proteção ao conteúdo.

O que causa perplexidade a alguns (e me incluo entre eles...) é que, ao mesmo tempo em que bradamos pela defesa de nossa privacidade e nos incomodamos quando vemos sistemas que automaticamente detectam nossos interesses e desejos, nos enviando em instantes alguma propaganda sobre o que apenas acabávamos de pensar, pouco alvoroço causa uma notícia como esta, que vai exatamente no sentido inverso. Ao invés de diminuir o monitoramento a que estamos sujeitos, estamos a vê-lo tornar-se obrigatório. Claro que sempre recheado de “boas intenções”, para “coibir ilegalidades” e garantir “nossa segurança”. Ora, afinal, “se você nada deve, porque se preocupa em manter sua correspondência sigilosa”? Rompidas barreiras éticas e morais, só nos restará o uso da criptografia. E ela também pode ser alvo da sanha dos “bem intencionados”. Iremos defendẽ-la!

Talvez haja uma explicação irônica do que se passa... Atendendo a uma leitura atravessada de Lucas 12:3: “o que vocês disseram nas trevas será ouvido à luz do dia, e o que vocês sussurraram aos ouvidos dentro de casa, será proclamado dos telhados”, membros da Comissão Européia resolveram ser o momento para assumirem. já aqui na terra, o papel que o evangelista atribui às esferas transcendentes..,

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Texto sobre o posicionamento da Comissão Européia:
https://www.patrick-breyer.de/?page_id=594160&lang=en
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O lema do Serviço Postal norte-americano:
https://en.wikipedia.org/wiki/United_States_Postal_Service_creed
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Artigos sobre o sigilo da correspondência:
https://www.theguardian.com/technology/2015/aug/12/where-did-the-principle-of-secrecy-in-correspondence-go
https://en.wikipedia.org/wiki/Secrecy_of_correspondence
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Referência à criptografia na Grécia antiga:
Polybius, a second century BC Greek historian, wrote about a communication and data encryption system. From other sources we know that such a device had been developed by Cleoxenus (Κλεόξενος o Μηχανικός) and Democleitus (Δημόκλειτος ο Εφευρέτης).
em:
http://www.hellenicaworld.com/Greece/Technology/en/Communication.html
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A carta selada de mais de 300 anos:
https://www.npr.org/2021/03/02/972607811/reading-a-letter-thats-been-sealed-for-more-than-300-years-without-opening-it
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e uma curiosidade: material para lacres
https://ceraparalacre.com.br/



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E "Miguel Strogoff", com a tradução de Rachel de Queiroz:






terça-feira, 2 de março de 2021

Riscos à Internet

Há uma queda-de-braço em andamento entre gigantes da tecnologia que operam as plataformas dominantes na Internet, e governos de alguns países. No caso da Austrália, por exemplo, uma recente lei obriga as plataformas e remunerarem empresas de informação quando do compartilhamento de linques. As consequências para a Internet podem ser bem ruins. É mais uma polêmica permeada por definições escorregadias e jogo não claro das partes, que não hesitam em travestir seus próprios objetivos em algo que pareça vir ao encontro do interesse público. Desta forma, tanto a linha de corte do que seria eticamente adequado, como o real perde-ganha dos envolvidos, tornam-se muito difusos.

A caracterização do papel das plataformas na intercomunicação há tempos deixou de ser simples e clara. A função inicial que elas assumiram foi de “vasos comunicantes” entre usuários interessados em trocar opiniões, e base para a criação de comunidades sobre tópicos ou interesses. No papel de um intermediário simples não há muita polêmica. O telefone, por exemplo, cumpre essa função, limitada normalmente a dois interlocutores simjultãneos: se alguém me ofende ao telefone, ou me faz alguma oferta de produto ilegal, não imaginaria tornar a companhia telefônica corré do eventual delito. Vale também para o correio. Para dar um exemplo de antanho, havia “torneios de xadrez por correspondência” em que os jogos eram travados por troca de cartas. É natural concluir que esses facilitadores da comunicação e da associação não tinham, a priori, nenhuma responsabilidade pelo conteúdo transportado. Vale aqui o “não mate o mensageiro”… Já na ação atual as plataformas ultrapassam em vários aspectos sua função de interemdiário. No xadrez por correspondência o correio não tiraria conclusões sobre a qualidade ou os interesses dos jogadores. Nas novas plataformas, não só o perfil do usuário é levantado, como é capz até que se metessem a sugerir jogadas...

O tema da Austrália é movido especialmente pelo fato de que há muito dinheiro de propaganda fluindo para as plataformas, enquanto secam recursos para atividades jornalísticas. Surgiu assim a idéia da lei que obriga repasse de recursos, especificamente, à indústria da informação. Os linques de notícias que circulam pelas plataformas poderiam gerar um pagamento a ser ajustado com o gerador da notícia a que o linque se refere. Há diversos textos na rede mostrando como isso ataca, não apenas o conceito de hipertexto

- onde o linque tem a única função de ser um “apontador “, e não carrega conteúdo em si - mas a própria abertura na Internet. No limite, se alguém mandar a um amigo uma referência de notícia ou conteúdo, o remetente poderia estar sujeito a pagar algo. Tim Berners-Lee, o criador da Web, já havia definido que a mera existência de um linque de hipertexto não carrega em si, nem conteúdo, nem valor autoral.

O jogo de negaças mútuas se expande. Se, por um lado, as empresas de tecnologia tentam usar o trunfo de “intermediário neutro”, por outro, ao alegar que conseguem “moderar conteúdos” para o bem público geral, assumem um papel eventualmente editorial. Se parece clara a necessidade de um nivelamento do campo de jogo e das forças de mercado, não parece razoável um governo interferir pontualmente nas relações entre dois tipos de negócio, e com o risco subjacente de fazer mal à Internet, a possível vítima deste confronto. A clara necessidade de equacionar e conter o crecente poderio dos gigantes da tecnologia, não pode redundar em danos maiores ao ecosistema de abertura e liberdade que a Internet provê. Num aforismo em “Para além do Bem e do Mal”, Nietzsche diz: “ao lutar contra os monstros, acautela-te para que não te transformes também em monstro”.

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sobre o caso Austrália:

http://www.komaitis.org/the-conversation/in-the-case-of-australia-vs-facebook-the-internet-is-the-casualty

https://m.dw.com/en/australia-passes-media-law-as-facebook-defends-news-blackout/a-56682488

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o texto de "Para além do Bem e do Mal"

https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/4/o/Al__m_do__Bem_e_do_Mal.pdf

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monstros mitológicos

https://jornal.usp.br/tag/monstros/?amp