terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Vazamentos

 Há uns dois anos, quando ainda eram possíveis as viagens internacionais, fui (presencialmente!) à agência bancária onde tenho conta para comprar alguns dólares. Expliquei à gentil atendente a minha necessidade de moeda estrangeira e ela me encaminhou a um guichê específico. Tudo parecia ir bem até que o caixa pediu-me que inserisse um especial cartão de débito na maquininha, e que teclasse a críptica senha. Até consegui achar o tal cartão no meio da tralha que carrego comigo, mas… cadê o raio da senha? Nem me lembrava dela, ou de sequer se havia algum dia usado o tal cartão para retirar resursos. Não houve contorno possível. Eu ali, pessoalmente em frente ao caixa, era muito menos confiável que o meu cartão. Na verdade, a conta-corrente parecia mais pertencer ao cartão em si, do que a mim mesmo. Em resumo, era necessário emitir novo cartão, cadastrar outra senha e, daí sim, com o aval do poderoso cartão eu voltaria a gozar de credibilidade junto ao banco…

O que nisso é sugestivo, e eventualmente preocupante, é que não só nossos valores, mas nossa personalidade e nossas ações em ambiente público foram sendo paulatinamente terceirizadas para avatares que carregamos no bolso. Claro que há mais conforto e agilidade assim, mas parece-me de lastimar que esses avanços, ao invés de se incorporarem ao que já existia, o substituam. Posso parecer (e sou…) antigo, mas era mais simples (e seguro) colocar um papelzinho no parabrisa do carro para usar a zona azul. Hoje há que se ter telefone e aplicativo, e faz-se uma conexão lógica entre uma chapa do automóvel, a conta bancária e a hora de uso do estacionamento... Com tanto dado disponível por aí, não é de se estranhar que a cada dia noticiem-se vazamentos importantes.

Nunca é demais ressaltar a importância de que se observarem boas normas de segurança: senhas fortes e autenticação com segundo fator. E, claro, não aceitar “presentes de grego” na rede, que podem vir recheados de surpresas muito desagradáveis, além da prudência em evitar acessos a locais suspeitos, muitas vezes camuflados como “seguros” ou “atraentes”…

Em resumo, independentemente de haver legislação forte visando a proteger nossa intimidade, em muitos casos o “leite já derramou”. Dado que é possível montar-se um alter ego nosso usando o que vazou, e sabendo que esse alter ego pode ser mais “confiável” em transações eletrônicas que o próprio indivíduo, estamos numa enrascada. Isso sequer é novidade: em 1999 o executivo-chefe da Sun Microsystem, , já havia virado a página: “Privacidade? Não existe. Esqueçam isso…”

A discussão do quê, e como, proteger é mais complexa. O senso comum diz que a simples identificação unívoca de um indivíduo não representa em si uma quebra de sigilo. Afinal para se proteger alguém efetivamente é necessário saber a quem nos referimos. Um identificador único, como é o caso do CPF, usado em inúmeras transações comezinhas, não se distingue do próprio nome do indivíduo. Dizer que meu nome é João Silva sem adicionar, por exemplo, o CPF. me deixaria em companhia de muitos homônimos, com variados perfis sociais e suas correpondentes pendências. Não parece ser aí que mora o perigo. Mas adicionar à identificação única de alguém seus dados bancários, os nomes dos genitores, sua localização física em cada momento e, até, senhas obtidas por monitoração de tráfego ou força bruta, permitem criar um poderoso dublê virtual que poderá causar danos de monta e dores-de-cabeça à pobre vítima física. 

Mas hoje é terça-gorda de Carvaval! Evoé e boa sorte a todos nós!

===
Artigo sobre a fala de 
Scott McNealy, Sun Microsystem:

https://www.wired.com/1999/01/sun-on-privacy-get-over-it/
===

Vídeo sobre roubo de impressões digitais:

https://www.youtube.com/watch?v=eTkYQyglBDo
===

https://www.idlehearts.com/authors/scott-mcnealy-quotes



terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Robin Hood?

Devemos à Internet o fato de, apesar de estarmos há mais de ano sob a sobra da pandemia, conseguirmos preservar uma vida com alguma normalidade. Ela nos propiciou formas de trabalho remoto, de interação com discussão em grupo de temas, além de continuar a nos prover acesso rápido e ilimitado a informações de todos os tipos, desde aquelas críticas para o nosso dia a dia, até abundantes boatos e futricas, sem falar do expressivo número de variadas “teorias conspitórias”. Isto, entretanto, não ofusca a constatação do contínuado desconstruir que a rede provoca, e a irrefreável mudança, às vezes assustadora. Essas convulsões que vem com a disseminação da rede não são novas e nem deveriam mais ser motivo de espanto. Lembro, com alguma nostalgia, de tempos em que, por exemplo, para se buscar transporte bastava ir à rua, levantar o dedo e apanhar um taxi – era questão de minutos! Hoje, ou se tem um aplicativo para solicitar o serviço, ou arrica-se a ficar plantado por horas sem que nenhum taxi apareça. A velha tirada do Millôr, “livre como um táxi!”, perdeu muito da força.
Neste janeiro atribuiu-se à rede outra ação de ruptura, agora em área inusitada. Estamos habituados a ver modelos tradicionais de negócios serem significativamente afetados, se não destruídos, pela internet, mas a tempestade vai muito além, assombrando todas as áreas da sociedade, da ética à política, da acomodação à inssureição, da informação organizada ao caos. Quanto à área política, por exemplo, tivemos as tais “primaveras” que acometeram alguns países. Aliado a circunstâncias locais, foi também o poder de mobilização e de coordenação através da internet que tornou viáveis as “primaveras”.
A notícia agora foi a inesperada ação de “outsiders” em negócios com ações. Na imagem de um amigo, tratou-se da “primavera das bolsas de valores”… O que se viu foi tradicionais empresas operadoras desses mercados, serem confrontadas por uma maré de simplórios compradores, que se auto-organizaram via aplicativos. Por sinal, um deles com o sugestivo nome de “Robinhood”. A onda de intrusos avolumou-se causando perdas e estragos de monta aos atores oficiais de plantão. Afinal, sempre que um leigo pensava em investir seus caraminguás em ações, recorria prudentemente aos especialistas nessa área. Hoje ele se arroga a iniciativa… Não tenho a menor competência para analisar o funcionamento do “mercado futuro” e os riscos de quem fica “comprado” ou “vendido”, mas lembro de uma discussão sobre o tema há uns 20 anos, época da maciça migração dos serviços de cotações em tempo real para a Internet. Discutia-se se haveria como a internet competir em velocidade com as redes próprias dos serviços de disseminação das cotações. A par de buscar como contornar o problema da velocidade na transmissão via Internet - que então era muito menos poderosa – levantei uma questão de leigo: a universalização das informações de mercado poderia representar um risco ao seu próprio funcionamento? Afinal, em ambientes especulativos, o poder reside em se ter rapidamente informação privilegiada. A assimetria de informação é a alavanca principal para a geração de lucro. Ora, se com a internet todos souberem sobre tudo. em pouco tempo essa assimetria diminui. 
Talvez seja isso parte da explicação do que aconteceu em janeiro nos Estados Unidos, especificamente com algumas ações, e que pode se repetir em outros países, agora que o “gênio saiu da garrafa”. Segue outra boutade do mesmo amigo: “faz-se necessário democratizar os´memes’ de produção”. Internautas do mundo, uní-vos!
===
sobre o caso:
https://olhardigital.com.br/2021/01/28/noticias/fintechs-impedem-investidores-do-reddit-de-comprar-acoes-meme-apos-prejuizos-bilionarios/
===
uma musiquinha divertida sobre o caso:
https://www.youtube.com/watch?v=rejpDqQUcV0
===