terça-feira, 19 de março de 2019

A Epopéia Amazônica

Uma das deliciosas obras de Monteiro Lobato é Os Doze Trabalhos de Hércules. Foi nela que, na meninice (milênio passado), tive contato com as mitológicas amazonas, tribos de mulheres guerreiras que viviam na região do Ponto, costa sul do Mar Negro, próximo à atual cidade de Terme, norte da Turquia. Um dos trabalhos do herói era obter um ambicionado cinturão que Hipólita, a rainha das amazonas, possuía. E ele o conseguiu!

Nosso rio Amazonas ganhou esse nome, lembro das aulas de história, quando o explorador Orellana foi atacado por uns indígenas liderados por mulheres. Passou a ser conhecido como “rio das Amazonas” e, por extensão, a imensa região verde que o rodeia e que atinge oito países. Há uma organização diplomática chamada Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OCTA), que é integrada por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.

Quanto à Internet, tudo ia bem nesse tema até que a Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (Icann, na sigla em inglês) em 2012, resolveu expandir o número de gTLDs, “sobrenomes” genéricos de nomes de domínio. Assim, além dos que representam países, como o nosso “.br” e os outros de duas letras, os genéricos, como o “.net”, o “.com” e outros, passariam a ter numerosos “irmãos”. Apareceram gTLDs como “.hotel”, “.xyz”, “.berlin”, “.rio”, e também gTLDs de marcas, com uso mais restrito às próprias companhias que os solicitaram, como “.ibm”, “.natura” e, claro, “.amazon”. 

Nas regras havia restrição quanto a pedidos de nomes geográficos e outros casos polêmicos, mas um conflito entre uma empresa e uma região não era provável. Além do potencial conflito do “.amazon”, apareceu outro em nossa área: o “.patagonia”, também solicitado. Mais uma vez a Internet colocava face a face interesses conflitantes, que só se manifestaram na rede. 

Quando países, ciosos de sua soberania sobre nomes geográficos tidos como amplamente conhecidos, viram instituições comerciais os requisitarem para uso como gTLD, foram à luta. Afinal esse é um processo excludente: há um único dono para cada TLD. O “.patagonia” foi resolvido amistosamente em conversas com Argentina e Chile, mas o “.amazon” revelou-se osso duro de roer.

Inicialmente o Grupo Assessor de Governos na Icann (GAC) chegou a um consenso pedindo o bloqueio da solicitação da empresa Amazon. A gigante do varejo insurgiu-se e requereu um painel neutro de reavaliação. Ora, a disputa entre marcas e nomes de regiões é terreno pantanoso, e houve uma reversão: o painel sugeriu à Icann que concedesse a delegação do nome à Amazon.

Claro que a OTCA não concordou com isso. A Icann viu-se entre a frigideira e o fogo: se atendesse à Amazon, arrumava um enrosco político de vulto com oito países. Se não atendesse, provavelmente ganharia um processo multimilionário da empresa que teve o parecer favorável do painel. Na reunião de Kobe, a 64ª da Icann terminada na sexta, 15 de março, a saída possível foi esquivar-se de dar a palavra final e conceder mais um tempo para saia alguma luz das discussões. Cá entre nós, não será fácil conseguir consenso entre os países sobre qual o acordo possível e, menos ainda, que a atual pretendente, Amazon, aceite mais protelações.

Que tal chamar Hércules para um 13.o trabalho? Seria o de “deslindar o impasse OCTA x Amazon em um tempo finito”. Trabalho hercúleo!


===
Comentários do "board" da ICANN na reunião de Kobe, março de 2019, sobre  o caso .amazon:

https://www.icann.org/resources/board-material/resolutions-2019-03-14-en#2.e



terça-feira, 5 de março de 2019

Terça-feira Gorda

Começo me desculpando aos que eventualmente se sintam ofendidos. Esse “gorda” do título não reflete “gordofobia”, nem “gordolatria”, horrendos hibridismos tão em voga hoje. Remonta a “Mardi Gras”, a terça-feira untuosa dos franceses, último dia para se consumir costelinhas, rabadas e torresmos, dado que vem aí a quaresma e o início do jejum. Mas hoje é “terça-feira” gorda de Carnaval, véspera da “quarta-feira de cinzas”, e sinto-me insuficiente para questionar o que nossos antepassados estabeleceram e tem se mostrado sensato.

“Terça-feira” evoca em mim pretéritas épocas da meninice. No meu bairro, terça-feira era o dia da feira livre. Dia em que os feirantes apregoavam as qualidades dos produtos, materializados nas bandejas de tomates, batatas, alfaces, laranjas. “Prove aí, freguesa, a minha laranja-da-baía... Doce como mel. Só compra se gostar! Sem compromisso!”. Época anterior ao depois famoso “pastel de feira”, do qual viraria cliente anos mais tarde. E havia uma forma fácil de saber que estava chegando o “fim da feira”: era o cheiro persistente de peixe se sobrepondo aos demais. O odor da barraca do peixeiro marcava a hora de levantar acampamento.

A lembrança da feira e o seu processo aberto de mercadeio trouxeram-me outra imagem forte: o artigo de Eric Raymond “a Catedral e o Bazar”. Nele, comparava-se duas formas de produção de bens: uma altamente hierárquica – a Catedral – onde poucos definem a arquitetura final e os demais apenas contribuem como mão de obra –, e o Bazar, onde o processo de definição e construção é interativo e continuamente participativo. Todos conhecem esse conceito, e é o que descreve a evolução do sistema operacional Linux e de outros programas abertos e colaborativos. Ousaria dizer que a própria Internet é resultado muito mais de um “bazar” do que de uma “catedral”, se bem que há que se reconhecer influências importantes de ambos os processos. Ainda na mesma linha, estamos hoje a menos de 10 dias da comemoração dos trinta anos da invenção da web por Tim Berners-Lee. A data de 12 de março de 1989 é cravada como a do nascimento da web.

Ela, a web, talvez seja o mais expressivo exemplo do que a “feira livre” nos poderia dar. Na web todos apregoamos o que nos interessa, desde o que tomamos no café da manhã, passando pelas nossas posturas políticas, se gostamos ou não de música clássica, ou de coentro. Pouco importa se isso interessa mais ou menos aos nossos leitores. Mas certamente interessa aos que farejam oportunidades de negócio usando nossos comportamentos e escrutinando as tendências em voga. O bazar e a feira livre estão aí, com seus múltiplos efeitos positivos, facilmente identificáveis e claramente louváveis. Mas (e sempre há o outro lado da moeda), como na feira livre, há as bancas que vendem batatas de qualidade, e há as que buscam ludibriar o cliente. Como nas feiras, nós, os clientes deveríamos aprender a ser hábeis e saber distinguir a “baciada” de boas batatas, daquela de batatas “de segunda”. É isso que se espera de clientes experimentados, e é o único caminho que parece promissor.

É terça-feira gorda de carnaval. Vida longa à Internet, à web e, ao vencedor, as batatas! Evoé! Evoé!


Aniversário da Web:
https://home.cern/news/news/computing/web30-30-year-anniversary-invention-changed-world

While working at CERN, Sir Tim Berners-Lee invented the World Wide Web (Image: CERN)