terça-feira, 18 de julho de 2023

Internetices

De tempos em tempos surgem projetos de lei que, mesmo muito bem intencionados, acabam por se mostrar inviáveis, ou arriscam trazer consequências danosas imprevistas. Isso se deve a uma coompreenção imperfeita do que seja a Internet e das idéias que a geraram. Se partimos da hipótese de que Internet única e acessível por todos é algo desejável, é importante preservar seus conceitos constituintes que a fazem ser o que é. Ir contra eles é, eventualmente, aliar-se involuntariamente aos que a querem fragmentada e deformada.


Nos velhos tempos, o correio eletrônico era a grande novidade: trazia acesso e comunicação entre todos. Lembro-me de um projeto de lei – felizmente abandonado - que obrigaria os provedores nacionais do serviço de correio eletrônico a garantirem a correta identificação do remetente. Quem acompanhou a disseminação dessa ferramenta, sabe que o protocolo básico – o SMTP, Simple Mail Transfer Protocol – mimetiza o correio tradicional. Ora, no correio tradicional uma carta será entregue desde que adequadamente envelopada e selada, independentemente de verificação da identidade de seu remetente: basta jogá-la na caixa de correio e ela seguirá ao destinatário… Se uma lei local buscar mudar isso, por exemplo obrigando servidores nacionais a indeitificarem os remetentes, o resulado imediato será a migração de boa parte dos usuários a serviços internacionais, inviabilizando provedores nacionais. Em suma, ao mesmo tempo em que não se avança nada na identificação dos remetentes, destrói-se a oferta nacional desse serviço.

Outra analogia: o registro de nomes de domínios. A expectativa de qualquer operador de domínio lícito é que ele funcione na Internet como um todo. E é exatamente assim que funcionam os milhares de domínios existentes e ativos. Alguém precisa usar o .br para operar no Brasil? Estritamente, não. Escolhe-se o .br (e, felizmente, a enorme maioria das iniciativas brasileiras o faz) é devido a sua características específicas como estabilidade, língua, custo, resiliência. Como exemplo, o fato do .br exigir CPF ou CNPJ faz com que qualquer eventual liitígio sobre o nome escolhido seja resolvível por aqui mesmo e sem reflexos internacionais. É um equilíbrio delicado: se um domínio passa se ser mais caro, ou ter mais exigências que suas alternativas, migração será esperada. Como já disse alguém no passado, “a Internet interpreta percalços locais como ‘defeito técnico’ , e buscará contorná-los”. Se as regras de um domínio específico passam ser mais duras ou caras, o que se verá é migração para alternativas mais simples. Obtem-se o oposto do que se buscava: ao invés de mais dados e conhecimento sobre os usuários,há perda significativa de informação local.

Uma internet segura e estável passa por dar aos usuários garantias de ela continuará atendendo aos conceitos de não-localidade da rede. O Comitê Gestor da Internet, criado em 1985 e saudado por toda a comunidade internet como um modelo adequado e multissetorial de sua governança, sabiamente denominou-se “Comite Gestor da Internet NO Brasil”, e não “DO Brasil”.

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terça-feira, 4 de julho de 2023

Utopias e Distopias

 Utopias e distopias

A Internet que conhecemos passou por várias inflexões em seu caminho, e muito provavelmente vários de seus precursores estranhariam o tipo de discussões e problemas que se debatem hoje. A data clássica de ativação da rede marcou-se em outubro de 1969 (o mesmo ano de Woodstock!) e o primeiro grande passo foi a adoção do TCP/IP em 1982. Lembremos que os governos tinham em vista outra suite de protocolos para redes de computadores: o modelo OSI/ISO, criado pela ITU e que geraria uma estrutura bastante hierarquizada. Quando, em 1986, a rede científica norte-americana NSFNET adotou o TCP/IP, com o expressivo apoio da comunidade tecno-acadêmica, ele tornou-se um “padrão de direito”. As características originais da Internet: uma rede distribuida, sem um ˜centro de controle˜, aberta a todos, construida pela adesão voluntária de milhares de redes autônomas pelo mundo, e sem reconhecer as fronteiras nacionais, encontrariam sua expressão máxima em 1996, quando J. P. Barlow escreveu a ˜Declaração de Independência do Ciberespaço”. Havia nos EUA à época, uma proposta de legislação para controlar o conteúdo na rede – o Decency Act – e foi reagindo a isso que Barlow encabeçou a posição da “comunidade Internet”. A tal lei acabou sendo revista, com a adoção da sessão 230, que aliás foi reafirmada há pouco tempo na Suprema Corte norte- americana. A “Declaração” de Barlow foi o coroamento do conceito de “rede aberta e livre”, com a descrição, nas palavras de Barlow, de uma comunidade literalmente utópica, e a proposta de um “mundo da Mente”.

Rever o que Barlow descreve em seu repto e confrontá-lo com o que temos, talvez nos fizesse reler o título “mundo da Mente” para “o mundo que mente”. Diz ele “… Estamos criando um mundo em que qualquer pessoa possa entrar sem privilégio ou preconceito baseado em raça, poder econômico, força militar ou local de nascimento. Estamos criando um mundo em que qualquer pessoa, em qualquer lugar, possa expressar suas crenças, por mais singulares que sejam, sem medo de ser coagida ao silêncio ou à conformidade…. Criaremos uma civilização da Mente no Ciberespaço. Que ela seja mais humana e justa do que o mundo que seus governos criaram antes - Davos, Suíça, 8 de fevereiro de 1996”. Quando disso vale, quanto é utopia e quanto passou a ser distopia?

E, adicionando a indefectível pitada de IA no caldo da Internet, há um outro ponto que chama a atenção: a possibilidade de retrabalhar o passado é reforçada! Explico: houve em Brasília uma exposição sobre a história da cidade, que contou com o apoio instrumental da IA. Não visitei a exposição, portanto não tenho base de julgamento, mas surgiu uma dúvida: seria confiável a reedição automatizada da história? Há diversos exemplos de contextos que são mal-entendidos pela IA (concedendo que IA “entenda” contextos…), mas o que desperta alguma preocupação é que, sem formas de verificação independente (ou sem paciência e tempo para isso), estariam os consumidores das versões sintética da história correndo riscos maiores de manipulação? Será que, mergulhados como estamos hoje no mar de desinformação e de “fake news”, veremos aparecer também a onda dos “fake olds”?

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O texto do J. P. Barlow:
https://www.eff.org/cyberspace-independence

John Perry Barlow, Internet Pioneer, 1947-2018
https://www.eff.org/deeplinks/2018/02/john-perry-barlow-internet-pioneer-1947-2018



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