segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O Fórum da internet

O IGF (Internet Governance Fórum), do qual a 10.ª edição passou-se em João Pessoa de 9 a 13 de novembro, tem sua origem na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação (WSIS ou World Summit on Information Society, em inglês), Genebra (2003) e Túnis (2005).

Sob os auspícios e nos moldes tradicionais da UIT (União Internacional de Telecomunicações, órgão da ONU em Genebra), o WSIS reuniria essencialmente representantes de governos, de reguladores nacionais e de grandes operadoras de telecomunicação, para discutir os rumos da “sociedade da informação”. Não há como não notar, entretanto, que o foco não declarado era “domar” a Internet ou, ao menos, tentar entender aquele fenômeno que se espraiava no começo de 2000. Em Túnis tratou-se de redigir uma “agenda” resultante da cúpula e, já então, houve uma contribuição de instituições não governamentais interessadas em discutir Internet. A WSIS criou um grupo de trabalho sobre a rede: o WGIG (Working Group on Internet Governance) e daquele grupo saiu a proposta de um fórum anual, o IGF, realizado pela primeira vez em Atenas em 2006 e com previsão inicial de cinco reuniões. Foi renovado em 2010 por mais 5 anos e é essa a fase que se encerrou em João Pessoa.

O IGF marca uma inflexão: o debate sobre Internet saiu da área técnica e acadêmica e tomou conta da comunidade. As operadoras de telecomunicações confrontavam-se com uma realidade desafiadora: enquanto seus negócios eram centralizados e bem controlados, a nova rede, disruptiva em muitos aspectos, era distribuída e usava padrões gerados em discussões abertas da IETF (Internet Engeneering Task Force), convocadas três vezes ao ano e em diferentes cidades. Governos descobriamhttps://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/o-forum-da-internet/ algo novo no ar que, se por uma lado poderia ser uma ferramenta para serviços e comunicação, por outro exibia um comportamento inusitado, ignorando fronteiras e legislações nacionais, dando acesso e voz a todos.

O formato do IGF comporta essa variedade. Ainda fortemente voltado à participação de governos, inclui expressivos setores da sociedade civil, crescente parcela de integrantes da área técnica, acadêmica e representantes de empresas. A participação é aberta a todos, mas o espaço físico que ocupa e sua “porta de entrada” são controladas diretamente pela ONU. O temas são abertos e livres e, como a Internet, desafiadores.
Não se tiram conclusões nem se geram documentos de consenso, mas fomenta-se a troca de ideias e de experiências, estimulando-se a expansão livre da rede com longa programação de painéis e palestras. Como exemplo, neutralidade de rede foi um dos pontos mais discutidos no 10.º IGF, com toda a tensão e polarização inerentes.

Dois pontos a destacar: a excelente infraestrutura que o Centro de Convenções de João Pessoa fornece aos eventos e, uma unanimidade, a vibrante inclusão de jovens da região latino-americana que, por um programa de auxílios e bolsas, foram selecionados a participar pela primeira vez de um evento desse tipo. Vint Cerf, um dos criadores da “linguagem” da Internet, o TCP/IP, foi um dos que saudou efusivamente a participação ativa dos novos debatedores.

Saí de lá não só otimista com o IGF, mas também com o gosto inesquecível da tapioca com queijo e coco, no café da manhã.

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30/11/2015 | 05h00

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Ecos de um futuro possível

"É hora de olhar para o futuro com audácia e, para o passado, com orgulho, a ver o quanto conquistamos"


“Admirável mundo novo, que abriga tais fantásticas criaturas…” Ao raiar do novo ano é hora de olhar para o futuro com audácia e, para o passado, com orgulho, a ver o quanto conquistamos. Lá se vão três séculos da derrocada total das ideias arcaicas, ultrapassadas e limitantes que Darwin disseminou. Libertamo-nos do jugo cruel da natureza e de seu critério defeituoso e insuficiente de seleção. Hoje, está em nossas mãos a escolha das características que nos convém como espécie humana e somos livres para seguir na direção correta. O futuro nos levará para além da similitude para a almejada homogeneidade. Dentro das categorias as quais pertencemos, somos iguais em tudo: em potência, aspirações, talentos, vocações. Somos a única espécie homogênea em todas as suas camadas.

Para isso tivemos que travar e vencer uma longa luta contra o obscurantismo e obscurantistas. O vicioso conceito de família, que escondia ideologias de segregação, foi superado. Famílias disseminavam procedimentos éticos e morais – e mesmo ideias religiosas – em formas raramente aderentes à Grande Norma. Isso finalmente foi superado e hoje os jovens recebem formação uniforme, a partir do Estado, sem as distorções que o clã familiar propiciava. Esparta estava, à maneira dela, certa neste ponto. Nos livramos do estorvo de uma história, repleta de opressão e de incorreções. Nada do que foi importa! A história sempre recomeça hoje e da forma certa.

Na genética, nós também vencemos barreiras. Há tempos que variantes humanas mais adequadas a funções braçais tornaram-se obsoletas com o uso de máquinas automáticas, mas agora atividades intelectuais também podem ser melhor executadas por inteligência artificial! Há uma melhor taxa de acertos, baseada em mais informação e não afetada por inconvenientes vieses emocionais humanos. Ainda na biologia, somos todos, agora, geneticamente redundantes, o que aumenta nossa resistência a doenças e melhora a expectativa de vida. A clonagem substituiu com enorme ganho os rudimentares métodos, ditos “naturais”, de propagação, com todos seus atrabiliários problemas. Usamos, sim, células humanas, mas de melhor procedência, após criteriosa seleção. O resultado são clones perfeitos, o que nos fornecem, automaticamente, um controle simples e efetivo da quantidade de indivíduos. Dessa forma, nós conseguimos sair dos temíveis 10 bilhões para pouco mais de 100 milhões, número que a Grande Norma considera adequado e sustentável para o planeta.

Finalmente, nunca esquecemos a busca da felicidade. Sabemos que a felicidade sempre está dentro de cada pessoa. O autossuprimento de felicidade é a receita para a paz e o progresso. Para isso, temos à nossa disposição uma miríade de tratamentos, aparelhos, cremes, unguentos e drogas. Eles nos libertam de quaisquer preocupações diversionistas e fazem com que as pessoas se sintam melhores consigo próprias a cada dia. “Olho para meu ‘eu’ e me satisfaço! Contemplo-me e me sinto feliz! Minha autoestima é cada vez maior e busco a felicidade, sempre. Para isso me esforço e com isso me regozizo… jizo… jZKJzJZj… HALT! UNEXPECTED FATAL ERROR – PLEASE WAIT… RELOADING…

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16/11/2015 | 05h00

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A sina da IANA

A sina da IANA

“Ai é luta, patuléia!”, título de um delicioso artigo de Vanessa Bárbara publicado em uma edição da Piauí de 2006, é um palíndromo – frase que pode ser lida, indiferentemente, da esquerda para a direita e vice-versa.  Ele serve bem para ilustrar a tensão, pendular, como a da 54ª reunião da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN, na sigla em inglês) recém-encerrada em Dublin, na Irlanda. A cidade é reduto de escritores como James Joyce – talvez o único que tem no mundo um dia de comemoração. O Bloomsday, comemorado em 16 de junho, é o dia dedicado ao personagem central de Ulisses. É dia de lotar os pubs e encher a cara com cerveja preta, enquanto se recita a rebuscada prosa de Joyce.

A cabeça do palíndromo: em 1998, um órgão do governo norte-americano, a National Telecommunications and Information Administration (NTIA) divulgava um green paper intitulado Uma Proposta para Melhorar a Gestão Técnica de Nomes e Números da Internet. Ela chamou candidatos a assumir a manutenção da raiz de nomes da Internet, função até então exercida pela Internet Assigned Numbers Authority (IANA). Entre outras atividades menos críticas, a IANA cuidava desta lista de “sobrenomes” que habitam o nível mais alto da rede. É o caso do “.org”, “.com”, “.br” e outros. A IANA era formada por uma pequena equipe de uns dois técnicos, sob orientação do sábio cientista da computação Jon Postel.

Em setembro de 1998, a NTIA anunciou a proposta vencedora: uma organização recém-constituída na Califórnia, a ICANN, que tinha Jon Postel entre seus fundadores, assumiria as funções da IANA. Postel seria o chefe técnico da mesma atividade que já exercia há anos, com senso e sabedoria.

Duas semanas depois, acontece o imprevisto: em outubro de 1998, quando a ICANN já absorvia as funções da IANA, Postel faleceu. Vint Cerf, pioneiro da Internet e colega de Postel, escreveu a requisição para comentários 2468, uma tocante apologia ao amigo. Com mais dúvidas, talvez, sobre a gestão da nova ICANN, a NTIA assinou, no começo de 2000, um contrato que estipulava que qualquer alteração na raíz de nomes (a função da IANA) seria avalizada pela NTIA. Ou seja, a NTIA, dos EUA, “supervisionaria” essas modificações. O contrato ainda sugeria que, após consolidação da ICANN, por volta de 2003, a NTIA poderia abrir mão dessa “tutela”.

Foi só em 2014, porém, que ela mostrou interesse em se afastar da função, “desde que a comunidade multissetorial defina como assumi-la”. Pesou nessa decisão, a pressão exercida pela comunidade e o processo que culminou, em abril de 2014, no encontro NETmundial, realizado no Brasil. A resposta à oferta da NTIA poderia parecer óbvia: repassar a supervisão à própria ICANN que, afinal, foi criada para isso em 1998. Mas, na Internet, nada é tão simples assim.

A cauda do palíndromo: o debate em Dublin, polarizado por interesses comerciais e políticos exacerbados por 15 anos, continuou quente, num cenário onde “inimigos do meu inimigo” podem ser usados como “aliados úteis” quando há tanto em jogo. As tensões acumuladas enquanto a NTIA exerceu a supervisão afloraram. Que destino dar à IANA? 1998 volta à cena em pleno 2015 e cometo, também eu, um palíndromo algo manco: “Agirá para mudar IANA? Ha! Na ira duma rapariga!”

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02/11/2015 | 03h00