terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Seguindo o outro...

Na Internet torna-se cada vez mais difícil encontrar um tópico que possa ser discutido com um mínimo de objetividade. Parece que conscientemente escolhe-se o confronto e os ataques ad hominem, seja por ser mais efetivo, seja por não exigir trabalho mental adicional. O papel que a Internet pode ter no acirramento deste comportamento mereceria uma análise dos que entendem de comportamento humano. Por ser perene entusiasta da inclusão de todos via Internet proporciona, arrisco-me a uns pitacos de diletante.

Rene Girard, um pensador falecido há seis anos, trata de características humanas que podem ter sido exacerbadas pela ferramenta que a rede é. Sobre ações e desejos, Girard afirma que normalmente mimetizamos, buscamos copiar a postura de alguém. Se, com conforto e facilidade, imitarmos nosso “modelo”, podemos pensar menos. Nossos próprios desejos seriam os desejos do outro, do indivíduo a que consideramos digno de imitar, e acabaremos por internalizar o mesmo desejo. Valorizamos algo, ou nos opomos a algo, apenas para ecoar o que nosso “influenciador” faz. E “influenciador” aqui vem a propósito, porque a analogia com a Internet parece patente. O próprio epíteto de “influenciador” já desvela a intenção...

Se mimetizar é intrinseco ao ser humano, há um aspecto de escala. Antes da comunicação ampla que temos hoje, poucos seriam suficientemente visíveis para serem escolhidos como “balizadores” de nossos desejos e ações. Poucos a seguir, mimeticamente. A rede “profissionalizou” essa atividade: hoje times de seguidores dos auto-propostos “influenciadores” alinham-se em campo, para as batalhas do dia-a-dia com muitos adjetivos e parca substância. Outro ponto que pode ser gerador de tensão e violência é a eliminação de barreiras contextuais. Como – e isso é sempre muito bom! – todos podemos falar e participar de qualquer discussão na rede, não temos pejo em arremessar indiscriminadamente frases contra quem não siga pela cartilha do grupo a que pertencemos e ecoamos. Em fase de euforia e deslumbramento não há tempo para aprofundamentos, sob o risco de se perder o momento da discussão. Assim não importam as credenciais dos outros – responderemos a qualquer um deles, e, se possível, num tom acima. Esse comportamento já existia no velho tempo do correio eletrônico. Em listas de discussão dizia-se que “os que menos tem a dizer, muitas vezes são exatamente os que tem mais tempo para falar”.

Segundo Girard, o que ele chama de crise mimética “é uma situação de conflito tão intensa que, em ambos os lados, as pessoas agem e falam da mesma forma, tornando-se cada vez mais hostis ao replicar a hostilidade do outro grupo. Em conflitos realmente intensos, as diferenças entre os lados em conflito, ao invés de se tornarem mais agudas, igualam-se”. Parece confirmar o que Nietzsche havia postulado, em Além do Bem e do Mal: “a insanidade é algo raro de se encontrar em um indivíduo. Já em grupos, partidos e épocas, é a regra”…

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Citações de René Girard em https://www.brainyquote.com/authors/rene-girard-quotes

"We don't even know what our desire is. We ask other people to tell us our desires. We would like our desires to come from our deepest selves, our personal depths - but if it did, it would not be desire. Desire is always for something we feel we lack."

"What I call a mimetic crisis is a situation of conflict so intense that on both sides people act the same way and talk the same way even though, or because, they are more and more hostile to each other... 
I believe that in intense conflict, far from becoming sharper, differences melt away."

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sobre discussões lista, em https://www.icann.org/en/system/files/files/transcript-strategy-panels-11mar14-en.pdf 
"This is Mike Nelson. I'm really glad you're focusing on these issues because there's Nelson's law of listeners, .which, the people with the least to say have the most time to say it."

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A frase de Nietzsche citada:
"Insanity in individuals is somewhat rare. But in groups, parties, nations, and epochs, it is the rule."
— Friedrich Nietzsche, Beyond Good and Evil
https://kwize.com/quote/13005























terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Efemérides

Dezembro é a época do ano em que comemoramos, quiçá de forma algo masoquista, o tempo em sua irresistível passagem… As práticas dezembrinas incluem os almoços e jantares com os amigos, a troca dos calendários nas paredes e o envio de cartões de festas com os melhores votos e desejos a todos. E mesmo com toda a especificidade e fluidez dos tempos de hoje, ao menos essa saudável e amistosa tradição parece mantida.

Quanto, por exemplo, a uma outra data referente à Internet no Brasil, a Abranet - Associação Brasileira de de Internet - comemorou semana passada seus 25 anos de fundação, e o fez com grande estilo. Do lado das palestras, por exemplo, houve destaque a temas humanos e técnico importantes, como economia, efeitos da Internet na sociedade -tema que precisa ser melhor tratado e analisado - e uma particularmente deliciosa: a do Amyr Klink, sobre suas peripécias transoceânicas, sua forma de encarar as dificuldades, e seus conceitos de vida, sob todos os pontos de vista, admiráveis. Fica a recomendação a quem se interessar de tentar recuperá-la na rede.

Ainda na linha das efemérides, ontem, 6 de dezembro, foi dia de S. Nicolau, o taumaturgo, bispo de Myra do século IV e em cuja história de generosidade para com os pobres e as crianças inspirou-se a tradição de Santa Claus, ou nosso Papai Noel. Nesta data, familiarmente, além de reunirmo-nos todos para uma tradicional refeição sempre baseada em peixe, lembra-se que é o momento de se montar a árvore de Natal. Aliás, São Nicolau, como o patrono dos marinheiros e navegantes, poderia levar-nos a considerar seu nome como padroeiro das navegações modernas, hoje feitas pela Internet, mas igualmente arriscadas… Mas como patrono da Internet em si já há outro forte candidato: Santo Isidoro de Sevilha, lá do século VI, que foi considerado o “último polímata” do tempo antigo. Ou seja, alguém que, como a Internet hoje, abarcava o conjunto de conhecimentos de seu tempo. Isso me traz outra recordação pessoal curiosa: na USP, anos 70, tínhamos acesso ao fonte do MCP – Master Control Program – o sistema operacional da antiga Burroughs. Lá, dentro do código do MCP, a rotina que mantinha a complexa base de dados de todas as variáveis do computador chamava-se Leibniz, certamente em homenagem a outro polímata que, à moda da tal rotina, conseguia compreender a totalidade do mundo que o cercava.

Termino com mais uma analogia com S. Nicolau: foram exatamente os marinheiros italianos, devotos do santo, que muitos anos após sua morte, e tendo Myra sido conquistada pelos turcos no início do século XI, acabaram por pilhar seus restos mortais e suas relíquias. Assim parte dos ossos de S. Nicolau foram de Myra para Bari, na Itália, e hoje há fragmentos deles espalhados pela Europa toda. Ou seja, é um santo geograficamente distribuído, como a própria Internet.

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Abranet: 
www.abranet.org.br

MCP - Burroughs:
https://en.wikipedia.org/wiki/Burroughs_MCP

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São Nicolau:
https://en.wikipedia.org/wiki/Saint_Nicholas
https://www.vaticannews.va/pt/santo-do-dia/12/06/s--nicolau-de-bari--bispo-de-mira.html
https://orthochristiantools.com/the-serbian-miraculous-icon-of-saint-nicholas-in-bari-italy/