terça-feira, 25 de maio de 2021

Onde mora o perigo...



Chamou a atenção na semana passada uma carta aberta da ISOC (Internet Society) ao primeiro-ministro do Canadá alertando sobre sérios riscos à Internet e às liberdades individuais, embutidos em legislação que se está discutindo no Canadá. O projeto de lei visa oficialmente a nivelar o tratamento de empresas que trabalham com transmissão (“broadcast”). Alega-se, com bastante razão, que a lei de 1991, que regula as transmissões de rádio e tevê, não contempla transmissões via Internet, então ainda incipientes.

A carta, assinada por dezenas de indivíduos historicamente ligados à Internet, causa alguma surpresa dado que o Canadá sempre foi considerado um baluarte da Internet aberta e livre, sendo frequentemente citado como exemplo. O que estaria ocorrendo de errado agora? O cenário nestes novos tempos é amplo e complexo. Note-se, por exemplo, o que passa em governos como o da Grã-Bretanha, que estão se movendo para coibir o uso de criptografia. Os argumentos variam, desde o de proteger crianças, até o de combater terrorismo, mas são frágeis a um exame mais detalhado. Certamente não são as figuraas do submundo que acabarão sendo atingidas, mas sim os usuários comuns, que tentam conservar o pouco que lhes resta de privacidade. São esses as potenciais vítimas de uma proibição do uso da criptografia, ou de seu enfraquecimento com a criação de “portas dos fundos” em provedores e aplicações.

Outro ponto, também objeto da carta aberta, é o possível ataque a estruturas básicas da rede. Uma coisa é, ao combater abusos e crimes atuar sobre aplicações e plataformas; outra, completamente diferente, é atingir a estrutura de transporte e interconexão que constitui o núcleo da rede. Ações diretas nessa infraestrutura podem resultar em imediata quebra de neutralidade da rede, impedindo a livre navegação e gerando zonas de exclusão. Se, sob o pretexto de sua própria proteção, os usuários forem proibidos de chegar a locais da rede, além da óbvia tutela de adultos, abrem-se as portas para uma infinidade de violações de liberdade muito mais sérias.

Finalmente, outro argumento que também se veste de “protetivo” é o de buscar eliminar conteúdos em seu nascedouro, antes mesmo de sua distribuição, para “coibir danos maiores”. De alguma forma isso me lembra o filme “Minority Report”, onde um sistema de previsão – baseado em videntes humanos, mas nada impederia seu transporte para a inteligência artificial – identificaria um “criminoso” antes mesmo que um crime fosse cometido, e já se armava sua “detenção preventiva”. Indo mais longe, Cesare Lombroso pregava no início do século passado que alguém estaria predestinado a ser mantiroso (ou violento, ou ladrão) baseando-se em suas assimetrias e medições faciais. Nos livramos de Lombroso, mas hoje há uma confusão, talvez proposital, entre definir formas de punição a delitos, e buscar maneiras de impedir que eles sequer ocorram. Levando o argumento ao limite, se todos forem proibidos de se expressar, não haveria como cometer crimes de calúnia, difamação ou injúria… Ou seja, até para coibir e punir abusos é necessário, a priori, haver liberdade de expressão para que, depois, se possa buscas os eventuais abusos. Suprimir a liberdade de expressão como forma de limitar abusos é condenar a priori, mesmo que travestido de proteção.

A carta sublinha riscos deste tipo. Certamente há necessidade de se discutir regulação de camadas sobre a Internet, mas preservando infraestrutura e indivíduos. Ao se buscar um regime uniforme para plataformas de transmissão de conteúdos , seja via Internet, seja pelos meios tradicionais de rádio e tevẽ, deve-se cuidar para não colocar no mesmo balaio os “broadcasters” e o que os indivíduos produzem com sua liberdade de expressão; Todos arcam, claro, com a responsabilidade pelas suas ações, mas sempre a posteriori e seguido o rito judicial canônico.

===
A carta aberta da ISOC a Justin Trudeau;
https://www.internetsociety.org/open-letters/open-letter-to-government-of-canada/

e uma análise da proposta lei canadense:
https://www.theglobeandmail.com/politics/article-what-is-bill-c-10-and-why-are-the-liberals-planning-to-regulate-the/

===
Criptografia e UK:
https://bazzacollins.medium.com/how-the-nspcc-rigged-its-report-on-the-dangers-of-end-to-end-encryption-bcd4dce0c410

===
Texto sobre Cesare Lombroso, na Wikipedia:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cesare_Lombroso

===
Um resumo de Minority Report e o "trailer"
https://advocaciamarizdeoliveira.com.br/the-minority-report/
https://www.youtube.com/watch?v=8E0sX5So_uo






terça-feira, 11 de maio de 2021

Arcaísmos

Um “ano de cachorro” equivaleria a sete anos humanos. A rápida evolução da Internet ocorre a passos de “anos de cachorro”, senão ainda mais velozmente. Os trinta anos desde a conexão à Internet já teriam gerando mais mudanças que dois séculos convencionais, e resgatar o que então acontecia na comunicação via rede é quase uma atividade de arqueologia.

A grande atração dos anos 90 era o correio eletrônico: quem o usava era digno de consideração, e receberia uma resposta ágil, mesmo que seu contactado fosse uma sumidade de outra forma quase inacessível. Rapidamente o correio eletrônico tornava-se ubíquo.

Ainda em tempos de Bitnet, resolvi acompanhar uma lista de acadẽmicos brasileiros no exterior, a Bras-net. Com tres sub-listas de distribuição, EUA, Inglaterra e Brasil, para uma distribuição mais eficiente, eu, que a imaginava um grupo sisudo e circunspecto, encontrei lá um pessoal animado e bem-humorado. Além de dicas sobre onde encontrar pertences para fazer uma feijoada nos EUA, a Bras-net tinha... uma “rádio” via e-mail (!). A RUI, Rádio Uirapuru de Itapipoca, era tocada pelo “d.j. Mauro Pacatuba” (Mauro Oliveira, um cearense doutorando na UCLA). E a RUI transmitia até festa junina usando texto!. Uma “pândega!”, diriam os antigos.

Mas enquanto o correio eletrônico se expandia entre os acadẽmicos, existiam ainda outras formas de agregar interessados: as BBS (Bulletin Board System), usando linhas telefônicas, que contavam com um Sysop (o coordenador da BBS, usualmente seu dono) cuidando do funcionamento dia e noite. Os usuários ligavam para o tronco da BBS munidos de um modem, recebiam e enviavam recados aos demais membros, além de trocar informações e debater. Eram comunidades restritas muito ativas e, sob a batuta do Sysop, formavam vínculos de amizade que perduram até hoje.

Das muitas BBS no Brasil, cito apenas duas: a CanalVip de 1986, talvez a mais antiga, com o Sysop Paulo César Breim (PCB), e outra, a Mandic de 1990, que ganhou notoriedade e importância nas mãos do Sysop Aleksandar Mandic. Assim que as BBS notaram a clara vantagem de conectarem suas comunidades a uma rede ampla, iníciou-se a atividade de “provimento de acesso” à Internet, com BBS atuando como provedores. Nos EUA a “invasão” da Internet por usuários não acadêmicos já havia acontecido quando a populosa BBS CompuServ carreou centenas de milhares de usuários, mudando radicalmente o cenário da Internet.

Semana passada perdemos o Mandic, personagem emblemática do “caos criativo” que a Internet inicial vivia. Reforça-se a sensação de que é uma época que se vai. A trajetória do Mandic está bem documentada em vários artigos, mas a figura humana nem sempre transparece nos textos. Ele era de movimentos não previsíveis, um “alvo móvel”, como numa das frases de que gostava: “pior do que mudar de idéia, é não ter idéia para mudar”. Desde o começo difícil e ousado, até o sucesso espetacular obtido no final dos 90 passou ele por muitas fases diferentes. Chegou a possuir automóveis de luxo e até um pequeno avião, mas reavaliou seus objetivos, vendeu tudo e se limitou a um fusquinha azul, 72. Ao mesmo tempo em que mantinha uma sofisticada coleção de vinhos, ia comer em bares simples, desde que com comida e preço honestos, mas sem esnobar os lugares da moda. Mandic foi, sobretudo, um empreendedor com visão do futuro que sempre apoiou a equipe técnica de escol que tinha montado, e preservou seu clã de amigos. Permito-me um falso cognato com seu sobrenome: a avó paterna dele era de Corfu, Grécia. Em grego, “profetizador” é “mandis”, donde vem “cartomante”, aquele que adivinha vendo cartas. Se Mandic previu o futuro observando a rede (que é “dictyo”, em grego), poderia ter cunhado o neologismo “dictiomante”. Termino com duas das inúmeras frases que tanto amava, e que continuam válidas: “Se for mentir, seja breve” e “Pense grande! Afinal ninguém jamais falou de ‘Alexandre, o Médio’”.

===

Sobre a Bras-net e a RUI:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/8/20/ilustrada/19.html
https://amauroboliveira.wordpress.com/4-barca-extensao/e-livros-publicados/apostilas/
https://amauroboliveira.files.wordpress.com/2011/05/1992-no-reino-encantado-do-barnet-parte-1.pdf
https://amauroboliveira.files.wordpress.com/2011/05/1992-no-reino-encantado-do-barnet-parte-2.pdf

===


===
Alguma informação sobre listas de discussão no começo da rede no Brasil, em 
BR Domain | gomide@brfapesp.ansp.br |Brazilian Mailing List Info
            mailserv@brfapesp.ansp.br
            listserv@fapq.fapesp.ansp.br
            mailserv@fpsp.fapesp.ansp.br
            listserv@brfapq.ansp.br
            (Note: This is NOT a mailing list itself, rather, it is a way)
            (to find out more about Brazilian mailing lists. Send the command)
            (HELP or LISTS to any one of the above addresses.)
BRAS-CON  | listserv%frors12.bitnet@cunyvm.cuny.edu |Brasnet na Europa Continen.
BRAS-NET  | listserv%pccvm.bitnet@cunyvm.cuny.edu |Brazilian Net(Portuguese)
            listserv@vm1.lcc.ufmg.br
            listserv@brufmg.anmg.br
            listserv@brufpb.anpb.br
e em: 
https://crln.acrl.org/index.php/crlnews/rt/printerFriendly/20472/24846
BRAS-NET: Brazilian Discussion Group/Network. To subscribe send message to: <brasnet- request@cs.ucla.edu>. Several other Brazilian interest groups exist. To get more general info on these other lists, try sending an e-mail message to: <gomide@brfa pesp.bitnet> or to: <listserv@fapq.fapesp.br>.
===