terça-feira, 27 de outubro de 2020

Pior que a extinção

Um artigo da BBC Future alerta para um possível destino que nos espreita, e que poderia ser pior que a própria extinção. O cenário descrito considera que a junção de inteligência artificial com objetivos globais totalitários pode levar a uma sociedade permanentemente sob controle, e onde a vida seria tão miserável que a extinção pareceria uma benção. Argumenta que a possiblidade de uma extinção por fatores independentes ao homem, como um meteoro ou outra calamidade, é milhares de vezes menor que a possibilidade de cairmos num poço sem saída, perdidos os modelos e os contrastes que poderiam nos libertar.

Houve não poucos momentos em que regimes totalitários se impuseram em partes do globo, mas o simples fato de haver formas de cotejá-los com outros usos e costumes, de poder cruzar fronteiras e encontrar novos ares e, principalmente, de manter presentes lições transmitidas por gerações anteriores e por tantos pensadores que escreveram sobre liberdade, ética e sociedade, preservava uma saída. Hoje vê-se uma expansão das formas de controle que não encontra resistência. Pelo contrário, alega-se que, em busca de segurança, há apelo público por “mais controle”.

Esquecer ou reescrever a história, sob diversos pretextos e argumentos é outro sintoma. Reduzir tudo a um “erro milenar”, de que a nova humanidade se redimiria relegando-o à lixeira, e recomeçar do zero a partir de agora não é muito diferente da queima de livros em Fahrenheit 451, ou do lema de 1984 “quem controla o passado, controla o futuro e quem controla o presente controla o passado”.

O medo é outra forma eficaz de tolher a liberdade humana. “Só quem ultrapassa seus medos é verdadeiramente livre”. Mesmo sem analisar possíveis justificativas, hoje se estimula um medo pânico sobre muitos tópicos e de muitas maneiras. Usa-se a busca pela auto-preservação coontraposta a um comportamento mais estóico e desprendido, que hoje seria considerado “loucura”, e um atentado contra a segurança geral. Outro insumo reside no poder de gerar vídeos artificiais muito críveis, que mimetizam pessoas e simulam discursos. Assim também as preferências de cada um podem ser induzidas, resultando numa submissão segura a longo prazo. Quando um fato é indistinguível de um artifício e quando medo em tudo que se apresenta à nossa frente, aceita-se de bom grado uma barganha pela liberdade.

De volta à inteligência artificial, a possibilidade de uma análise detalhada das vulnerabilidades e suscetibilidades de todos através da coleta de infinidade de dados que ficam em redes sociais, de nossa movimentação flagrada por câmeras, e do que fazemos pela rede, denota o tamanho dos riscos a que estamos expostos. Um potencial experimento de “controle social” apoiado nessa analise profunda executada por mecanismos de inteligência artificial, poderia ser plenamente bem sucedido, e extirpar permanentemente qualquer possibilidade de escape.

Resta ver que ações podem ser tomadas para prevenção dessa distopia. Em casos anteriores, houve formas de saída; o mais recente talvez tenha sido o risco de uma hecatombe nuclear, ao menos parcialmente neutralizado. É imperativo manter análise lúcida de tudo. Ambrose Bierce, satírico escritor do século XIX, em seu “Dicionário do Diabo” já havia descrito esse risco. Em dois verbetes do Dicionário ele crava:
“Liberdade: é
o bem mais precioso da imaginação”, e
“Louco: indivíduo afetado por alto grau de independência intelectual”.

===
O artigo da BBC Future:
https://www.bbc.com/future/article/20201014-totalitarian-world-in-chains-artificial-intelligence

===
O Dicionário do Diabo, de Ambrose Bierce em PDF:
https://www.fulltextarchive.com/pdfs/THE-DEVIL-S-DICTIONARY.pdf

===
Frases do 1984 de George Orwell, incluindo a citada no texto:
https://www.pastemagazine.com/books/1984/the-best-quotes-from-1984-by-george-orwell/


===
https://link.estadao.com.br/noticias/geral,pior-que-a-extincao,70003489909
"Em Fahrenheit 451, livros são queimados para evitar que os cidadãos leiam e desenvolvam censo crítico"


terça-feira, 13 de outubro de 2020

A lei de Postel

A forma da governança da Internet é sempre tema de debates e confronto de opiniões, especialmente em tempos assim difíceis e complicados. Afinal, de que meios a sociedade deveria lançar mão para evitar os danos e riscos a que estamos expostos, enquanto preserva a civilidade e a volta da boa discussão de ideias? Tivemos há quatro dias um interessante painel sobre o jornalismo neste cenário de muita tecnológia, concentração de poder e crescente polarização da sociedade. Como escapar do caos e da barbárie que parecem nos espreitar?

Nesse debate é importante que se preservem os conceitos que fizeram da Internet o sucesso que é. Estes princípios eram presentes na definição de sua arquitetura, como inter-rede aberta, livre e sem controle central, e cujo único requisito para a adesão é que as redes ingressantes implementem os protocolos técnicos definidos e adotem identificadores coordenados, para a funcionalidade do todo. Esse conjunto de protocolos é o TCP/IP, definido por Vint Cerf e Bob Kahn e oficialmente implantado em toda a Arpanet em 1 de janeiro de 1983.

É inquestionável a solidez técnica da solução adotada em 1983, haja vista sua resiliência e a capacidade de suportar um incremento de milhões de vezes na carga de trabalho e capacidade de comunicação. Sobre essa estrutura aplicações são livremente criadas e oferecidas. Algumas, como a Web, ganharam tanta expressão que por vezes são confundidas com a Internet em si. Outras provêm a seus usuários facilidades e atrativos que os mantêm em sua órbita, fazendo-os esquecer da riqueza que também existe fora dos muros daqueles jardins.

Assim, há que se distinguir o que é a Internet em essẽncia, cujos princípios e conceitos devem ser preservados e defendidos, das construções sobre ela, que prometem frecursos e conforto, mas que também são fonte de abusos, de riscos aos usuários, além de representarem uma grande concentração de poder. Na ânisia de aplacar o que nos aflige, cuidemos em não propor “emenda que saia pior que o soneto”.

Voltando ao que um amigo chamou de a “belle epoque” da Internet, Jon Postel, um pioneiro da rede, enunciou em 1980 um princípio de robustez para o TCP/IP que acabou conhecido com “a lei de Postel”: para a rede se manter sólida e funcional, devemos ser conservadores no que fazemos, e liberais no que aceitamos dos demais”. É a própria definição de comportamento tolerante e sensato. Extrapolemos a “lei de Postel” para o comportamento dos usuários da rede e resulta que, se é certo que receberemos coisas indesejadas, falsas, ofensivas, até perigosas, de nosso lado, porém, deveríamos sempre agir de forma ética e contida.

Os fados, os ventos, as redes sociais, os ingressantes encantados com o poder de voz que a rede lhes trouxe, fizeram com que a sábia mensagem de Postel não apenas fosse praticamente esquecida, mas que seu oposto ganhasse espaço e prevalência. A moda hoje é falar desbragadamente sobre tudo e para todos, esperando que nossa voz ecoe e tenha o impacto que gostaríamos, ao mesmo tempo em que nos irritamos com o que recebemos, especialmente se confronta nossa posição. Somos zelosos em não aceitar o chega até nós, e liberais no que enviamos aos demais. Prezamos nossa liberdade para falar o que for, para qualquer um, mas nos sentimos ofendidos e buscamos impedir que nos chegue o que não agrada. É esse mecanismo que inibe o debate de idéias e isola os indivíduos atrás de muros e ilhas sociais radicalizadas. É a “anti-lei de Postel”, que trabalha pela barbárie. Recuperemos o sensato e construtivo espírito da lei original.
===
A lei de Postel https://twitter.com/Axelisys/status/1278957787280785408?s=20

===
Jon Postel
https://img.estadao.com.br/fotos/crop/640x400/resources/jpg/4/6/1602522046364.jpg