Estamos terminando 2020, um ano que desafia e inquieta a todos. Imaginávamos que grandes mudanças culturais e comportamentais exigíssem um período extenso de tempo, mas, nas condições excepcionais de 2020, um ano pareceu bastar. Evoluimos e vemos um mundo diferente e, quem sabe, também um homem diferente. “Evoluir”, em si, não traz um sentido inerentemente positivo: afinal um simples resfriado pode evoluir para uma pneumonia, e essa pode evoluir para óbito…
De muitas formas a pandemia nos levou a uma crescente simbiose com a tecnologia e com a máquina. Se máquinas eram extensão de nossos corpos, hoje são a extensão de nossos sentimentos e conexões. Sem o contato individual, sem os encontros nas praças públicas, sem as álacres e amistosas confraternizações natalinas, a interação se dá via ferramentas digitais que, por mais completas, carecem do calor e da informação subjetiva que há no ambiente presencial.Dependemos cada vez mais da tecnologia que adotamos. Sempre que acontece uma pane em serviços de gigantes da tecnologia, sobrevem desorientação angústia e perplexidade. Então, o que considerávamos de uso garantido e permanentemente disponível, pode esfumar-se no ar? Saberíamos ainda, agora sem contar com o apoio dos algoritmos e do ferramental que nos alimentavam automaticamente, como chegar às informações de que necessitamos? E se até mesmo as decisões que tomamos estiverem sendo mais e mais delegadas à tecnologia, ficaremos sem ação?
Nos anos 90, quando começou a expansão do correio eletrônico e das listas de discussão - precursoras das redes sociais - um detalhe ficou claro: muitas das acaloradas diatribes nas listas eram devidas a simples mal-entendidos: alguém tentara ser irônico num comentário que acabou entendido literalmente. A expressão taquigráfica sintética, tida como “factual”, carece das nuances da linguagem falada, ou de um texto mais rebuscado. Uma forma de se contornar o problema foi adicionar indicadores de humor, “emoticons”, à época simples caracteres justapostos. Acrescente-se :-) e a frase será entendida como de ironia e humor. Mas como o diabo está sempre atento a detalhes, e se é tão fácil alguém ser mal-entendido, talvez isso possa ser usado como uma “característica” e não uma “falha”. Ou seja, pode-se explorar a pressa e a ingenuidade do leitor superficial para outros fins pouco éticos. Com todos se falando via rede hoje, criar tensões, movimento e engajamento é bem fácil: basta tirar proveito da insopitável tentação que temos de tomar partido, de dar opinião sobre tudo que nos chega, mesmo que seja uma simples manchete. Uma discussão reduzida a uma frase diferencia-se muito pouco de troca de insultos ou de dogmatismo. E há a clara tendência de aglutinação: afinal quem correria o risco de ir contra a maré que se forma?
Por fim, diversas historietas de ficção científica, que colocavam as criaturas tecnológicas num nivel próximo ou até superior ao humano, parecem ter migrado para a realidade. Já há quem pretendeu unir-se a um equipamento, por achar nele mais ressonância que num humano. Bem… isso não é exatamente novo: segundo a mitologia, Pigmalião, rei de Chipre, era um escultor muito talentoso e moldou uma estátua tão perfeita que dela se apaixonou, e lhe deu o nome de Galatéia. Por sorte, Afrodite apiedou-se do amor que Pigmalião mostrava pela estátua e fez com que, a um beijo, Galatéia ganhasse vida. Mesmo que surjam robôs belíssimos e espertos, não parece sensato colocar nossas esperanças nas mãos de Afrodite…
Que tenhamos todos um ótimo Natal, e que 2021 nos seja leve!