domingo, 11 de dezembro de 2016

De 1998 a 2016

A função da IANA liga-se à necessidade de documentar os consensos atingidos na gestão da rede. É também o ponto de referência para recursos coordenados, como os nomes de domínio e números IP (Internet Protocol). Em uma rede aberta e distribuída como a Internet, para que não haja colisões, dúvidas ou incoerências em sua operação, coordenação é fundamental. 

A IANA, como tudo na Internet original, era quase informal, a ponto de se confundir com seu gestor, Jon Postel, falecido em 16 de outubro de 1998, o início da transição.

Postel (IANA) concentrou três papéis: o de editor dos RFCs (Request for Comments), documentos da rede que definem os padrões, protocolos e parâmetros a seguir; o de coordenador da distribuição global de números IP; e, o que se mostraria mais crítico, de gestor da raiz de nomes – a lista que agrega os “sobrenomes” básicos (.com, .org, .ar, .br, .eu etc) cujo acesso é indispensável a todos que usam a rede.

Cuidar da raíz inclui adicionar novos “sobrenomes”. Como exemplo, quando o .br, que não estava em uso mas com existência prevista na tabela de códigos de países ISO-3166, foi solicitado, Postel o delegou aos que operavam a rede acadêmica no Brasil em abril de 1989. A pouca coordenação de que a Internet necessita para funcionar concentra-se na ação da IANA.

Há em 1995 uma mudança importante: o registro de .com, .net e .org é repassado à iniciativa privada e o registro de nomes sob esses domínios passa a ser cobrado. Uma discussão sobre como “distribuir” essa receita levou a duas decisões: a criação da figura do “registrar”, com exclusividade no contato com os interessados em registrar domínios, deixando ao "registry" unicamente da parte técnica; e a ideia de criar mais domínios genéricos que competissem com os três existentes (.com, .net e .org).

Por seu lado o governo norte-americano, atento ao potencial de negócios que a Internet traria, chama o DoC (Departamento do Comércio) para a Internet, como “consolidador” da iniciativa acadêmica, onde já atuava Postel , apoiado por recursos do DoD (Departamento da Defesa).

A tensão crescente entre Postel e o governo foi marcada pelo “green paper” do DoC, fevereiro de 1998. Nele estava estabelecido que a IANA deveria ser profissionalizada e assumida por uma Instituição sem fins de lucro, multissetorial. A ICANN assume esse papel em setembro e tudo parece se encaminhar para uma solução de consenso: Postel assumiria a chefia técnica da ICANN e assim, dada a figura inconteste que ele sempre foi, a confiança seria mantida.

Ocorre que, como diria Nelson Rodrigues, o “Sobrenatural de Almeida” interveio e… Postel faleceu após duas semanas. A falta de alguém com a sabedoria e reconhecimento de Postel fez o governo americano recuar no repasse de IANA, firmando um contrato com ICANN em que se reservava o direito de aval em qualquer alteração na raiz de nomes. E esse contrato foi sendo renovado a cada três anos até ser encerrado em 2016. A transição, protelada pela morte de Postel, finalmente se completou 18 anos após.

Feliz Natal a todos!

domingo, 16 de outubro de 2016

Bárbaros às Portas!

Quando Aníbal, o cartaginês, cruzou a Europa desde a península ibérica até Roma, o grito de horror que se ouvia na cidade era “Hannibal ante portas!”. Roma resistiu a Aníbal, mas caiu 600 anos depois, quando o bárbaro Odoacro depôs o último imperador romano do Ocidente em 476, e cravou o fim da Idade Antiga. Mais de um milênio após sua fundação, Roma caia, mas nem todo o Império Romano. A leste, Constantinopla, a nova Roma, capital do império do Oriente, aguentaria outros mil anos e apenas em 1453 cederia aos turcos. O que teria permitido ao Império Bizantino essa grande sobrevida em relação à parte ocidental? Talvez o trunfo fosse sua blindagem, uma “barreira de entrada”. Era um triângulo encravado numa península, com dois lados banhados pelo mar, onde jazia pesada corrente de ferro, e uma extensa muralha cercando a cidade toda. Roma, construída sobre sete colinas, era mais difícil de proteger.


A “barreira de entrada”, fosse militar, com muros, ameias, fortificações, ou econômica, com o controle das riquezas, dos meios de produção, maquinário, investimentos, ou mesmo legal e cultural, com leis, alvarás, costumes e ritos, era uma garantia de estabilidade. Afinal os impérios sempre cuidam de se defender, inibindo a formação de competidores que os ameacem.

Hoje, com a Internet, esse cenário muda drasticamente. Não apenas a dinâmica gera prazos muitíssimo menores, como “barreiras de entrada” tem sido reduzidas a pó. Os ataques acontecem em ondas, em setores que se sentiam estabelecidos e seguros em conforto. Comércio, informação, interação, criação de público cativo e de comunidades, foram as primeiras manifestações. Mas não para aí: temos os aplicativos, o Uber, o Blockchain, e muitos mais pela frente.

Haveria como prever fenômenos como Uber e outros na Internet? Ninguém tem bola de cristal, mas talvez valha a pena tentar alguma abordagem, mesmo incompleta e falha. A Internet, em certa medida, assemelha-se a uma “onda bárbara” que ameaça as fortificações que temos. “Barreira de entrada” antigas, em muitos casos desaparecem. Ninguém precisa mais de grandes investimentos ou complexas equipes de apoio para ganhar notoriedade e riqueza. Para facilitar as coisas, do lado do consumidor também houve uma grande baixa de expectativas: a seleção por qualidade e custo simplificou-se – hoje, na Internet, há de tudo para todos, e com qualquer padrão de qualidade (ou de falta dela).

Uma forma de tentarmos prever os próximos passos da rede é descobrir fraquezas, “jardins murados” que atrairão ataques. Blindagens baseadas apenas em leis, licenças e burocracia são fáceis de derrubar no mundo novo. Se, para alguém ser taxista, o busílis era, além habilitação explícita, ter a posse de um alvará, eis aí um espaço promissor! A Internet, como um organismo oportunista, identificará no “sistema imune” do mundo tradicional, pontos fracos que sejam atacáveis e rendosos. Pode ser fácil controlar a matéria dentro de fronteiras nacionais, mas a Internet atua no “éter”, de forma transnacional, e contornará esse obstáculo. “Não há matéria na Internet”, já havia postulado John Parry Barlow há 20 anos. As velhas portas balançam!
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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,barbaros-as-portas,10000082453
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https://media1.lajumate.ro/media/i/new_details/0/127/12738950_hannibal-ante-portas-slavomir-nastasijevic_1.jpg



domingo, 2 de outubro de 2016

Snapchat e o Bolero de Ravel

Num quadrinho sobre “etiqueta à mesa”, alguém pergunta se o lugar certo do celular é à esquerda, com o garfo, à direita com a faca, ou acima, com os talheres de sobremesa. Deveria ser uma piada… Não tenho certeza se ainda é. Como se diz, o celular e a rede aproximaram os distantes e afastaram os próximos. Duas pessoas digitando sua conversa pelo celular, a metros de distância, não mais espanta.

Essa abundância de comunicação, por vezes superficial, instantânea, onde todos falam e ouvem o que querem e o que não querem, sem tempo de reflexão, é uma característica ambivalente. A possibilidade de ampla comunicação é uma das grandes conquistas positivas da Internet. Por outro lado, há a pletora de fotografias, de vídeos que todos tiram e todos mandam o tempo todo. É um momento passageiro de deslumbramento, ou algo definitivo? Quem viver, verá.

A transformação no comportamento é especialmente notável entre os mais jovens. Mário Quintana capta magnificamente essa mudança: “Quando guri, eu tinha de me calar à mesa: só as pessoas grandes falavam. Agora, depois de adulto, tenho de ficar calado para as crianças falarem.” Mas é prematuro tentar dar valor positivo ou negativo a isso. Há de se aguardar uma estabilização. Um exemplo vivo dos novos tempos são os aplicativos preferidos dos jovens, dentre eles o Snapchat. Só o conheço tangencialmente, mas sei que a agilidade, a possibilidade de permitir alterações bem humoradas em fotos e a pouca duração dos dados que por ele transitam o fizeram cair no gosto deles.

A exibição pessoal sem limites é característica da época, de narcisismo e de hedonismo. Mostramo-nos a todos, de todas as formas, e ainda por cima nos ofende Snapchat e o Bolero de Ravelmos se alguém critica o que postamos. A falta de critérios sobre o que comunicar faz com que a privacidade, já tão ameaçada pela Internet, fique ainda mais vulnerável. Mesmo a promessa de volatilidade dos dados do Snapchat deve ser vista com suspeição: é sempre bom relembrar que a Internet não esquece e, pior, insiste em manter aquilo que mais gostaríamos de esquecer. Um deslize, uma foto comprometedora, uma frase inadequada, nos assombrarão no futuro. Hoje, à revelia do candidato, um currículo é enriquecido pelo que ele tem feito, ou pior, pelo que dizem dele na rede, seja verdadeiro ou falso. É inegável e espantoso o potencial da informação.

Enquanto pensava no assunto, eu assistia ao Bolero de Ravel pela Sinfônica de Londres, regida por Valery Gergiev, e tive uma “revelação”: há várias leituras do Bolero e uma interessante seria compará-lo à evolução do bicho-homem em direção à racionalidade e à tecnologia.

O Bolero começa com um sutil rufar de tarol (a aurora do pensamento?), depois madeiras, cordas em pizzicato. O tema obsessivo segue com toda a orquestra assumindo-o, numa tensão crescente (idade clássica?). As cordas entram uníssonas, metais, tímpanos (revolução francesa?). Mais percussão, gongos, bumbo (grandes guerras?). E, quando afinal o progresso e a tecnologia estão no clímax, há uma rápida mudança de tonalidade, um acorde fortíssimo e o aterrador e dissonante final. Terminaremos assim?
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https://link.estadao.com.br/noticias/cultura-digital,snapchat-e-o-bolero-de-ravel,10000079487
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https://www.youtube.com/watch?v=ODeNHRtVNO4
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https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQHQYhp7nirbmW-2Gm38_QhEd0Luxrl5Yg9xg&usqp=CAU



domingo, 18 de setembro de 2016

Intenção e Resultado

No caminho para Ilhéus, na Bahia, notei o mesmo que em muitos outros lugares: qualquer bodega despretensiosa anuncia Wi-Fi aberto. E isso é muito bom para nós. Em 2009, dois anos após o caso Cicarelli, que gerou um primeiro bloqueio a uma aplicação, o Comitê Gestor da Internet no Brasil divulgou um decálogo cujo objetivo básico era arrolar e defender conceitos fundamentais da Internet livre e aberta. Foram quase dois anos de discussão, dentro de um comitê multissetorial, com representantes de todas as áreas, de governo ao terceiro setor, até se lograr consenso.

À época prosperava a discussão sobre que legislação seria adequada para a rede, esse mundo ainda novo. Vimos prevalecer a sensatez. Ao invés de uma lei punitiva optou-se por legislação principiológica, de balizamento de direitos e deveres: o Marco Civil da Internet no Brasil. A lei n.° 12.965/14 foi sancionada em 2014, após anos de debates públicos. Ela inauguraria uma instigante forma da comunidade discutir abertamente projetos de lei e foi saudada internacionalmente como a mais moderna legislação a tratar da rede.

Tudo parecia bem, mas – e é aí que a porca torce o rabo – há sempre aquelas “boas intenções”, das que abundam no reino do Tentador. Hoje tramitam dezenas de projetos que visam a modificar o Marco Civil, alguns de forma sutil, outros expressamente. Há, por exemplo, uns que pretendem redefinir conceitos da rede, outros propõem exceções ou adições que descaracterizariam seu ânimo original. Há os que propõem, por exemplo, que para usar o Wi-Fi num restaurante tenhamos que preencher um cadastro! Voltando ao caso de Ilhéus, imagine-se ter que preencher uma ficha de cadastro com nossos dados pessoais completos, CPF, endereço etc. Estaria o Brasil no caminho da “inovação retrógrada”?

Lembrei-me da Revolução dos Bichos, de Orwell. Lá, após a reunião dos animais em prol de seus interesses e coordenados por porco velho, o Major, a comunidade estabeleceu um conjunto de sete regras a ser seguido por todos e para o bem geral. Entre as regras estavam: os animais não dormirão em camas, nem beberão álcool, nem matarão outros animais. Em resumo, os animais serão todos iguais entre si.

Claro que o consenso e os princípios iniciais foram sendo desvirtuados pelos que tiveram mais condições e poder. Na alegoria de Orwell, em pouco tempo outro porco, o jovem Napoleão, passa a liderar a comunidade e instala-se com seus apaniguados na casa dos humanos. Adota o calor e o conforto da cama, o gosto pelo uísque e a embriaguez do poder. Inconspicuamente as regras mudam. Primeiro pequenas adições: os animais não dormirão em camas “com lençóis”, não beberão álcool “em excesso”.

Depois mudanças mais radicais: os animais não matarão outros animais “sem motivo”, para finalmente chegar a rever o próprio princípio fundamental daquela comunidade: “os animais são todos iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. E o final óbvio foi a diluição dos bons propósitos, o desmantelamento da comunidade e sua dispersão no ambiente vizinho hostil. Cuidemos do nosso Marco Civil da forma em que foi definido pela contribuição aberta de todos e o defendamos de ideias que o levariam ao Capiroto. Arreda!

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,intencao-e-resultado,10000076610
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domingo, 4 de setembro de 2016

Os senhores do Anel

Criptografia é assunto do momento mas não é tema novo nem fácil. O manuscrito Voynich, por exemplo, existe há uns 600 anos e ainda não foi decifrado. Bem mais simples de quebrar, o método de Leonardo da Vinci era escrever textos da direita para a esquerda, para serem lidos num espelho.

A discussão sobre a legalidade ou não de seu uso também é complexa e atual. Penso que não há como condenar quem escreve algo de forma cifrada, seja para proteger o conteúdo, seja para se resguardar. É um direito seu, análogo ao direito de manter os pensamentos apenas para si. E, por enquanto, a tecnologia ainda nos preserva esse direito – não há equipamentos que leiam o que se passa dentro de nossa cabeça!

Quando, porém, é um aplicativo ou um serviço que inclui a oferta de codificar o que enviamos, há outras implicações. Como garantir que esse serviço faz o que promete? Será que realmente preserva nossa comunicação, ou há, à nossa revelia, algum tipo de “acesso privilegiado”, alguma “porta dos fundos” munida de decodificador cuja chave pode estar nas mãos de terceiros…

Alguns argumentariam que, se há casos onde o Estado ou a polícia precisa conhecer o conteúdo de conversas e um “grampo” pode ser judicialmente solicitado, é razoável querer que exista esse decodificador oculto. A investigação será facilitada e “os que nada tem a esconder, não precisam temer”...

Mas há, sim, o que temer. Se aceitamos por princípio que existem os que têm direito a espionar o que falamos usando um atalho que quebra a codificação, agentes e instituições da lei estariam munidos de uma ferramenta poderosa e privilegiada, que poderia decodificar o conteúdo, tornando-o acessível. Existindo, porém, a chave para essa “porta dos fundos”, essa caixa de Pandora, a situação sairá de controle. O poder escapará das mãos dos que, teoricamente, o usariam para o bem e cairá nas mãos dos mal-intencionados. A analogia que me vem a mente é a com o Senhor dos Anéis, que li lá pelos anos 1990. Nele, o anel corrompia seus donos pelo poder que ele carregava. Independentemente do caráter íntegro que tivessem originalmente, o uso constante do anel os corromperia.

Há uma frase do lorde Acton, espirituosamente modificada pelo Millôr, que diz “lembre-se, filho, que o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe ainda melhor...” Ou seja, se houver essa chave oculta na criptografia do aplicativo que usamos com confiança, se existir esse poder de facilmente ler o que se esperava criptografado, esse poder cairá inevitavelmente em mãos erradas…

Para complicar ainda mais o cenário já tenebroso, há os que desenvolvem códigos maliciosos para codificar as informações de nosso computador e... pedir-nos “resgate” por elas.

Claro que, com o tempo, novos processos, rodando em computadores mais velozes (quânticos?) tornarão obsoletos os métodos criptográficos hoje “seguros”, e outros serão desenvolvidos. Porém, isso é bem diferente de “atalhos” ocultos.

É preciso resistir à tentação e à pressão de criar portas escondidas. No caso do livro, a única solução para preservar a Terra-Média não foi dar o anel a “pessoas corretas”, mas destruí-lo, livrar-se definitivamente daquela “porta dos fundos”.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,os-senhores-do-anel,10000073988

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segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Pedra e vidraça

Dom Basílio, no Barbeiro de Sevilha, descreve como uma calúnia, que começa como brisa suave, pode tornar-se um tiro de canhão: “La calunnia è un venticello e produce una esplosione come un colpo di cannone”.

O mundo da Internet é outro, bem diverso do que havia há 200 anos, e continua mudando em velocidade alucinante. A primeira impressão que temos ao olhar as redes sociais é que há um aumento simultâneo na agressividade e no melindre. Ao mesmo tempo em que aumentou a capacidade de atacar, nossa carapaça defensiva parece rala.

Uma tentativa de análise das tais redes sociais passa, talvez, por relembrar um dito, algo duro, de Umberto Eco: elas “deram voz a legiões de imbecis, que antes falavam no bar depois de um copo de vinho e não causavam danos à sociedade”. A rede nos deu o poder da reação rápida e fácil, mas tornou raro o refletir antes de enviar uma resposta. Mais que isso, no lento mundo pré-Internet com o restrito poder individual de participação, os alvos específicos e “vidraças” eram as pessoas públicas: governantes, políticos, artistas, esportistas. Nós, da arquibancada, líamos o que jornalistas, cronistas e outros escreviam a respeito das “vidraças” e, eventualmente, emitíamos também nossa opinião, que alcançava o pequeno grupo de amigos ao lado ou os da mesa do bar.

Nós, da arquibancada, jamais seríamos alvo de comentários, porque não éramos visíveis nem significativos. E se as “vidraças” eram pessoas notáveis e conhecidas, as “pedras” também eram.

Claro que nós, da arquibancada ou do bar, podíamos também jogar confetes de elogio ou alguma areia de crítica, mas isso passaria despercebido pelas “vidraças” e seria ignorado pelas “pedras”.

A Internet, com todos os seus aspectos positivos de colaboração e desprendimento, também proveu “pedras” para todos. Com amplificação fácil, as novas “pedras” começaram a produzir efeitos significativos. Os “davides” do passado perderam o monopólio das fundas e dos bodoques e todos pudemos arremessar muitos pequenos pedregulhos nos “golias” de nossa preferência. Uma chuva de pedregulhos pode produzir tanto ou mais dano que uma pedra grande.

Mas aí vem a outra face da moeda. Pau que bate em Chico bate em Francisco. Quem se torna perceptível jogando pedras (ou confetes) rapidamente transforma-se em potencial vidraça. Nós, os invisíveis da arquibancada, começamos a ser notados e a despertar reações. Os “notáveis” continuam sendo o alvo preferencial, mas os “não notáveis” também passam a merecer comentários.

E os comentadores tornam-se comentados; os críticos, criticados. Ganhamos o poder de falar, mas tivemos de passar o ouvir respostas rudes. As antigas “vidraças”, as tais pessoas públicas, tinham o couro já curtido e resistente pela exposição ao sol e ao vento dos críticos. Nós, as novas “vidracinhas” não acostumadas a isso, somos sensíveis e magoáveis. Com baixa blindagem, as “vidracinhas” pedem socorro esquecendo-se que, quando do outro lado, jogavam alegre e despreocupadamente suas pedrinhas nos alvos escolhidos.

É muito mais fácil ser pedra do que ser vidraça. Na Internet, entretanto, não se pode escolher.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,pedra-e-vidraca,10000071163
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https://portais.univasf.edu.br/sustentabilidade/imagens/50650vidroquebrado.jpg




segunda-feira, 8 de agosto de 2016

"Traduttore, traditore"

O adágio italiano fala da difícil tarefa de tradução: quem traduz corre sério risco de “trair” a ideia original, sem contar a quase impossível tarefa de traduzir poesia, preservando ritmo, expressão.

Por décadas a computação batalhou para gerar ferramentas automáticas de tradução. O sucesso, entretanto, foi muito limitado. Traduções risíveis eram comuns e, ainda hoje, não é difícil achá-las. Expressões são particularmente ingratas e podemos “ficar a ver navios” (cuja versão para inglês gerou, hoje, “it is to see ships”!). É aí, como diria o Millôr, que “the cow went to the swamp”, a vaca foi pro brejo.

O busílis da questão é a semântica. Sem que se “entenda” a semântica da frase, trocar mecanicamente palavras de uma língua a outra leva muitas vezes a resultados cômicos. A abordagem elegante e adequada desse problema, que envolveria inteligência artificial e complexos algoritmos, está ainda bem longe da perfeição.

Entretanto, há forma de se contornar o problema teórico e buscar melhor resultado. Menos “elegante” e mais baseada na “força bruta”, ela vem no rastro das tecnologias de base de dados, de inferências obtidas no tratamento de quantidades muito grandes de informação, de redes neuronais. A ideia é basear-se no que os humanos fizeram anteriormente e acumular tudo que se tem de tradução de textos, buscando traduções para a frase em questão. Em suma, trata-se de incorporar a experiência humana como parte importante dos algoritmos. É menos formal que o tratamento semântico, porém rapidamente gera resultados próximos do esperado.

Também pode ser uma forma de abordagem para jogos. Ao invés de codificar uma estratégia de jogo que avalie qualitativamente a solidez de uma posição, programam-se as regras dele, adiciona-se um arquivo gigantesco de todos os jogos conhecidos e coloca-se o computador a jogar contra si mesmo por um tempo. Ele pode “aprender a intuir” a melhor jogada e aperfeiçoar-se por meio da tentativa e erro.

Há tempos, quando a capacidade dos processadores era milhões de vezes menor do que a atual, a estratégia de criar programas que “aprendem” com a experiência de erros e acertos era pouco promissora. O processamento maciço de informação passou a suportar buscadores, tradutores, realidade aumentada e também programas para jogos com “intuição quase humana”.

De alguma forma isso representa uma visão inicial: o supercomputador como “calculadora prodigiosa e rapidíssima, executando trilhões de cálculos por segundo na resoluções de equações”. Afinal, se os humanos não tem “processador numérico embutido”, se temos apenas memória para lembrar da tabuada e das regras de multiplicação e divisão, simular nossa forma de pensar não passa por extrair raízes quadradas, senos e cossenos. Somos muito bons em inferir e diagnosticar situações, reconhecer padrões e objetos.

A forma de simulação que parece mais próxima (e até por isso assustadora) é de dotar a máquina da capacidade de tratar quantidades gigantescas de dados simples, e aprender com sua própria experiência. Como mais de um cientista já alertou, a inteligência artificial pode ser, talvez, “derradeira descoberta da espécie humana”.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,traduttore-traditore,10000067751
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segunda-feira, 25 de julho de 2016

Infância aumentada

Outro dia, conversando sobre os tempos, veio à tona a ideia de que mudanças culturais, que podem ser muito rápidas, hoje estão se acelerando ainda mais. Enquanto características biológicas evoluem lentamente, comportamentos são muito mais sujeitos à pressão do momento e podem mudar radicalmente em poucos anos. Lembrei-me de uma frase do Mário Quintana: “Quando guri, eu tinha de me calar à mesa: só as pessoas grandes falavam. Agora, depois de adulto, tenho de ficar calado para as crianças falarem”. Há, até, uma teoria pessoal para justificar essa aceleração – o gradativo porém inexorável desaparecimento da figura das avós. Sim, ao menos em minha geração, as avós eram o elo, o fio condutor que transmitia a nós, infantes, os conceitos que diziam parte à formação cultural, moral e ética. “Não deixe comida no prato”, “não minta”, “criança só deve falar quando perguntada”, “se houver um idoso em pé, levante-se e ceda o lugar”, etc.

Como ainda tenho algum juízo, não entro no mérito se antes era melhor ou não, mas era diferente. Hoje, as crianças estão padronizadas pelos seus formadores, em geral terceirizados, com pouco contato com pais e menos ainda com avós, uma espécie praticamente extinta. Haverá consequências que, certamente, ainda não se consegue avaliar e só o tempo mostrará como as novas gerações vão valorar os princípios que eram caros à nossa época.

Tecnologia tem, certamente, papel importante nessa guinada cultural. Veja-se, por exemplo, essa atração por jogos. É inegável que o homo ludens sempre esteve entre nós, e com grande diversidade: desde o sonho infantil, muitas vezes inatingível, de possuir um trenzinho elétrico, ao duvidoso prazer adulto de assistir a uma luta torcendo por um dos lutadores. O esperto mercado, usando das armas tecnológicas, sabe aproveitar-se disso e lança a ludificação geral (renomeada, a meu ver de forma bisonha, de “gamificação”).

Marmanjos andam na rua à caça de monstrinhos imaginários, correndo o risco de atropelamentos, acidentes ou, simplesmente, da exposição ao ridículo. Moças ficam presas no alto de árvores buscando “pokémons”. E esses “entes” serão treinados e mimados, como se galos de briga fossem, para participar de “rinhas no éter”. Sem sangue, sem sofrimento real, mas com toda a torcida e a adrenalina gerada. Rinhas virtuais disputadas por galos imaginários e cujos donos escolhem permanecer adolescentes. Que diria Jânio Quadros, se vivo estivesse, ele que proibiu as rinhas de galo?

O rótulo dessa moda é “realidade aumentada”. Realidade virtual, aumentada, apoiada em inteligência artificial, sempre foi uma linha arduamente buscada pela pesquisa de ponta, aquela reservada aos mais corajosos e preparados. Será que o parto dessa montanha de esforços, acumulados por tanto tempo, resume-se apenas a isso? Esse ratinho? Pensando positivamente, “realidade aumentada” não deve se limitar a ser uma “infância aumentada”. As possibilidades de seu uso deveriam ser bem mais ambiciosas, incluindo educação, exploração de ambientes que só podem ser visitados virtualmente. Andarmos por dentro do corpo humano ou das crateras da Lua, usando a realidade aumentada! Parece-me uma alternativa mais atraente!

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,infancia-aumentada,10000064783

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segunda-feira, 11 de julho de 2016

Internet e jabuticabas

O grande Nelson Rodrigues definiu como “complexo de vira-lata” a tendência de nós, brasileiros, nos sentirmos inferiores quando comparados ao “mundo desenvolvido”. Adicione-se a isso a classificação pejorativa de “jabuticaba” das coisas que existiriam apenas no Brasil e, assim, por extensão, seriam automaticamente criticáveis. Cá entre nós, jabuticaba é uma fruta deliciosa.


Um caso em que o “complexo de vira-lata” não se aplica é na forma como o País tratou da Internet desde seu aparecimento por aqui. Desde 1995, com a publicação da Norma 4 do Ministério das Comunicações e ano da criação do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), a governança da Internet no Brasil tem uma estrutura multissetorial para orientar (não fiscalizar...) sua expansão e desenvolvimento.

O CGI.br é uma suculenta jabuticaba, tanto que seu modelo passou a ser copiado por outros países e a ser citado como paradigma de gestão correta e eficiente da Internet, sem criação de cartórios e burocracia desnecessária.

O NetMundial, realizado em 2014, em cuja abertura o Marco Civil foi assinado, deixou patente o reconhecimento internacional da linha que o Brasil segue desde 1995. Não à toa o Marco Civil foi considerada a melhor lei para a rede e, para citar poucos exemplos, a França e a Itália emitiram legislações na linha do Marco Civil, o Líbano e a Costa Rica criaram comitês gestores nos moldes do brasileiro. A trilha aberta em 1995, iluminada em 2009 com a aprovação e divulgação do “decálogo” do CGI.br – e consolidada em 2014 com o Marco Civil – é merecedora das loas internacionais que recebe. Exportamos nossa jabuticaba!

Isso não impede, contudo, que de tempos em tempos haja tentativas de enquadramento da Internet nas molduras tradicionais que ela sistematicamente supera. Discute-se a eventual necessidade de sua regulação, nos moldes do que ocorre com telecomunicações.

Um provedor de Internet que use canais de rádio pode precisar de licença para usar espectro público. Para isso existe a licença de SCM (Serviço de Comunicação Multimídia) da Anatel. Mas dar acesso à rede usando a infraestrutura existente, ou criar conteúdos e aplicações, prescindem de autorização e foi essa característica que permitiu a expansão da Internet no ritmo que vimos. O Marco Civil coroa esse processo ao protegê-la de tentativas de regulação excessiva. Afinal, ela é um ambiente transnacional e, se tentarmos criar uma legislação brasileira específica e restritiva estaremos, aí sim, com uma jabuticaba, das mais azedas, na mão.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,internet-e-jabuticabas,10000062135

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https://en.wikipedia.org/wiki/Jabuticaba
 



segunda-feira, 27 de junho de 2016

Franquias, francamente.

Em voo para Helsinque, onde começa a reunião da ICANN (Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números, na sigla em inglês) com importantes novidades quanto à transição da IANA (Autoridade para Atribuição de Números da Internet, na sigla em inglês), noto que cada vez é mais comum existir Wi-Fi, grátis ou pago, para uso pelos passageiros em viagem.

Quando em hotéis, aeroportos, restaurantes, é quase imediato os que têm equipamento móvel buscarem acesso à internet via Wi-Fi. E o que limita o acesso à rede é a velocidade ofertada pelo ponto, ou o tempo de conexão. Num hotel, por exemplo, pode haver oferta grátis ou paga (com maior velocidade), que pode ser contratada por dado período: horas, dias, estadia. É a confirmação de que ter acesso à internet é uma necessidade de (quase) todos hoje.

(Antes de tudo, um aviso: engenheiros não gostam, com certa razão, de usar qualificativos como “larga”. Afinal, quão grande deveria ser a banda para ser considerada “larga”?)

Modalidades de banda larga que temos: a banda larga fixa, que foi, historicamente, sempre contratada por velocidade, e a móvel, que usa o suporte da telefonia celular, onde optou-se por quantidade de dados, por “franquia”. Há argumentos para essa diferença. Na banda larga fixa o modelo aproxima-se mais do determinístico: as conexões são fisicamente definidas (as casas não mudam de lugar!), enquanto na móvel há o dinamismo natural e uma imprevisibilidade no número de aparelhos presentes em cada célula num dado momento, o que torna difícil garantir velocidade. Também a forma de uso é diferente: na fixa, o usuário dedica-se, com mais profundidade, a ler textos, a examinar processos ou a assistir filmes, no uso móvel, o apanágio é a comunicação rápida e curta, a notícia disponível instantaneamente, de forma ubíqua.

Sob argumentos questionáveis, levanta-se a discussão da oportunidade de se implementar franquias na banda fixa, além da natural limitação referente à velocidade contratada. “Nada é ilimitado”, dizem. Sem dúvida. Por isso na modalidade fixa contrata-se velocidade. Esse é o limite. Se queremos mais velocidade, precisamos contratar um plano superior ao que temos.

Implementar um duplo controle, de velocidade e de quantidade pode ser uma forma disfarçada de vender o que não conseguem entregar. Apregoa-se uma velocidade fantástica, mas que só poderá ser usada por minutos, porque se atingiria a franquia, que seria também consumida por dados não solicitados. Repassar-se-ia ao consumidor um problema difícil: que plano escolher?

Outro argumento é o de “custos crescentes”. De fato, com velocidades maiores aumentam os custos de infraestrutura e de conectividade em direção à rede. Mas, além disso não ser nada proporcional, há que se considerar que a estrutura deve ser projetada estatisticamente pela capacidade.

Quem nos conecta à Internet não gera nada do que recebemos: apenas mantém a estrutura que deixa que conteúdos cheguem até nós. Outro fator que ameniza o custo de conectividade é que os dados migram para perto de nós: assistir a filmes pela rede raramente redundará em maior uso de cabos submarinos. A complementaridade fixa/móvel dá muito valor à rede e não deve ser malbaratada!

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,franquias-francamente,10000059439

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Redes Sociais

Não foi a Internet que inventou as redes sociais – elas sempre existiram, desde o momento em que houve comunidades – mas a Internet deu a elas um poder e uma abrangência nunca vistos. Se, na velha Atenas, os cidadãos se reuniam na ágora para debater seus problemas e tomar decisões, hoje a nova ágora da rede engloba participantes de todas as culturas e lugares do globo, cada um com as próprias e diferentes perspectivas e formações. E nessas “e-ágoras” ressaltam-se todas as características humanas, como o engajamento automático e imbuído de emoções intensas, que vão do apoio à oposição, do aplauso à raiva, da solidariedade ao preconceito. É certamente um ambiente libertário, revolucionário e poderoso, mas também preocupante.


A pressa em tomar posição e expor o que pensamos, aliada à superficialidade da velocidade e da pouca precisão dos dados que nos chegam, faz com que o alinhamento se consiga rapidamente, mesmo que sem ter certeza do que buscamos. É o efeito de “grupo”, que nos fez tomar parte da manada. Chesterton, numa alegoria feita há mais de cem anos, descreveu uma “rede social” pequena e local mas que, prodigiosamente, lembra o que temos hoje, em escala muito aumentada, na rede. Transcrevo aproximadamente o caso do “monge e do lampião de gás”:

“Imaginemos que, de repente, inicie-se uma grande discussão sobre um tema atual como, por exemplo, o do uso de gás na iluminação pública. Diversos oradores que se opõem ao uso do gás, reunidos sob um lampião, enfaticamente, passam a defender a derrubada daquele símbolo que representa o assunto em discussão. Um monge de uma ordem medieval, daquelas metódicas e minuciosas, propõe que se discuta previamente, a utilidade da luz em si. Claro que os manifestantes não têm nenhuma paciência com o monge e o despacham da discussão, além de, em minutos, colocar abaixo, o próprio poste. Todos se congratulam pela eficiência moderna e nada medieval com que lograram o resultado. Com o tempo, porém, as coisas não vão tão bem assim... Vários dos que derrubaram o poste queriam “luz elétrica” em seu lugar, outros apenas queriam apossar-se do ferro do poste, alguns poucos o fizeram por preferir a escuridão, que serviria melhor aos próprios objetivos obscuros. Alguns se interessavam pouco pelo poste em si, enquanto outros se interessavam muito. Alguns eram contra o poste, por ser ele propriedade municipal e a isso se opunham. Outros apenas queriam aproveitar a oportunidade para destruir alguma coisa. Lenta e inexoravelmente, passaram a perceber que quem estivera certo, afinal, era o monge, e que tudo deveria, antes, passar pela discussão sobre a luz em si. Mas o que poderia ter sido discutido sob o lampião de gás, agora teria que ser discutido no escuro...”

Se, por um lado, é alvissareira a abertura e a amplitude de expressão que a Internet trouxe a todos, por outro preocupa muito o risco de a utilizarmos de forma impensada, “justiçando”, rapidamente e sem distinção, inocentes e culpados. Com o tempo e passada a euforia, acostumados todos ao novo ambiente, deve voltar à moda a análise mais detalhada, a morigeração, a contenção. Há de decantar o ruído que temos hoje e a rede será límpida!

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,redes-sociais,10000056820Fint

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Se correr o bicho pega...

 Tomamos cuidado com saquinhos de plástico que pesam menos de um grama, e usamos “recipientes descartáveis” muito mais pesados para tomar café, água ou chá. Usamos saquinhos para temperar nosso lanche, onde o tempero em si pesa menos que o saquinho (e provavelmente custa ainda menos). Há até situações em que se proibiram os saleiros de uso coletivo. E antes o leite e os refrigerantes vinham em garrafas de vidro retornáveis. Levávamos a garrafa vazia na próxima compra, sabendo que o vidro é muito fácil de reciclar.


Embalagens complexas, sofisticadas e com camadas de múltiplos materiais são muito menos recicláveis que vidro, papel ou plástico simples. É ainda mais complicado quando se trata de reciclar eletrônicos, que incluem pilhas, metal laminado, plásticos e tratamentos químicos complexos.

A migração que a internet trouxe – dos materiais (átomos) para os bits – acenou com a visão do “novo escritório” sem papel. Afinal, bits não precisam ser reciclados e a possibilidade trabalhar de casa economiza tempo e meios de transporte. Estamos indo no caminho da conservação racional dos recursos naturais. Como reza o lema inscrito no brasão da USP, nossa maior universidade, “Sciencia Vinces”!

Mas – e sempre há esse “mas” – há o outro lado da questão. Se nossa interação é eletrônica, se usamos o banco sem papel, se compramos bens via comércio eletrônico, há porém o momento da metamorfose: os bits podem gerar, inocentemente e sem que o notemos, montanhas de átomos.

Reportagens recentes apontam que, por exemplo, na China o consumo de embalagens cresce 50% ao ano, tendo passado em 2015 de 20 bilhões de pacotes enviados pelo correio. Que um alemão gera em média mais de 200 quilos por ano em embalagens, sem qualquer sinal próximo de arrefecimento.

Pior, estamos em épocas de extinções não apenas materiais. O “bom senso”, por exemplo, vê-se seriamente ameaçado. Sinais alarmantes de tempos de individualismo, hedonismo, busca imediata de satisfação – com o interesse da criatura sobrepondo-se ao da espécie.

Claro que a ciência pode ajudar. Usando Internet das Coisas podemos tentar rastrear o lixo, melhorar o reaproveitamento.

E se há algo não negociável, nem mesmo no comércio eletrônico, é a viabilidade da espécie humana.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,se-correr-o-bicho-pega,10000054111
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https://conexaoplaneta.com.br/wp-content/uploads/2016/03/RaceforWater_PeterCharaf_Rodrigues.jpg



segunda-feira, 16 de maio de 2016

Átomos e Bits

A Internet abriu uma frente desafiadora em todas as áreas, incluída a economia. Ao passar do material para o incorpóreo, dos átomos para os bits, surgem formas de ignorar a “escassez” e criar a “abundância”, tanto na informação como na economia. Essa migração não é, entretanto, indolor. Gera grandes tensões entre os modelos tradicionais, que medem e se baseiam na substância concreta, finita e cara, e as transações imateriais, que usam bits sem peso e com fácil e quase infinita replicabilidade.

Não é um paradoxo recente. Em março de 1994, John Perry Barlow, um dos fundadores da EFF (Electronic Frontier Foundation) publicou o instigante texto Vendendo Vinho sem Garrafas, em que trata da nova “economia das ideias”. Usou na abertura uma citação de 1813 em que Thomas Jefferson, numa antevisão de mais de 200 anos, diz “quem recebe uma ideia minha, a recebe sem me tirar nada. As ideias devem fluir livremente no mundo, para a educação e melhoria do homem. E assim como a chama de uma vela acende outras sem diminuir a própria luz... A luz não é passível de confinamento ou de apropriação exclusiva por um indivíduo”. As ideias na Internet, independentemente de sua qualidade ou veracidade, circulam livremente, a baixo custo e transmudadas em bits.

Na mesma linha, em 1995, Nicholas Negroponte, do MediaLab (MIT), publicou Being Digital, livro que trata do futuro das tecnologias digitais, ressaltando que a migração da matéria (átomos) para o digital (bits) teria um enorme impacto, remodelando a economia, mudando drasticamente o centro do poder e afetando nossas interações sociais.

Modelos tradicionais são questionados e substituídos pela Internet. A seleção quase darwiniana que se opera na rede decidirá quem soube se adaptar ao novo ambiente e quem, na ânsia de preservar seu nicho tradicional, estará fadado à futura insignificância, ou mesmo à extinção. É uma mudança drástica e cruel, cujos contornos estão longe de serem definidos ou mapeados.

Átomos ocupam lugar no espaço, pertencem à geografia e, portanto, conhecem e podem ser afetados por fronteiras físicas. Bits, como as ideias, ignoram esses limites. Seguindo o raciocínio de Barlow, é fácil controlar, proteger ou etiquetar garrafas, mas nosso “vinho virtual”, em bits e sem recipientes que o contenham, escapa entre os dedos.

Quando discutimos processos na rede, como o de replicação de conteúdos ou o de imposição de limites em volume para conexões fixas à Internet, nos defrontamos com argumentos que se aplicariam ao debate baseado na “escassez” da matéria, na natureza dos átomos, na facilidade de seu controle. Um viés que ignora que agora estamos falando de bits e de imaterialidade.

Barlow enuncia três postulados provocativos, aos quais vale a pena dedicar mais atenção e que se relacionam com o trabalho de Claude Shannon, o pai da teoria da informação nascido há cem anos. Propõe Barlow que informação é uma atividade, que informação é uma relação e... que informação é uma nova forma de vida. Afinal, não é isso que vemos acontecer hoje, o tempo todo, na Internet?

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,atomos-e-bits,10000051405
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O presidente Luiz Inacio Lula da Silva recebe nesta sexta-feira um dos primeiros exemplares do laptop de US$ 100 que começou a ser fabricado em Taiwan. O micro foi entregue a Lula por Nicholas Negroponte, fundador do Media Lab, do MIT e fundador do projeto que usar estes micros portáteis para a inclusão digital em países em desenvolvimento. E/d: Lula, Negroponte, David Cavallo, representande da empresa na América do Sul, e Rodrigo Lara Mesquita, da Radium Systems, empresa envolvida no projeto. 24/11/2006 - Foto: HÉLVIO ROMERO/AGÊNCIA ESTADO/AE

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Senhas e Sanhas



 É moda falar sobre novas formas de identificação positiva. As ondas que o cérebro gera quando pensamos em algo é uma “impressão cerebral” que, devidamente recolhida, pode se mostrar mais segura que a “digital” em provar que somos nós mesmos. Dizem também que é tão seguro quanto um “abre-te Sésamo” moderno usarmos o desenho da íris, o timbre da voz, o rosto, ou o DNA, e que as velhas senhas estão obsoletas. Estaremos melhor e mais seguros com o uso de nossos parâmetros pessoais? Para mim a resposta é “depende...”.

Qual o fim a que se destina essa chave pessoal? Há ao menos dois objetivos, que estão longe de serem iguais. O primeiro é a necessidade de uma identificação positiva em atos que praticamos. Entende-se facilmente que o processo eleitoral queira garantias sobre a identidade do eleitor e, para isso, resolva que é mais seguro retroceder à época anterior às carteiras de identidade e assinaturas, optando pelo processo algo primitivo de usar a impressão digital.

Com a tecnologia que temos hoje é bem simples garantir, a partir do relevo da pele digital, identificação rápida e segura. Da mesma forma, em transações bancárias ou comerciais, em declarações de imposto de renda e quetais, o Estado quer certeza sobre nossa identidade.

E quando usamos redes sociais, correio eletrônico, navegação pela rede, enfim, em nossas interações pessoais? Claro que aqui queremos proteger a privacidade. Não é caso de provar a terceiros nossa “identidade”, mas sim garantir sigilo em tópicos a que apenas nós mesmos deveríamos ter acesso. Isso era tradicionalmente feito com o uso de senhas. Devemos continuar com elas, ou “evoluir” e usar nossos dados de biometria?

Elucubremos: um dado biométrico é certamente pessoal. Mas será ele “privado”, no sentido de que possa ser mantido em segredo? Ora, as impressões digitais estão em inúmeros cadastros, inclusive o eleitoral, além, claro, dos copos de cerveja usados; a íris é visível em fotos; a voz grava-se com fidelidade, o DNA está num simples fio de cabelo perdido. Pior que isso, nada impede que alguém nos force (conscientemente ou não) a colocar o dedo num sensor, a olhar para uma câmera ou falar num microfone e... eis aí obtida a nossa “identificação pessoal positiva”.

A senha, porém, mora em uma casa talvez ainda inexpugnável: nossa “cachola”... Claro que há meios, especialmente usando “big data”, que podem dar dicas de quais seriam nossas escolhas prováveis de senha. Com capacidade de processamento, um ataque de “força bruta” testando milhões de alternativas, pode quebrar senhas fracas. Pior, se alguém precisa vitalmente saber nossa senha pode recorrer a processos dolorosos para que a revelemos, mas, claro, essa é uma possibilidade remota e terrível, não um prosaico caso de furtos de dados.

Em suma, uma senha bem escolhida, malgrado todos os contra-argumentos, deficiências e senões, continua a ser uma ótima (e secreta) proteção à nossa privacidade. Não misturemos a proteção de dados pessoais com a necessidade, que há em casos reais, de identificação positiva. São objetivos bem diferentes.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,senhas-e-sanhas,10000048637
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segunda-feira, 18 de abril de 2016

Entre o Santo e o Demo

Em 10 de abril é comemorado o dia de São Terêncio e da Engenharia. Hoje cada dia santo é dia de algo, e engenharia tem seus atrativos, ao menos para mim. Mesmo quando, um pouco constrangido, li com colegas o juramento: “… não me deixarei cegar pelo brilho excessivo da tecnologia, de forma a não me esquecer de que trabalho para o bem do homem…” Excetuando o juramento dos médicos, de origem antiga e ilustre, os demais são instantes embaraçosos nas formaturas.


Não posso ser acusado de ver o “brilho excessivo”. Aliás, sou até refratário em alguns casos. Essa falta de entusiasmo pode dever-se a um certo desencantamento com os novos tempos, mas, também, por tentar sopesar prós e contras. Por exemplo, a velha forma de pegar um táxi no ponto, ou acenar para um deles na rua, não é tão confortável como usar um aplicativo e muito menos charmosa. Mas além do “bom dia” e do endereço de destino, não preciso dizer mais nada ao taxista. Não passo meu telefone e endereço, nome completo, dados do cartão de crédito.

Por outro lado, acabamos de ler que, em seu relatório de transparência, o Uber repassou dados de 12 milhões de usuários aos órgãos de controle norte-americanos. Coisas que, via aplicativo, ficarão armazenadas por tempo ilimitado, em lugares misteriosos e à disposição de desconhecidos. Essa pequena “barganha mefistofélica”, de ganhar vantagens e atrativos grátis, levará em troca parte de minha alma privada. Sei que posso estar pregando bobagens e que o defeito é meu, porém turrão como sou, prefiro esperar um táxi livre passar, mesmo tendo um telefone no bolso e a possibilidade dos mágicos aplicativos. E sou dos que leem as letras miúdas dos contratos de adesão e tento avaliar o que eles querem de mim, em troca da felicidade que oferecem. Creiam-me, às vezes não vale a pena.

Pagar um pedágio automaticamente repassa ao sistema nosso trajeto e horários. O celular ligado permite conhecer a posição e, com aplicativos instalados, os deslocamentos são conhecidos. Recebemos propaganda de hotéis e de restaurantes nas proximidades. Passagens aéreas compradas farão com que sejamos avisados que estamos atrasados para embarque.

Há dois meses pensei em comprar um prosaico alicate pela internet e ainda hoje sou assombrado por figuras de alicates que aparecem nas telas de minha navegação, como se minha vida se resumisse na busca do “alicate ideal”. Claro que há muito conforto nisso tudo, mas a quantidade de dados coletada e devidamente digerida por ferramentas de “Big Data” é o lado obscuro do pacto que assinamos. E também não aceito o argumento de que “assinei, mas não li”. Parece um pedido de tutela. Somos crescidos e devemos ser responsáveis pelas nossas decisões, mesmo numa época em que há uma crescente tentação de permanecer na meninice e na superficialidade. De alguma forma, a maturidade hoje demora a chegar para muitos, quando chega.

Sou engenheiro e prefiro, antes, ler a regra do jogo tecnológico. Fausto, que tinha lido bem o contrato que assinara com o Demo, conseguiu livrar-se no último momento. Sorte dele!

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https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/entre-o-santo-e-o-demo/
18/04/2016 | 05h00

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Te conheço


Não há mais segredos sobre onde estamos, o que compramos e buscamos

Em diálogos de Sócrates aparece o lema délfico “conhece-te a ti mesmo” que, segundo se crê, estava inscrito no portal do Templo de Apolo, em Delfos. A proposição socrática sugere que, antes de qualquer voo maior na tentativa de desvendar as coisas, busquemos saber mais sobre nós próprios.

Teria essa preocupação, de quase 3 mil anos, encontrado na internet o caminho de solução? Não creio seja o caso mas, admitamos, o que a rede já sabe de cada um surpreende e, às vezes, ultrapassa até o que imaginamos saber sobre nós mesmos.

Estamos nos acostumando a que não haja mais segredos sobre onde estamos, o que compramos e buscamos, de que discussões tomamos parte. Com os telefones espertos e a geolocalização, tão útil nos problemas de tráfego viário, acabamos por contribuir, nem sempre conscientemente, com nossa localização e deslocamentos. Isso já virou rotina mas, o que nos reservam as ferramentas de análise com inteligência artificial (IA) é complexo e preocupante: elas assumem “tirar conclusões” a partir do mar de dados que há na rede.

Se uma ficção, um filme como o Minority Report, já nos deixava apreensivos ao criar um cenário presciente e antecipatório de combate a crimes, imagine-se o que a aplicação de IA e de Big Data pode representar.

Uma anedota correu a rede há cerca de um ano e dizia respeito ao pai de uma adolescente norte-americana, incomodado por receber em casa anúncios de roupas e produtos para bebês. Considerou aquilo isso uma ação “inconveniente e inadequada” para que sua filha, ainda menor, engravidasse. Meses depois ele se tornava avô: a rede sabia mais da filha do que ele mesmo.

Os assistentes pessoais eletrônicos dotados de IA não apenas conversam conosco, mas também contam piadas, recitam poesias e até tentam ser “nossos amigos”. Há avanços ainda mais perturbadores: algoritmos que, examinando o conteúdo de nossas intervenções em fóruns e redes sociais, buscam analisar nosso estado de humor, nossa predisposição a polemizar, nosso estado de saúde ou, até, detectar uma eventual tendência a mudar de emprego ou trocar de relacionamento.

Pode ser que a rede conclua que eu esteja deprimido sem que eu o saiba. Meu “assistente pessoal”, detectando essas indicações, avisará meu médico que estou provavelmente “deprimido”. Ou, pior, avisará meu chefe que, a partir do que ando escrevendo nas redes, parece claro que pretendo trocar de emprego.

Atualizando a historieta da adolescente grávida, hoje o sistema anteciparia o anúncio da gravidez ignorada pelo pai, até à própria garota! E há ainda o aporte que a “Internet das Coisas” trará ao “mundo novo”.

Voltando ao filme citado, um aplicativo poderia concluir que alguns de nós são criminosos em potencial e que, para melhor segurança da comunidade, o melhor seria segregá-los preventivamente do convívio.

Há 150 anos Cesare Lombroso, um psiquiatra italiano, desenvolveu uma controversa teoria segundo a que, a partir de características fisionômicas de alguém, saberíamos se estamos diante de um potencial psicopata ou meliante. Do Lombroso real, felizmente, nos livramos. E do Lombroso artificial?

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https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/te-conheco/
04/04/2016 | 07h00

segunda-feira, 21 de março de 2016

Pra cá de Marrakesh

Pra cá de Marrakesh

Em 1º de janeiro de 1983, a Arpanet passava a usar apenas o TCP/IP, novo conjunto de protocolos e o “I” do IP, Internet Protocol, passava a se confundir com o nome da própria rede. RFC (Request for Comments), protocolos da Internet e seus parâmetros técnicos continuariam documentados pelo time de Jonathan (Jon) Postel, do Instituto de Ciências da Informação (ISI, na sigla em inglês), da Universidade do Sul da Califórnia. Nas mãos de Postel foi também entregue a função de distribuir blocos de números IP e delegar nomes de domínios numa hierarquia de nomes mnemônicos dos equipamentos que participavam de rede. O nível mais alto da hierarquia de nomes do DNS (Domain Name System), está reunida no que se chamou “raiz de nomes” da rede, onde “moram” os “sobrenomes”, como .com, .net, .ar, .br, .info e outros. O pequeno time de Postel, de dois ou três pesquisadores, ficou conhecido como IANA (Internet Assigned Numbers Authority). De 1983 para 1998 muita coisa mudou.

A Internet extravasou da comunidade acadêmica e sua importância comercial tornou-se óbvia. Antes gratuitos, nomes de domínio passaram a ser cobrados em 1995. Em 1996, o TCP/IP foi adotado como o protocolo oficial de redes como a NSFNet. A estrutura que garantia a perenização dos serviços de nomes na rede (DNS) pareceu algo pequena e acadêmica: em 1998, os EUA – que vinham financiando a Arpanet via departamento da defesa – descreveu como poderia ser a transição da gestão de nomes e números para a nova realidade e colocou no jogo o departamento de comércio. Buscava-se “privatizar” a IANA.

O herdeiro da IANA seria quem fizesse a melhor proposta e mostrasse que teria a participação dos diversos segmentos da sociedade. A escolha foi a ICANN, uma ONG criada em 1998 em Los Angeles e sediada no mesmo prédio da IANA. Tudo indicava uma transição suave e sem riscos, mas Postel faleceu após complicações de uma cirurgia cardíaca. Com a ICANN recém-criada e, sem Postel, o departamento de comércio queria garantir que nada de anormal ocorresse na gestão da raiz: em janeiro de 2001, um ano após a ativação da ICANN, a NTIA assinou com ICANN um contrato – que acabou sendo renovado a cada três anos – para supervisionar a IANA. A NTIA validaria as alterações na raiz de nomes.

O poder de um país supervisionar alterações feitas na raiz de nomes gerou desconforto. Em março de 2014, em pleno “caso Snowden”, a NTIA anunciou que, se houvesse uma proposta adequada, ela cederia esse poder e não renovaria o contrato. Nada é tão simples: se as comunidades de nomes, números e protocolos concordassem, ICANN poderia ser a única responsável final pela IANA, sem a NTIA. Eventualmente, um novo “mecanismo” poderia dar poder às comunidades no papel de supervisão da NTIA.

Na 55ª reunião da ICANN de Marrakesh, no Marrocos, comemorou-se o fim do processo, sendo enviada uma proposta à ICANN e, depois, à NTIA e ao Congresso dos EUA. Se tudo der certo, num novo cenário não haverá mais “um” governo em posição diferenciada. A gestão da Internet será multissetorial. A Internet quer seguir e ir “pra lá de Marrakesh”, mas há as eleições norte-americanas a considerar. Conseguirá?

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https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/pra-ca-de-marraqueche/
21/03/2016 | 05h00

segunda-feira, 7 de março de 2016

Cozinhando rãs

Há notícias de que provedores de acesso fixo pretendem incluir “franquia” nesta forma de acesso. É uma discussão importante.

A Internet foi sendo montada com o aluguel de canais de dados às empresas de telecomunicação. O entroncamento de “canos” de diferentes bitolas, que permitissem escoamento do tráfego, é o “backbone”. As teles forneciam dutos vazios e seu preenchimento era feito por integrantes da rede.

Em 1988, não antes de longa batalha burocrática, o Brasil ligou-se a redes acadêmicas, alugando canais internacionais. Em 1 hora passavam até 1,5 megabytes, menos do que uma fotografia! Claro que à época a web não existia. Uma carta, com tamanho médio de mil bytes, levava 2 segundos para chegar: era um limite diário de 40 mil e-mails – e o canal satisfazia (!) as necessidades da comunidade. Contratar mais velocidade seria ter maior desembolso, com o mesmo modelo.

O modelo da telefonia é outro. Entra, na cobrança de conexão, a distancia e a duração do chamado. Por isso, quando em 1994 abriu-se a rede para uso doméstico via conexão telefônica, um “cronômetro” passou a onerar o usuário. Pagava-se pelo canal e pelo tempo. Quem quisesse pagar menos, deveria “telefonar” depois da meia-noite ou em fins de semana, quando o “cronômetro” parava de rodar. Em 2001, surgiram modelos grátis para a internet caseira e, com a entrada da chamada “banda larga”, o modelo voltou ao original, sem “taxímetro”. A restrição sentida era apenas a velocidade contratada, sem pressão do tempo ou restrições ao tamanho do conteúdo. Foi um momento de grande expansão da rede.

A telefonia celular moveu a gangorra outra vez. A Internet móvel é “carregada” pela estrutura celular, o que sugere a volta do modelo de 1994: o que seria cobrado não é mais a velocidade e sim a quantidade de informação trafegada. Os provedores de acesso móvel passaram a oferecer “planos” com franquia. Claro que nesse modelo volta a pressão pelo “rápido e curto”, e ressurgem modelos em que serviços podem pagar a conta, preservando a franquia do usuário. Não muito diferente do 0800 e da “chamada a cobrar”. Mas, para economizar, é melhor usar apenas serviços grátis ou curtos? A experiência da rede deve se reduzir a isso?

Cada modelo tem características e impactos diferentes. O modelo fixo é neutro e permite ao usuário uma participação mais elaborada e uma experiência mais densa. O móvel traz a ubiquidade e o imediatismo, ao lado de superficialidade e aversão a conteúdos longos. De alguma forma, são complementares.

O anúncio de controle de franquia na Internet fixa preocupa, já que sua experiência passaria a ser a mesma da móvel. Alega-se que “contratos da rede fixa já citavam franquia”. Pode ser que naquelas letrinhas pequenas constasse, em alguns contratos, um limite, alto para nunca ser atingido, nem chamar atenção. E se foi “aceito”, agora haverá evoluções e pode-se mexer com esses limites.

Afinal, “a franquia já estava lá”. Lembrou-me a receita de “como cozinhar rãs”: coloca-se a rã na panela de água fria, e ela nada alegre e despreocupada. Lentamente, a temperatura sobe e, quando a rã se dá conta, não há mais o que fazer: será cozida. Parece que a temperatura da água da internet fixa sobe rapidamente. Tá morninho aí?

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https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/cozinhando-ras/
07/03/2016 | 07h00
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terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Dedos ágeis, neurônios irritadiços

A Declaração de Independência do Ciberespaço, escrita por John Perry Barlow, cofundador da Electronic Frontier Foundation, completou 20 anos. É, talvez, sonhadora e romântica, mas expressa alguns dos sentimentos mais preciosos e entranhados da internet – o sonho em que estamos imersos, sabe-se lá por quanto tempo antes que se desmanche – ou pior, que se transforme em pesadelo (bate na madeira: arreda azar!).

Parece que dedos e miolos distanciaram-se. Tudo hoje é rápido, para consumo instantâneo. Pensar pode fazer perder o momento e a vantagem de ser o primeiro a escrever. Atiramos antes de perguntar, ou mesmo entender – afinal se errarmos, sempre poderemos pedir desculpas depois. Ou nem sempre…

Por outro lado, afirmamos estar no rumo da tolerância e harmonia. A mim parecem propósitos divergentes. Espero estar errado e ficaria feliz em ser desmentido, mas me é difícil aceitar: se queremos convívio, devemos viver com os nossos defeitos e com os dos outros, sem reagir visceralmente.


Lemas como “tolerância zero com a intolerância” são uma contraditórios. É como dizer “guerra à guerra”. A intolerância, um grande mal, necessita ser claramente combatida com… tolerância. Gandhi dizia que “olho por olho leva a uma terra de cegos”. Toleremos não o erro em si, mas ao humano que erra e busquemos trazê-lo de volta à educação e bom senso.

De um lado há uma ampla janela para expressar ideias e, de outro, um exacerbar de sensibilidades. Qualquer deslize, mesmo não proposital, pode gerar uma reação furibunda, não só de quem se sentiu “ofendido” de alguma maneira, mas da legião de acólitos que, ao sentir o “cheiro de sangue”, juntam-se à mole dos justiceiros. Formam-se grupos centrados não em ideias, mas em dogmas. E como é fácil juntar multidões nas redes sociais…

A primeira emenda da constituição norte-americana emoldura a liberdade de expressão. Claro que essa liberdade não inclui gritar “fogo” num cinema lotado, apenas para ver o que acontece. Afora situações patológicas como essa, porém, as ideias devem ser livres. Diz Barlow: “Estamos criando um mundo onde qualquer pessoa, em qualquer lugar, poderá expressar suas ideias e crenças não importando o quão estranhas sejam, sem medo de ser coagido ao silêncio ou conformidade”. Será mesmo?

Millôr Fernandes descreveu no prefácio de “Um elefante no caos” algo que, esperemos, não seja profético: “Estávamos no último, ou num dos últimos redutos do ser humano. Depois disso viria o Fim, não, como tantos pensavam, com um estrondo, mas com um soluço. A densa nuvem desceria não, como tantos pensavam, feita de moléculas radioativas, mas da grosseria de todos os dias, acumulada, aumentada, transmitida, potenciada. O homem se amesquinharia, vítima da mesquinharia de seu próprio irmão, cada dia menos atento a um gesto de gentileza, a um raio de beleza, a um olhar de amor desinteressado, a um instante de colóquio gratuito, a um momento de paz, a uma palavra dita com a beleza da precisa propriedade. E então tudo começou a ficar densamente escuro…

E o espírito não sobrenadou.”

Lutemos para que sobrenade!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Pelas bordas

Há consenso em que neutralidade na rede implica em não cercear origens e destinos na internet mas, quando eu mando algo ou tento acessar um site, como a rede acha o caminho? Afinal, a internet não tem GPS e não existe um Guia das Rotas Mundiais…

Vamos começar pelo princípio: em geral, para ir a algum lugar eu escrevo um “nome de domínio”. É como dar um nome de pessoa a quem se quer telefonar ou de uma rua para onde enviar uma encomenda. Não basta. Da mesma forma que no Brasil temos um CEP associado ao endereço para definir geograficamente para onde se quer ir, um “nome de domínio” deve ser traduzido para um número IP, que nos remeterá a uma região da internet. Os números IP estão associados a sub-redes que são partes dos “sistemas autônomos” (SA). A analogia (sempre imperfeita) com o correio seria: ao saber o CEP sei o Estado e região a que me refiro. Se conseguir chegar até lá, o correio local cuidará do resto…

A internet é constituída de milhares de sub-redes, os SA, que possuem administração própria e política interna de roteamento. Assim, se meu pacote chegar à fronteira do SA pretendido, o encaminhamento passa a ser responsabilidade da sub-rede. A pergunta que permanece: como a internet saberia direcionar o pacote até o SA de destino?

Cada SA gera, dinamicamente, a partir das informações que seus vizinhos repassam (os outros SA) uma tabela de caminhos na rede. Um protocolo específico, o BGP (Border Gateway Protocol) explica como se processa esse intercâmbio. O nome do protocolo revela a essência: trata-se da maneira que um SA repassará informações além de sua “borda”. É como aquela antiga conversa de vizinhos porta a porta. Outra analogia, menos anacrônica é com os sistemas que ajudam, hoje em dia, os motoristas a escolher as melhores rotas. A partir de informações de congestionamentos, eventos, distâncias e tempo, eles sugerem uma rota e uma previsão de duração para o percurso.

Tanto no caso da rede, quanto no caso do trânsito, há forte confiança na comunidade. Ambos funcionam porque os segmentos colaboram de forma positiva e honesta. Se alguém passasse a informar acidentes de trânsito inexistentes a ajuda que o sistema de trânsito nos dá poderia ser contaminada. Também na internet, se um sistema autônomo “enlouquecer” e passar a divulgar rotas irreais, durante algum tempo haverá uma “perturbação na força”, e as coisas ficarão momentaneamente confusas.

No Brasil, é o NIC.br quem fornece o número a cada um dos SA nacionais. Ele fornece também, preventivamente, um “telefone vermelho” que pode ser usado nos casos em que algo realmente anormal ocorra.

O que se espera de uma rede neutra é que as informações recebidas para roteamento sejam adicionadas àquelas localmente geradas e o conjunto seja passado à frente sem modificações ou “truques”, que privilegiem ou eliminem alguma rota em especial.

Como no trânsito, é possível escolher rotas mais rápidas ou menos esburacadas. O trajeto pode depender das condições do momento, mas não de alterações artificialmente embutidas no sistema, que prejudiquem terceiros.

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08/02/2016 | 08h00

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Por uma rede agnóstica

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“Neutro” vem do latim “neuter”, que se compõe de “ne” e “uter”, significando “nem um, nem outro”. Por isso, na Química, o ph 7 é neutro, já que não é ácido nem básico. E “isto” ou “aquilo” é neutro em português, ao contrário de “esta” ou “aquele”. O neutro não distingue ácido ou base, masculino ou feminino. O neutro é agnóstico e não seletivo.

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Se falamos em internet, como encaixar o “neutro” no contexto? Ajudará, inicialmente, dar uma olhada em como mecanismos que atuam na rede foram construídos. O que sempre ressalta é o uso de bom senso, da colaboração e da distribuição, além de uma coerente analogia com o mundo real. Se queremos, por exemplo, projetar um serviço de correio no mundo material, precisamos pensar em como transportar cartas. Temos que saber para onde devem ser remetidas, eventualmente seu peso e dimensões, mas não de que tema tratam. Se alguém remete o próprio currículo, para buscar a única oportunidade, imperdível, de emprego da vida, ou se está enviando uma coleção de piadas a outro amigo (bem, hoje essa pode ser uma atividade de risco...) isso não diz respeito ao correio, que não deve conhecer o conteúdo. Também não se levará em conta se o destinatário mora em área “diferenciada”, de alto padrão, ou se a rua dele sequer tem calçamento: a entrega será feita sob chuva ou sol e calor ou frio, com o mesmo empenho que Júlio Verne descreve em Miguel Strogoff, o correio do czar.

Na internet os protocolos foram definidos com sendo agnósticos em relação ao conteúdo. E sobre os protocolos básicos abertamente construídos, nada impede a adição de outros mais. Isso permitiu, por exemplo, o surgimento da web, da voz sobre rede, da imagem, entre outros. O que tecnicamente se entende como “neutralidade” na rede tem, então, três pilares básicos: não discriminar endereços de origem e destino; não olhar conteúdo; não vedar serviços tecnicamente possíveis sobre a rede, tanto os que hoje existam como os que virão a existir.

Neutralidade diz respeito à rede e resguarda-se ao usuário final o direito de dispor do que recebe. Assim com eu posso jogar fora uma carta em papel, ou não atender uma ligação telefônica, eu posso decidir o que entra ou não, via rede, em minha casa ou computador. Essa é uma decisão do usuário final que não pode ser assumida por nenhum ator no meio do processo. É a rede que deve ser neutra, em todos os seus segmentos e operadores, não suas terminações. Assim, um site pode ser grátis ou pago, pode exigir ou não identificação dos que o acessam, ou pode impedir acessos que considera inadequados, visto que “neutralidade” não se aplica aos pontos finais. A analogia com o mundo real é simples: o proprietário de uma casa decide quem pode entrar e quando. Mas a rua é pública e neutra, os transportes devem ser públicos e neutros, os conteúdos transportados deve ser invioláveis e a evolução dinâmica da rede deve ser mantida aberta e livre – afinal nunca sabemos que novos e fantásticos serviços podem surgir amanhã.

Proteger a internet deve ser prioridade. Adaptando uma frase de Nietzsche, “eu não sei o que quero que a internet seja amanhã, mas sei muito bem no que eu não gostaria que ela se tornasse”.

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25 de janeiro de 2016 | 03h16

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Diálogo sobre WhatsApp

Um “socrático” (S) e um estudioso (T) conversam:


S: Que pensa da suspensão do WhatsApp, T? Foi correta?
T: Sim! Afinal eles não atenderam a uma solicitação judicial.
S: E haveria essa obrigação por parte deles?
T: Ora, se estão operando no País, devem acomodar-se às leis nacionais. É o certo!
S: Faz sentido, T. Ocorre-me, porém, uma dúvida, veja: as leis nacionais proíbem, por exemplo, jogos de azar, mas há os que vão a cassinos no exterior jogar. Parece-lhe lícito? O País não deveria proibir isso?
T: Ah, mas trata-se de outra coisa. Pode ser lícito jogar no exterior. Não há nem como, nem por quê impedir um cassino de operar em outro país.
S: É bem lógico. Mas,T, e se um cassino é acessível via internet? De alguma forma ele estaria “operando no País” (as apostas poderiam até ser feitas pelo telefone…). Não seria o caso de fechá-lo?
T: Bem, agora você me complicou. Acho que sim… e acho que não. Decidi: acho que não! Ser acessível via internet ou telefone não é o mesmo que operar no País. Seria como impedir a leitura de livros cujo conteúdo não estivesse de acordo com as leis num determinado país, o que me parece violar liberdades…
S: Muito bem, T. Deixemos isso um pouco de lado e me esclareça uma segunda pergunta: uma solicitação da Justiça deve ser sempre atendida?
T: Claro! Não paira aí nenhuma dúvida. Há que se atender, sempre!
S: Concordo, T. Mas, digamos, alguém ordena a você que relate todas as conversas entre terceiros em que você esteve presente. Você certamente atenderia, não?
T: Não creio que conseguisse. Não é minha função prestar atenção às conversas dos outros. Mesmo que passem pelos meus ouvidos, eu não as escuto. Não teria como atender.
S: Nesse caso, você estaria violando a ordem judicial?
T: Não. É uma ordem que eu não teria como atender por motivos pragmáticos, não apenas por ética pessoal. Mas você não está querendo dizer que a ordem ao WhatsApp era desse tipo, está?
S: Claro que não. Mesmo porque não sei qual era a tal ordem: está sob segredo de Justiça. Você admitiria, então, que há ordens impossíveis de atender?
T: Sim, admito. Se me ordenassem, por exemplo, que flutue no ar, tampouco conseguiria!
S: Pensando em uma ordem possível de ser cumprida, que castigo você imporia a quem não a atendesse?
T: Não sou juiz, mas imagino que caberia impor uma penalidade ao agente. Mas que não afetasse terceiros inocentes.
S: Outra dúvida, T: o funcionamento do WhatsApp, aqui ou acolá, viola a lei?
T: Não é o que me parece.
S: Então, T, ainda que fosse possível suspender por completo o serviço, isto pareceria excessivo?
T: É o que penso, S.
S: Por último, não causa espanto que uma lei como o Marco Civil da internet, criada para proteger indivíduos e estruturas de ações excessivas, mesmo que bem intencionadas, seja invocada exatamente quando a ação reflete algo que o MCI visava evitar?
T: De fato S, de fato! E, em sua opinião, porque isso estaria ocorrendo?
S: Tudo que sei é que nada sei. Minha ação é de “parteiro” da verdade. “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nosso pensar”, caro T.

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https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/dialogo-sobre-whatsapp/
12/01/2016 | 12h05
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