terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Fantasmas...

É Natal, tempo em que pensamos no que passou, enquanto tentamos manter esperanças no que ainda virá. A importância da data independe da religiosidade de cada um - afinal, em nossa cultura, o Natal e o Ano Novo estão ligados fortemente: vem aí 2019. Essa numeração baseia-se, com maior ou menor precisão, num evento em Belém, que marcou o reinício da contagem do tempo para boa parte do mundo.

A Internet é quase cinquentenária e tentarei uma conexão com uma lembrança igualmente antiga: a leitura de “Um Conto de Natal”, do Dickens. A novela, publicada há 175 anos e que teve inúmeras traduções e adaptações, talvez seja mais conhecida pela sua personagem central, Ebenezer Scrooge, que a Disney transmudou em Tio Patinhas. Qual o paralelo?

Na história, o avarento Scrooge é dono de um pequeno escritório (seria uma “start-up” daqueles tempos?) e tem um único funcionário, que é muito dedicado, mas mal pago. Com quatro filhos - um dos quais bem doente e mesmo sem conseguir fazer frente às despesas, ele mantem a bonomia. Numa noite o insensível Scrooge é visitado pelo fantasma de seu finado sócio, que o adverte a ser atento às agruras do próximo, e anuncia a visita de tres fantasmas, que trarão mais luz para Scrooge se emendar. O primeiro é o fantasma dos Natais Passados, que o inunda de melancolia ao fazê-lo relembrar os tempos de criança, quando para ele o Natal era época feliz. O segundo é o do Natal Presente, que mostra a agitação das compras e comemorações, mas também indiferença e injustiças. Luzes e futilidade. Esse segundo fantasma carrega consigo duas ameaças que poderão frustrar o futuro: a ignorância e a miséria. O terceiro é fantasma dos Natais Futuros. Calado, aponta a Scrooge um porvir soturno, de crescente isolamento e solidão.

A Internet pode representar, ao mesmo tempo, os três espectros que visitaram Scrooge e servir de alerta. A rede nos dá acesso a preciosos documentos do passado, que almas abnegadas colocaram para nosso proveito. Há textos e entrevistas históricas preservados, interpretações emocionantes de obras musicais, um mar de dados e informações para nosso uso, a que não teriamos acesso de outra forma. Por outro lado, o presente da rede tem facilitado o prosperar de tensões e divisões, que antes não eram tão presentes. A vaidade de ser partícipe de qualquer discussão nos exorta a tomarmos posições impensadas, muitas vezes agressivas. A nossa exposição a tudo pode ser um fardo que supere nossa capacidade de assimilação. Quanto ao futuro, acumulam-se incertezas, especialmente se optarmos por trilhar um caminho que dispensa nosso legado histórico. O que o futuro nos reserva dependerá de como interpretaremos os sinais do presente, cada vez mais claros.

Os Fantasmas de Natal converteram o Sr. Scrooge. Quem sabe os Fantasmas da Internet podem agir na mesma direção, perpetuando entre nós o espírito natalino. Em outro texto, bem humorado, Drummond parece entrever que, em época melhor, até a Internet das coisas participará (!). No “Organiza o Natal” achamos: ...”os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, <...> o correio só transportará correspondência gentil”

Tenhamos todos um Ótimo Natal!

http://www.editorarideel.com.br/wp-content/uploads/2015/07/MIOLO_Conto-de-Natal.pdf
https://www.ibiblio.org/ebooks/Dickens/Carol/Dickens_Carol.pdf


Charles Dickens' A Christmas Carol 1971 Oscar Winner HD Richard Williams Animation:

https://www.youtube.com/watch?v=ZTzyC9CZuOA

https://en.wikipedia.org/wiki/A_Christmas_Carol



First edition frontispiece and title page (1843)

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Outros tempos, outros ventos

Jon Postel, pioneiro da Internet e gestor dos recursos coordenados da rede (nomes de domínio e números IP), usou certa vez, em reunião do IETF (força-tarefa de engenharia da rede), uma camiseta onde se lia “vivemos em tempos interessantes”. Se ele estava sendo óbvio, ou era na acepção de Nelson Rodrigues: “apenas sábios, profetas e gênios enxergam o óbvio”. A coisa é, entretanto, mais capciosa do que parece. Na cultura chinesa (… repito como ouvi dizer) “tempos interessantes” são característicos de mudanças, de crises. São tempos de pouca paz, muita turbulência e inquietudes. Desejar a alguém que “viva tempos interessantes” estaria longe de ser um bom augúrio e, sim, quase um esconjuro. Afinal tempos amenos e de enraizamento são “desinteressantes”. Para o bem ou para o mal, vivemos tempos interessantíssimos. 

Há duas semana houve em Paris o 10.0 fórum de governança da Internet (IGF). Na abertura, discurso do português António Guterres, secretário geral das Nações Unidas, seguido pelo do presidente da França, país hospedeiro, Emmanuel Macron, ambos disponíveis na íntegra na rede a quem quiser aprofundar-se. Limito-me a registrar que Macron discorreu por mais de hora, e abordou temas improváveis a um presidente, até pela abundância nos detalhes técnicos. Não tentarei analisar o cerne do discurso mas, de forma superficial, pareceu-me claro que ele se propõe a encabeçar uma “terceira linha” na rede, sua alternativa ao embate “lado norte-americano” versus “lado chinês”. Há, é claro, motivação pessoal e busca de espaço, mas penso importante não cairmos em generalizações fáceis, que parecem atender às angústias desses “tempos interessantes”. Pelas tantas, ele propõe a busca do que seria uma “Internet higienizada”, e uma nova abordagem de regulação, partindo da base, diversa da tradicional que parte do topo. Em tema de Internet, devemos ter cuidado com ambas as abordagens, seja para não cair em censura central, seja para não dar um poder desmesurado a quem apenas é uma aplicação privada sobre a rede.

O desse raciocínio é perder-se de vista a floresta ao nos concentrarmos nas árvores. Há que se ter clara ideia de como conceituar a Internet, separando-a das aplicações que nela nascem (e morrem) o tempo todo. A rede básica é o conjunto de protocolos e equipamentos que nos permite ir a qualquer destino, sem restrições. Centra-se aí o conceito de neutralidade e a luta para manter a rede aberta, universal e única. Quase equivale ao direito de ir e vir. As “ruas” da Internet transitáveis igualmente por todos, mesmo que a “casa” em cuja porta batemos não nos dê acesso. Ou nos cobre pelo acesso. Aplicações criadas na rede não se confundem com o caminho até elas, e a rede permanece, mesmo que o conjunto de suas aplicações mude ao sabor das preferências dos usuários. Como no coliseu romano, nosso “clique” é nosso voto e ele decide quem terá sobrevida. Exemplos não faltam: o que é feito do “MySpace”, do “Orkut”, do “Second Life”, do “Pokémon”...? Mudam os ventos, mas a rede deve seguir adiante.

Respeitando as regras básicas da Internet, seus protocolos aceitos por consenso, estamos livres para criar novos artefatos e submetê-los ao crivo dos potenciais usuários. A rede, este ecossistema espantoso e livre, deve permanecer íntegra.



http://igf2018.fr/wp-content/uploads/2018/11/WIP-Paris-Messages-.pdf

https://www.intgovforum.org/multilingual/content/igf-2018-speech-by-french-president-emmanuel-macron

https://www.intgovforum.org/multilingual/content/igf-2018-address-to-the-internet-governance-forum-by-un-sg-ant%C3%B3nio-guterres

https://www.cfr.org/blog/unpacking-frances-mission-civilisatrice-tame-disinformation-facebook


terça-feira, 27 de novembro de 2018

Obviedades

Nesta terça-feira 27 de novembro haverá em Londres mais um ato do “affaire” Facebook – Cambridge Analytics. Conta com a presença de representantes legislativos de 8 países, incluindo o Brasil. Um tema que está longe da pacificação mas, ao menos para nós, com a promulgação da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, estamos num momento melhor  .

A exposição e uso inadequado de dados pessoais, mesmo não sendo algo recente, ganhou um impulso exponencial com a Internet quando passou a ser modelo de negócio de plataformas como as redes sociais.

Se remontarmos ao início da comunicação coletiva, lembraremos que meios impressos antigos contavam com o suporte financeiro provido pelos seus assinantes. Não foi muito diferente a implantação do rádio, que também lançou mão de “rádio-clubes”, de onde imaginava receber os recursos para instalação, equipamentos e funcionamento.

A entrada em cena da publicidade alterou completamente esses modelos econômicos. Se por um lado, com os recursos dos anunciantes os meios puderam se difundir entre todos os públicos e não apenas entre os antigos assinantes, por outro o consumidor potencial passou a ser objeto visado. Rapidamente rádio e televisão firmaram-se como formas “gratuitas” de difusão de entretenimento e notícias, contando com o fluxo crescente das verbas de publicidade. A publicidade àquela época era um “jogo cego”: classificados de jornais atingiam indistintamente um público genérico. Pequena parte dos leitores iriam se interessar, por exemplo, pelo anúncio dos imóveis anunciados enquanto outros, a maioria, iriam usar aquelas páginas para embrulhar peixe ou forrar a gaiola do canário.

Com a Internet e a expansão da Web houve a possibilidade de medir e calibrar o impacto de anúncios. Podendo saber das visitas a cada setor das páginas, vendem-se anúncios mais efetivos e, logicamente, mais caros. Saber quem está vendo meu anúncio, ou quem potencialmente se interessaria pelo meu produto, melhora drasticamente o resultado das campanhas.

A aposta na publicidade aumentou muito, e permitiu que serviços sofisticados, que demandam recursos imensos pudessem ser implementados na Internet, dada a expectativa de lucros ao colecionar e selecionar os possíveis interessados nos produtos anunciandos. E, claro, essa coleta de dados viabiliza toda uma nova leva de serviços (… com os respectivos riscos) à comunidade. Saber onde estão os automóveis num dado momento permite sugerir caminhos. Saber que tipo de remédios alguém procura na rede pode indicar alguma enfermidade. Conteúdos lidos podem revelar interesses e propensão ideológica. E... saber o que você escreve e de que comunidades participa, delineará seu perfil. Tudo isso passa a ser parâmetro, desde seleção de candidatos a emprego, ofertas de seguro de carros e de planos de saúde e até, claro, para disparar ações que podem trazer ainda mais riscos.

O modelo de negócio que nos dá acesso livre e grátis a serviços e informações, hoje indispensáveis, funda-se em obter e usar nosso perfil como consumidor, mas também permite conhecer nossas características pessoais, emocionais e ideológicas. É quase uma barganha faustiana. A forma de minimamente obter alguma proteção é estabelecer limites éticos, transparência nos interesses e ações, e razoabilidade quanto aos dados solicitados. Aí, ao menos, poderemos contar com a ajuda da LGPD.


== Molon sabatina vicepresidente do Facebook (legendado):

=== https://www.youtube.com/watch?v=3CHl2FCuKE4

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Em busca de alicerce

Avanços da tecnologia sempre provocam especulações sobre o “futuro da humanidade”. Já quanto à linguagem escrita, Sócrates, cujas ideias chegaram até nós transcritas por Platão, achava que escrever sobre algo era bem mais pobre que discutir oralmente sobre aquele tema. Seria uma representação limitada do argumento, como um retrato é em relação ao retratado. A chegada e a popularização da imprensa também gerou alertas, para não falar das diatribes sobre a revolução industrial. Estamos às voltas com a revolução da informática e da automação e, desta vez, pode ser que realmente haja motivos sérios para preocupação.

Uma forma de olhar para o que vem pela frente passa por constatarmos que agora há uma liderança da tecnologia em relação ao peso que damos a outras considerações mais humanísticas. O poder computacional cresce exponencialmente há décadas e nos leva a um descompasso com outras estruturas de pensamento. Afinal, tudo o que pode ser feito acabará por ser feito, ou seja, podem ser inúteis maiores preocupações com as consequências.

Topei com o artigo “O fim do Iluminismo”, do conhecido Henry Kissinger, em que ele examina a necessidade de uma política associada aos avanços da Inteligência Artificial. Um trecho, já no final do artigo, chamou-me a atenção. Traduzo-o rudimentarmente: “O iluminismo foi liderado por avanços na filosofia, disseminados pelas tecnologias então existente. Nossa época move-se em direção oposta. Geramos uma tecnologia potencialmente dominante, sem uma filosofia orientadora. (...) Assim, penso que a prioridade acima das demais deveria ser buscar formas de relacionar Inteligência Artificial com a nossa tradição humanística”.

Muitos já comentaram, por exemplo, sobre um dilema na programação de carros autônomos e como lidar com acidentes inevitáveis. A programação deveria buscar diminuir o número de vítimas? Ou fazer uma escolha entre as vítimas potenciais por gênero? Idade? Status? Deveria buscar a preservação do proprietário e passageiros do veículo acima de outras vidas? O prestigioso MIT (Instituto de Tecnologia de Massachussetts) criou uma forma de mapear as respostas que se obtêm, mundialmente, a esses quesitos éticos. Está em moralmachine.mit.edu. O mais perturbador, entretanto, é notar que as respostas obtidas mostram perfis éticos/morais bem diversos, conforme a cultura e costumes locais. Certamente a Internet tem “culpa no cartório” quando facilitou o acesso a todos, sem distinções de cultura local, interesses, formação. Hoje Sócrates estaria batendo boca numa rede social e é bem provável que alguém pedisse sua exclusão. Não é claro para onde vamos mas, em contraponto ao inegável benefício de expressão que a Internet possibilita a todos, há também que se manter em vista valores éticos inscritos em nossa cultura. Vem-me à mente um texto de Chesterton em que defende uma democracia onde todos devem ter voz, não apenas os que estão vivos. “A voz de nossos mortos chama-se tradição. É a parte da democracia que inclui nossos ancestrais, e que não se submete aos que estamos momentaneamente vivos”.

Parece-me vital voltarmos a buscar algum alicerce com raízes mais profundas.

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Qual deve ser a decisão de um veículo autodirigido?
moralmachine.mit.edu
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"O Fim do Iluminismo"
https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2018/06/henry-kissinger-ai-could-mean-the-end-of-human-history/559124/
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em "Orthodoxy" G. K. Chesterton
http://www.leaderu.com/cyber/books/orthodoxy/ch4.html

<...> Tradition may be defined as an extension of the franchise. Tradition means giving votes to the most obscure of all classes, our ancestors. It is the democracy of the dead. Tradition refuses to submit to the small and arrogant oligarchy of those who merely happen to be walking about. All democrats object to men being disqualified by the accident of birth; tradition objects to their being disqualified by the accident of death. Democracy tells us not to neglect a good man's opinion, even if he is our groom; tradition asks us not to neglect a good man's opinion, even if he is our father. I, at any rate, cannot separate the two ideas of democracy and tradition; it seems evident to me that they are the same idea. We will have the dead at our councils. The ancient Greeks voted by stones; these shall vote by tombstones. <...>
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terça-feira, 30 de outubro de 2018

Mas isso é defeito ou característica?

A versão em inglês desta frase é muito conhecida por quem usa programas de computador: “is it a bug or a feature?”. Ela roda pela área de informática há muito tempo. Pode causar algum espanto o uso da palavra “bug” (inseto) para indicar um defeito. Mas, na computação, há uma base histórica e anedótica para isso. Reza a lenda (e há documentação) que, quando os computadores ainda usavam válvulas eletrônicas e relés eletromecânicos, houve certo dia um mal funcionamento inesperado em uma máquina. Após buscar a causa do problema, verificou-se que um inseto se introduzira entre as lâminas de um relé do computador, causando o mau contato deletério.

O primeiro “bug” foi, assim, literal e um evento mecânico. Com a crescente complexidade da programação, além de eventuais erros físicos em equipamentos, erros de programação passaram a ser muito frequentes. Um programa complexo é de difícil depuração. Mesmo com todo o cuidado do programador, é provável que erros e incoerências tenham escapado. Por extensão do que ocorreu com o relé e o inseto, os erros de programação passaram a ser chamados “bugs”, e o processo de examinar cuidadosamente o programa para livrá-lo dos eventuais erros “debugging” – ou seja, “desinsetização”.

Além dos diversos tipo de erros que podem estar ocultos num programa, ele pode apresentar características inesperadas, introduzidas a propósito no programa, ou, simplesmente, decorrência de alguma inconsistência ou de um “bug”. Um dito irônico afirma que, uma vez detectada a existência de um erro, se ele for convenientemente documentado no sistema, evoluirá e passará a ser considerado uma “característica”. No processador M6800 da Motorola havia uma instrução de máquina não documentada e que, se executada, faria o processador simplesmente desistir de prosseguir e passar a se comportar como um simples contador. O pessoal havia a denominado como “pare e pegue fogo” (HCF,“halt and catch fire” em inglês). Provavelmente esqueceram-se de removê-la após o fim da fase de projeto.

Enfrentamos esse tipo de problema em situações as mais diferentes do nosso dia a dia. Se algo é reconhecido como insuficiente ou gerador de risco, pode-se tentar consertá-lo ou, saindo pela tangente, avisar os usuários que “não é bom” usar determinado recurso, porque pode redundar em dor de cabeça. Nos mapas antigos, por exemplo, as regiões desconhecidas e inexploradas eram marcadas como sendo áreas em que “há dragões”, ou seja, melhor seria não ir para aqueles lados: um erro transformado em característica. Quem quiser prosseguir, que o faça por sua própria conta e risco.

O risco, aliás, é sempre inerente à pesquisa – não se faz investigação sem correr algum risco, mas há que manter em mente a necessidade de não criar riscos adicionais pela simples dificuldade em depurar o que fizemos, ou de não gerar situações que saiam do controle. 

O simples ato de tentar prever tendências e resultados, mesmo que executado com plena isenção, pode envolver metodologias e amostras nem sempre controláveis nas condições disponíveis. 

Mas, como somos todos humanos e falíveis, sempre podemos lançar mão de alguma explicação posterior, que transforme o que pareceria uma falha metodológica ou de aplicação, numa interessante “característica inesperada”. Mas a quem sofreu as consequências, não alivia saber se elas foram devidas a um “bug” ou a uma “feature”.


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O "bug" do Mark II em pessoa!

https://en.wikipedia.org/wiki/Software_bug



terça-feira, 16 de outubro de 2018

'Há ainda muito a ser feito', Jon Postel

Há versões sobre o ânimo original da Internet. Opto pela que parece-me acomodar dados e fatos. A Internet nasce como sucessora da Arpanet, projeto de rede encomendado à ARPA (Advanced Research Projects Agency) e financiado pelo DoD (Departamento de Defesa Norte-Americano). O recurso que sustentou o projeto é de origem militar. Mas o resultado, almejado pelos líderes do projeto e cientistas envolvidos, no ambiente e mentalidade dominantes nos anos 60 em círculos intelectuais nos EUA, foi uma rede totalmente aberta, sem controle central, sem censura e sem restrições. Leonard Kleinrock, um dos pais do projeto, tem em sua sala na UCLA (Universidade da Califórnia, Los Angeles) placa que marca a inauguração da Arpanet em 29 de outubro de 1969, ano em que também houve Woodstock...

Kleinrock continua ativo na UCLA. Além dele, muitos foram fundamentais no projeto, a começar por J.C.R. Licklider, diretor da ARPA à época, que escreveu textos que anteveem o futuro das redes. Vale a pena uma consulta rápida sobre seus textos e seu perfil.

Tive a sorte de poder encontrar três outras personagens fundamentais. Claro que há muitas mais. Centro-me nessas porque constituem o eixo central, o tripé mais conhecido. Vint Cerf, hoje “Evangelista Internet” na Google, que junto com Robert Kahn escreveu o TCP/IP, protocolo que se firmou como o de escolha para redes amplas, Steve Crocker, que serviu até 2018 como Presidente da ICANN e que assina em abril de 1969 o primeiro RFC (Request For Comments), série aberta e acessível que contem toda a documentação sobre a rede, incluindo os padrões definidos e... Jon Postel. Postel nasceu em 1943 e faleceu em 16 de outubro de 1998, há exatos 20 anos. Foi um baluarte técnico e dos conceitos da rede. Batalhou por uma rede aberta, descentralizada, sem controle nem burocracia, baseada em colaboração e confiança. Postel confundia-se com a IANA (Internet Assigned Numbers Authority) na tarefa de distribuir os endereços IP necessários ao funcionamento da rede e era o editor dos RFC, o organizador dos documentos e discussões sobre a Internet. Era ele também quem delegava domínios, como os de código de país. Em abril de 1989 delegou, sem maiores liturgias, o .br ao time técnico e acadêmico que operava a rede brasileira. Bastava-lhe concluir que a rede local estava ancorada onde havia entusiasmo e serviço à comunidade, para fazer a delegação. Era fácil reconhecer Postel: a indefectível mochila às costas, longas barbas e melenas, e sandálias de couro – o arquétipo comum dos técnicos “de raíz” da época. Um sujeito acessível, mas convicto do que pensava, portanto turrão. Manter o que ele defendeu é, em parte, a razão de ser do decálogo do CGI, lançado em 2009. A Internet que Postel queria era uma rede distribuída, com um núcleo sólido mas simples e agnóstico. A ação ocorreria nas bordas, a cargo dos usuários, conteúdos, serviços. Hoje vê-se uma concentração de poder no centro da rede, o que pode afetar sua neutralidade. Se os usuários passarem a ter sua atividade monitorada, ou sugerida pelo centro, isso pode ser ruim e perigoso. Talvez os riscos da atual centralização forcem o pêndulo do poder a voltar de novo para a periferia da rede.

PS. No youtube.com há um vídeo curto, de Vint Cerf, “I remember IANA”. Vale a pena vê-lo.


Material adicional: RFC 2458 - "I Remember IANA", em:
https://tools.ietf.org/html/rfc2468
https://www.youtube.com/watch?v=h2SpygwimA8&t=143s
https://www.internetsociety.org/grants-and-awards/postel-service-award/ten-year-tribute-jon-postel/



http://www.postel.org/remembrances




terça-feira, 2 de outubro de 2018

Boas Maneiras

A forma de convivência mais segura não é, ao contrário do que possa parecer, a existência de leis que nos obriguem à civilidade e à lhaneza, mas algo mais profundo e cultural, que nos constranja a seguir uma etiqueta social de convívio. Mais importante que uma lei que nos mande ceder o lugar a um ancião ou a uma grávida é termos a convicção moral de que isso é o correto a fazer.

O convívio na Internet segue na mesma linha. Sendo uma rede composta de milhares de redes autônomas independentes que aceitam voluntariamente integrar-se num único corpo, a cooperação e colaboração entre todas é vital para que a colcha de retalhos resultante seja operacional, eficiente e segura. 

Apenas como exemplo, lembremos como funciona a descoberta de rotas na Internet: como uma mensagem, que mando de meu computador a um distante alguém, chegará ao seu destino? O “mágico” que opera a proeza é um padrão, com mais de 20 anos de existência, chamado BGP (Border Gateway Protocol), o protocolo de borda. O BGP orienta a uma rede que, numa espécie de confidência vicinal, informe às suas vizinhas o que sabe e o que ela contêm, ao mesmo tempo que recebe esse tipo de informação das vizinhas. A troca de informações é propagada e gera uma tabela de roteamento que define caminhos e, passo a passo, levará a mensagem ao destino. 

Há muitas outras minúcias no roteamento da Internet, mas essa descrição simplista mostra claramente como funciona a colaboração: os dados andam na rede porque seus integrantes cooperam e repassam o que sabem aos vizinhos, criando rotas dinâmicas e eficientes. 

O lado complexo e obscuro fica por conta dos detalhes, tradicional residência do Tinhoso... Sempre os mal-intencionados podem se valer da confiança que receberam de seus pares, para fraudar o bom comportamento da rede toda, seja disseminando informações falsas afetando rotas e topologia, seja fazendo-se passar por outrem para atacar alguém na rede. O dilema dos técnicos e operadores é como resolver (ou minimizar) essas ameaças, sem romper com os princípios fundadores da rede. Afinal, a Internet é conservadora em termos de princípios.

A Internet Society (ISOC), uma das instituições mais tradicionais, foi fundada em 1992 e funciona também como suporte administrativo ao IETF (Internet Engineering Task Force). A ISOC lançou uma iniciativa para, preservando as boas características da rede, diminuir o espaço de ação dos malfeitores: MANRS (Mutually Agreed Norms for Routing Security), algo como “normas mutuamente acordadas para a segurança do roteamento”. Os iniciados na área pronunciarão o acrônimo em inglês como “maners”, ou seja “maneiras”. Boas maneiras. 

Há vasta informação sobre o MANRS na Internet (em www.manrs.org). Se todos os operadores de redes autônomas implementarem as medidas que o MANRS prescreve, é bem provável que o número de ataques de negação de serviço e quetais diminua. E há a boa notícia de que muitos já aderiram e novos continuam a chegar. O NIC.br, que opera os Pontos de Troca de Tráfego no país, assinou com a ISOC um memorando de entendimentos para apoiar a disseminação do MANRS. São tempos em que necessitamos cada vez mais de “boas maneiras”, tanto na rede como na sociedade, para preservar, ainda, alguma esperança.


www.manrs.org

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Temperança


Vivemos tempos de sensibilidades exacerbadas e do pipocar de emoções que rapidamente assumem o controle. Talvez seja uma consequência não desejada, que advém do fato muito positivo de que mais e mais estamos todos em contato via rede, e mais e mais falamos. Pode ser que estejamos testando nossa voz e seu alcance. Ou que estejamos experimentando a embriaguez da visibilidade.

Acabamos de ver, ao vivo, o incêndio que devorou tanto da nossa história. Por toda a parte, manifestações de pesar e de solidariedade, e o clamor de providências mas agora tardias: “casa arrombada... tranca na porta”. Claro que hoje é mais fácil salvar textos e ideias digitalizando-os. A velha ocupação dos copistas, que preservaram até nós tantos documentos inestimáveis, ficou bem fácil com a tecnologia que temos. Ou nem tanto...

Como bem comentou recentemente Vint Cerf, há riscos de um apagão gigantesco na história porque os dados preservados dependem também de se preservar o ambiente digital que permitirá recuperá-los – quantos dispositivos, programas, sistemas operacionais já não se perderam nessas poucas décadas? No caso do Museu, mesmo com a digitalização possível de material, o que se perdeu fisicamente é irrecuperável.

Conteúdo e contexto vieram à baila de novo quando li que uma importante comunidade de desenvolvedores de “software” aberto decidiu banir de manuais e do próprio código a expressão “master-slave” (mestre e escravo, em tradução literal).

Lembrei-me das aulas de eletrônica nos anos 70 quando aprendi o que era “flip-flop”, circuito de comutação e de memória. Existe em várias configurações, uma delas a de “master-slave”, que descreve uma operação em que parte do circuito comanda o contexto, e outra parte segue servilmente.

O conceito de “escravo” é algo nefasto e que já deveria estar totalmente removido da sociedade, mas o “escravo” do circuito em questão é apenas uma função não associável a qualquer imoralidade humana. Ao contrário, penso, detectar um problema oriundo do sentido original é uma forma de reviver a dor de mazelas que a humanidade busca intensamente remediar.

Do ponto de vista etimológico, sempre me ensinaram que a língua é dinâmica e que evolui ao talante de seus usuários. Seria “formidável” (e pedante) fazer as palavras voltarem à etimologia original. Ah, note-se que usei “formidável” em sua semântica primeira: “aquilo que mete medo, que é assustador”.

Eliminar palavras inadequadas levou-me a outra lembrança: Z, o filme premiado de Costa Gavras, trata do assassinato do deputado e ativista grego Gregório Lambrakis em 1963. Como mostra a história, em meio ao cenário de tumultos e de conflitos, houve o golpe militar que instituiu uma totalitária junta govenante. Durou de 1967 a 1974. Z, que é de 1969, trabalha com a corajosa investigação e julgamento dos envolvidos no assassinato.

Quando tudo parece apontar para a punição dos culpados, que também atingiria escalões políticos, ocorre o golpe militar truncando o processo. A cena final é um “anúncio em rede de televisão” em que se anuncia a “nova ordem no poder”. Termina com uma lista de temas que passam a ser banidos no país: diversos escritores, estilos de música, filósofos e... a letra Z!

Haveria que se coibir do uso da letra Z, porque sendo a primeira letra da palavra “vive” em grego, era usada nas pichações de protesto pelo assassinato de Lambrakis. Parece claro que proibir palavras, letras ou ideias nunca será solução para nada...


terça-feira, 4 de setembro de 2018

Caretinhas

Houve um tempo em que nossas impressões e sentimentos expressavam-se em puro texto. Era a época dos livros em que, totalmente enfeitiçados, entrávamos na história contada e vivíamos os dramas e as vidas das próprias personagens. Todo o tormento de Raskólnikov, de Crime e Castigo, após ter matado a velha agiota, acudia à nossa mente e, juntos com ele, expiávamos o crime indo passar uma temporada na Sibéria. O frio não era menos real pelo fato de estarmos no trópico.

Tudo começou a mudar no final dos anos 80, ao menos do jeito que vejo. Em 1989, na Fapesp, eu trabalhava no Centro de Computação e tínhamos o privilégio bastante ímpar de poder usar uma conexão internacional à rede Bitnet, o que nos dava o dom de receber e mandar correio eletrônico!

O correio eletrônico gozava de uma característica única: você fazia parte de um seleto grupo de “conectados”, que trocavam mensagens entre si, independentemente do status dos interlocutores. Pesquisadores aos quais jamais sonharíamos ter acesso e, muito menos, de estabelecer diálogo, dignavam-se a responder a correio eletrônico vindo de obscuros correspondentes do Brasil. Bem, o fato é que tínhamos correio eletrônico na Fapesp e, logicamente, nosso pessoal, do CPD, falava com os recém-conhecidos amigos virtuais via Bitnet – a “Because It´s Time Network”.

A Paulinha, então analista júnior do CPD, estava trocando “e-mails” com uns estudantes norte-americanos que tinham o “luxo” de possuir acesso à rede em seus próprios aposentos – nos dormitórios.

Certo dia a Paulinha me veio, cheia de dúvidas, com uma resposta que recebera, em texto, lógico, mas com uns finais de sentença enigmáticos. Algumas frases terminavam com dois pontos, hífen, abre parênteses, e outras com dois pontos, hífen, fecha parênteses. Reunimos o time de “espert

os da área” e começamos a discutir qual seria o sentido daquela pontuação... Uma nova forma de marcar o fim de uma frase? Problemas de compatibilidade com o conjunto de caracteres usado (ASCII)?

Não conseguimos uma resposta coerente. O jeito foi pedir à Paulinha que escrevesse ao correspondente “entregando os pontos” e pedindo e ele uma explicação do mistério. A resposta veio rápida. Quer dizer... rápida, na medida da época: um ou dois dias. Devíamos olhar aquilo girando o texto 90 graus. Assim, o enigma se tornaria uma “face triste” ou uma “face risonha”. Para nós foi o começo do que hoje se chama “emoticons”, e que à época batizamos de “caretinhas”.

Em textos curtos, telegráficos, sem dúvida uma “caretinha” ajuda na expressão da ideia. É fácil identificar algo pseudo-sério mas com intenção irônica ou humorística, se houver uma caretinha sorridente apensada. A sofisticação de buscar no leitor uma análise que vai identificar a ironia no sentido “literal”, entender a ideia que se quer defender mesmo usando de antinomia, ou de argumentação por absurdo, poderia ser abreviada ou suprimida com o uso de caretinhas. Se não há uma caretinha rindo ao final, provavelmente o texto deve ser lido literalmente. Se há uma caretinha, pode tratar-se de ironia.

Ganhamos ou perdemos com isso? Difícil responder. Certamente o trabalho mental foi facilitado, mas perde-se a sutileza e a complexidade da trama e da emoção. Afinal os hieróglifos, há quatro mil anos, também eram desenhinhos.

É um avanço?



terça-feira, 21 de agosto de 2018

Ordálios Digitais

A busca pela verdade é tão velha como o homem, e está longe de se encerrar. Há inúmeros exemplos de tentativas de definir o que seria sua essência e, convenhamos, pouco sucesso. Talvez seja mais fácil tentar definir o que seja mentira. Mentira não parece ser o oposto de verdade. Para Nietzsche “as convicções são mais inimigas da verdade do que as mentiras”. Mentira busca parecer verossímil para obter maior resultado.

Desde sempre houve disseminação de boatos e de mentiras visando a obtenção de alguma vantagem estratégica. A Internet elevou esse problema ao paroxismo. Nossa época foi batizada de “sociedade da informação”, mas talvez devesse chamar-se “sociedade do ruído”. Afinal, uma das medidas da qualidade acústica de um equipamento é a relação sinal/ruído que ele apresenta. Nos velhos amplificadores, conhecidos como de “alta fidelidade”, a relação sinal/ruído era muito elevada: havia imensamente mais sinal do que ruído. Qual seria a relação sinal/ruído da Internet? E tem ela aumentado ou diminuído?

Suponhamos que seja viável definir uma mentira. Como diminuir seus efeitos? Há alternativas: impedir que surja; detectá-la rapidamente e removê-la; tornar o receptor menos suscetível a ela. Como na Internet parece dificílimo impedir que a mentira brote em algum ponto da rede, a tendência pareceu ser a de trabalhar na rápida identificação e remoção.

Para que essa detecção seja neutra e sem viés, pressupõe-se que há uma verdade conhecida, à qual a mentira se contrapôs. E trabalha-se em desenvolver “verificadores de fatos” e “detectores de mentiras” digitais. Podem, sem dúvida, ser ferramentas úteis às quais os usuários podem lançar mão, caso queiram. Mas, se instituídas como “filtros antecipatórios”, oráculos infalíveis, os usuários terão apenas uma versão “higienizada” da rede, sob critérios invisíveis de “higienização”. A “convicção” imposta pode ser um inimigo ainda mais perigoso.

O passado nos mostra formas de “verificadores de verdade”, não digitais, mas automatizadas. Lavar a honra com um duelo, por exemplo, não é mais uma alternativa hoje. Outra “prova” antiga para decidir se alguém dizia a verdade, se era inocente, consistia em submetê-lo ao ordálio, uma prova cruel que deixa ao imponderável a decisão sobre o acusado. Andar sobre brasas vendo se queima ou não os pés, ser jogado num rio para testar se flutua ou afunda. 

Sobrou-nos ainda a expressão “pôr a mão no fogo” como mostra de confiança numa afirmação. Se eu ponho “minha mão no fogo” por algo e saio ileso, o fogo provou que eu estava dizendo a verdade. Na versão digital, não é mais o fogo, mas um programa que examinará a afirmação, decidindo sobre sua veracidade. Quem sabe teremos uma versão moderna da pitonisa, que nos diria o que nos reserva o futuro sem ter que recorrer a fumaças místicas, ao exame do voo de pássaros ou das vísceras de animais. Entretanto é exatamente a terceira opção acima, a que trata da evolução do receptor e que pode nos parecer longa e difícil, aquela aconselhada pelo oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”.

Submeter-nos a um ordálio moderno, entregar a decisão a uma “pítia digital” é desacreditar ou abdicar do aperfeiçoamento humano. Eu não colocaria minha mão no fogo pela exatidão e neutralidade do ordálio, seja ele o antigo, ou o digital...


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Ordálio da água fervente:




terça-feira, 7 de agosto de 2018

A Memória do Mundo

A Memória do Mundo é o título de um pequeno conto fantástico escrito em 1968 por Ítalo Calvino. É contado em primeira pessoa pelo diretor de um centro de documentação que, ao se aposentar, pretende passar a continuação da tarefa a seu sucessor natural – Muller, um especialista em agregação de dados. Há detalhes importantes a passar a Muller: o verdadeiro objetivo do trabalho volta-se ao iminente fim do mundo. “Trabalhamos tendo em vista a extinção da vida sobre a Terra, em breve. Para que tudo não tenha sido inútil, para transmitir aos outros, sabe-se lá quem seriam, aquilo que sabemos … e você consegue colocar todo o Museu Britânico numa castanha”. Parece algo ambicioso mas, como pontua Polônio em Hamlet, “há método em sua loucura”. 

Em 1996, usei pela primeira vez um buscador automático geral na rede: o Altavista. Era absolutamente espantoso que, em apenas poucos dias, um conteúdo, de qualquer lugar da então nascente Web, fosse mapeado e catalogado pelo Altavista. Esses “poucos dias” tornaram-se horas e, mesmo com a Web imensamente maior, tudo continua a ser indexado pelas ferramentas de hoje. Eis a memória do mundo ao alcance da mão.

Voltando ao texto, o que parecia um trabalho bem definido tinha seus percalços e suas tentações. Ao fim e ao cabo, só existirá o que estiver armazenado na memória. O que ficar de fora, é como se nunca houvera existido. O processo definirá, em suma, até o passado do mundo. Mas, mesmo que se guarde o máximo possível, sobre homens, animais, conversas, imagens, há limites. 

Caberá ao diretor o poder discricionário: “...o posto para o qual você é qualificado lhe dá esse poder, o de acrescentar um ‘toque pessoal’ à memória do mundo”, e é difícil resistir a essa tentação. O diretor esclarece ainda alguns “conceitos”: as obviedades, além de pouco atraentes ao leitor, nem sempre representam a verdade. O misterioso e o inusitado são muito mais provocativos. Aconselha: “com as intervenções que você fará – com extrema delicadeza, claro – serão disseminados também juízos, reticências, e... até mentiras. Veja, apenas na aparência a mentira exclui a verdade. Em muitos casos, por exemplo num consultório psicanalítico, a mentira pode ser até melhor indício que a própria verdade”

O conto vai deslizando em direção ao abismo, até que o diretor faz uma confissão. Todos o sabem lamentoso viúvo com a perda de Angela, amada esposa. O que poucos sabem é que seu casamento não fora um mar de rosas. Longe disso. Angela, a “esposa ideal”, era uma imagem carinhosamente montada e que ele preservou nos arquivos. A distância entre a Angela-informação e a Angela-real tornou-se tão grande que a única saída para não colocar em risco sua imagem ideal foi assassiná-la. No último parágrafo chega a tremenda conclusão: “se na memória ideal do mundo não há nada a corrigir, o que nos resta é corrigir a realidade, onde ela não concorda com a memória do mundo.”

Estamos ficando cada vez mais próximos de poder “corrigir a realidade”. Hoje. com as redes, todos somos coautores de nossa “memória”, que pode ou não aderir à realidade. Será que nos veremos no papel que o diretor atribuiu a Muller? “O poder corrompe” e, como complementava Millôr, “o poder absoluto corrompe melhor”. 

Os portugueses também já sabiam: “Quer conhecer o vilão? Dá-lhe o bastão.”


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Ítalo Calvino

terça-feira, 24 de julho de 2018

Redomas ou vacinas?

O que faz uma notícia falsa ser eficiente? Ou, de outra forma, o que leva alguém a acreditar numa notícia falsa? Os recentes eventos demonstram o aperfeiçoamento de uma estratégia antiga. Parte-se do óbvio: é difícil mudar preferências sedimentadas de cada um. Logo, continua sendo mais eficaz “chover no molhado” e indiretamente focar nos indecisos, ou nos não seguros de suas preferências, para trazê-los ao campo de interesse do propagador das inverdades e meias-verdades.

A Internet, as redes sociais e o “big data” permitem facilmente mapear e classificar os usuários em categorias de interesse. Feita a taxonomia, a receita é simples: mandar a cada grupo a informação que ele desejaria ouvir, seja ela verdadeira o não. Esse tipo de mensagem não encontrará barreira de entrada: será “bem-vinda” na mente do receptor. Erro seria mandar mensagens cujo conteúdo não apoia a “realidade” em que o usuário se sente bem. Mesmo que uma mensagem seja verdadeira, se é contrária aos interesses do receptor, é indesejada e desconfortável. Afinal “ninguém ama o portador de más notícias”.

A estratégia fica fácil de esboçar: manda-se a cada grupo o que ele mais quer ouvir (até mesmo uma mentira) e o grupo, além de reforçar o próprio posicionamento, vai rapidamente disseminar a notícia, gerando “conquistas” no campo dos indecisos. É a guerra de versões, que a Internet tornou mais potente e insidiosa. Mesmo alguém, perfeitamente íntegro e correto, porém menos atento, poderá ser vítima de uma notícia falsa instilada ardilosamente. Tudo se passa como se o seu “sistema imune” não detectasse o “patógeno” e deixasse a porta aberta ao acesso.

Como prover meios de defesa? De forma rudimentar, há duas principais opções à mão: blindar o usuário do ataque, para que ele não seja vítima de “organismos deletérios”, ou: aumentar sua “autodefesa” para que consiga, por si mesmo, impedir o acesso das pragas. Como forma de implementar essas opções, ainda nesta analogia simplória, pode-se: colocar os pacientes dentro de redomas, defendendo-os do que chega, ou: melhorar sua autodefesa (por exemplo, com vacinas), tornando-os mais eficientes contra ataques.

A solução “redoma” traz uma tentação adicional, porque representa um mecanismo de controle. Quem opera a redoma controla o que o paciente pode ou não receber. Quem configura a redoma decide o que é nocivo ou falso. Quem controla a redoma, enfim, define o que se vê do mundo. Se a redoma for perfeita e indevassável, o paciente conhecerá o que o controlador permitir, e viverá em seu mundo limitado, com a segurança provida pela redoma.

Já a vacina expõe, mesmo que de forma limitada, o indivíduo à doença em si. A vacina alertará o organismo para que ele detecte o que “parece ser uma doença” e contra ela estabeleça proteção. Durante a fase do “aprendizado” alguns cairão em armadilhas, outros não criarão defesas, mas, com o tempo, a “casca” engrossará e todos serão mais resistentes a ataques e armadilhas. Qual a melhor opção?

Certamente é mais árduo melhorar paulatinamente a autodefesa, do que usar, de pronto, uma redoma. Optar por colocar os usuários em redomas tutela seu acesso ao ambiente diverso e muitas vezes perigoso da rede. Fazer campanha por vacinas é ir na direção da conscientização, de fazer saber como proteger-se. Para o espírito da Internet, redomas são abominação.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Conservadores e a Internet

Especialmente em relação à Internet, declaro-me um reformador-conservador. O verdadeiro reformador, em diversos aspectos, age como conservador. Se por “reformar” entender-se “desconstruir”, se o moto é terra-arrasada em relação ao que existe, melhor seria chamá-lo “demolidor”. Um reformador não visa a demolir uma casa mas, sim, melhorá-la, trocando o que está errado e preservando o que está certo. Em relação ao que nos rodeia, defendamos o que tem valor, independentemente do que diz “a moda” do momento, e tentemos mudar o que parece errado. É importante não ver apenas o errado, mas ver também o certo. É o que diz o velho adágio: ao final do banho do bebê, joga-se fora a água suja, mas não a criança.

A aparição da Internet nos anos 80, sua imediata adoção e espetacular disseminação são motivos de otimismo e esperança: uma aposta na humanidade. Na Internet dá-se crédito inicial ao interlocutor, mesmo contrastando múltiplas opiniões. Debatem-se ideias, apesar do non sequitur de tantos argumentos. Todos ficam expostos a tudo, e isso parece bom e adequado. Ou, ao menos, era bom e adequado quando esses “todos” eram os integrantes da comunidade acadêmica reunida na rede. A expansão trouxe bilhões de internautas, a diversidade cresceu muito – pontos positivos. Mas, em consequência, cresceram também as hordas de ofensores e ofendidos, aumentou a facilidade com que se constroem e disseminam mentiras e factoides e se arregimentam partidários em defesa dessa ou daquela ideia. Focos de tensão importantes e hoje muito discutidos.

Seria esse um defeito da Internet? Dizer que isso é culpa da Internet equivale a dizer que o balançar das árvores causa o vento, ou que somos violentos por termos mãos, ou... bem, chega de analogias ruins. Evitemos diagnosticar errado e medicar pior. Ninguém proporia que as pessoas andassem de mãos algemadas, ou que usássemos mordaças para não nos ofendermos mutuamente. O que é uma clara virtude da Internet – dar voz e ouvido a todos – não pode ser, também, um defeito. Eis onde sou radicalmente conservador: quero preservar a abertura e a liberdade que a Internet nos trouxe, sem abdicar da luta para melhorar o que temos. Discussões acaloradas sempre as houve e todos aprendem a se comportar e a se defender. Quando a rede era desconhecida dos legisladores e dos políticos, ninguém propunha “medidas de proteção” aos que nela se aventurassem. Todos devem responder pelos seus atos mas, a priori, a rede deve ser preservada. O “decálogo” do CGI, base do Marco Civil, dispõe: “o combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos”.

O que parece ser um problema da Internet é, de fato, um problema dos humanos. Pela chegada constante de novos ingressantes, que experimentam o inebriamento do espaço aberto e da visibilidade que a rede proporciona, deve-se levar algum (grande...) tempo até que a civilidade se reestabeleça (sou um otimista!). Para isso temos de ser “conservadores”, defendendo o que a Internet nos trouxe, do mesmo modo que valorizamos o longo caminho percorrido para chegar até aqui. É um bonito bebê a preservar.

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https://www.eff.org/cyberspace-independence
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We are creating a world that all may enter without privilege or prejudice accorded by race, economic power, military force, or station of birth.
We are creating a world where anyone, anywhere may express his or her beliefs, no matter how singular, without fear of being coerced into silence or conformity.
...


terça-feira, 26 de junho de 2018

Um Mundo, uma Internet

É a senha do Wi-Fi da 62.a reunião da Icann a instituição que cuida de coordenar nomes e números da Internet: “oneworldoneinternet” (“Um Mundo, uma Internet”, em tradução literal). Começou ontem aqui, no Panamá. Dois temas disputam as atenções: os impactos e alcance do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) europeu, e a continuidade da discussão sobre como tratar das solicitações de registro de domínios de primeiro nível que conflitem com nomes geográficos, países, regiões, cidades. 

O segundo tema pode ser ilustrado por um caso concreto que continua sobre a mesa agora: o que fazer do pedido de registro de “.Amazon” por uma grande empresa comercial, se o nome também remete a uma região que se estende por diversos países da América do Sul? Há posições de governos e de comunidades que se opõem à delegação pura e simples do nome de domínio a uma empresa, e há, do outro lado, argumentos que sustentam não haver confusão para os usuários. Veremos como isso caminhará.

Quanto ao GDPR, que entrou em operação há menos de um mês, a priori saúda-se enfaticamente uma legislação que visa à proteção de nossos dados e privacidade, cada vez mais ameaçados em tempos de internet e de redes sociais. 

Entretanto, sempre há detalhes. A coisa enrosca no conflito inevitável que há entre a fluidez e, mesmo, a inexistência de fronteiras na rede, vis-à-vis as legislações nacionais, soberanas em seu território. A proteção dos cidadãos de um país poderia se estender e alcançar serviços e indivíduos que estão fora de suas fronteiras físicas? 

Todos queremos uma rede abrangente, única e irrestrita, mas ela colocará em contacto direto, fatalmente, consumidores e fornecedores que estão sob diferentes legislações nacionais, sem falar de culturas distintas. Pode um produtor de cachaça brasileiro vender seu produto a um cidadão do Oriente Médio onde o álcool é proibido? Como e quem sancionar se um cidadão comprar, pela rede, produtos que são ilegais em seu país? E esses são os casos “fáceis”, porque envolvem matéria e há sempre a possibilidade de sustar a entrada de produtos físicos em uma determinada fronteira. O que fazer, entretanto, com dados pessoais ou informações? 


E é aí que o GDPR procura colocar um limite: que tipo de informação pode ser coletada de um indivíduo? Quando se deve pedir consentimento para tomar uma ação que envolva identificação ou coleta de dados do mesmo? 

De novo, é importante e tempestiva a busca por preservarem-se dados pessoais e a privacidade dos indivíduos, mas resta a dúvida se isso é factível sem a consequente extensão da longa mão jurídica para além das fronteiras. É grande a tentação grande, especialmente para regiões poderosas como da Comunidade Europeia, impor sua forma de ver as coisas ao resto do mundo.

Que fique claro: é fundamental proteger a privacidade do indivíduo, enquanto ainda resta alguma, mas também é necessário haver assimilação e entendimento da nova realidade, além do grande esforço em harmonizar interesses e, principalmente, manter o bom senso sobressalente. 

Há riscos do esperado remédio para alguns dos grandes males trazer embutidos efeitos colaterais não avaliados. Lembra antiga frase de Chesterton, que se pode se transpor: “Tecnologia é uma faca de dois gumes. Todos concordamos, por exemplo, que o zepelim é uma coisa maravilhosa, mas isso não impede que um dia possa se tornar algo horrível...”



terça-feira, 12 de junho de 2018

IPv6 e Tubarões


Uma improvável leitora avisa-me que a coluna faz quatro anos dia 16. O primeiro tema abordado foi o perigo do “desaparecimento da internet”, associado ao então próximo exaurimento dos números IP (Internet Protocol) na versão 4 (IPv4). Alertava sobre a necessidade da rápida adoção do IPv6, forma de garantir a expansão exuberante da internet. Semana passada comemorou-se o 60 aniversário da iniciativa global para disseminação do IPv6 (o IPv6 Day). Curiosamente, pode parecer ominoso ao místicos: afinal três 6 justapostos remeteriam ao temido “número da besta”...

Quanto ao IPv6, o Brasil está bastante bem: está entre os 10 países que mais expandiram o uso do novo protocolo, e entre 24 que ultrapassaram 15% de IPv6. Da lista dos “10 mais” constam, na ordem, Bélgica, Grécia, Alemanha, EUA, Uruguai, India, Suíça, Japão, Malásia e... Brasil! É um grupo estranho, com alguns membros menos óbvios, e de quatro continentes, reforçando que a necessidade da adoção impacta a todos. Por sinal a Bélgica, que lidera a lista, foi o primeiro país a superar 50% de conexões em IPv6.
IPv6 e tubarões
É confortador que um protocolo, criado em 1998 para suportar um crescimento vigoroso da internet, finalmente consiga 20 anos depois obter mais reconhecimento e atenção. Assim, pelo lado técnico há boas perspectivas de sobrevivência. Vamos bem.

Mas a internet, ao menos da forma como a conhecemos e como foi concebida, continua em risco. Sou dos que acham que, a despeito das mazelas, aporrinhações e riscos, os benefícios que uma rede única e ubíqua nos traz são incomparavelmente maiores. E quem a coloca em risco, muitas vezes, é quem, na ânsia de remendar e contornar problemas, acaba por criar outros ainda mais graves. Palavras-chave muito ouvidas hoje, como “riscos aos usuários”, “notícias falsas”, “manipulação de fatos”, “arregimentação de incautos”, mesmo representando a realidades da rede, não deveriam ser conduíte para medidas que podem levá-la à fragmentação e deformação, pela perda de suas características principais de abertura e liberdade.

Quando se pensa em adaptar a rede a um agrupamento social ou país, é grande a tentação de extrapolar as fronteiras nacionais e impor seu pensamento à rede toda. Na internet só funciona o que é globalmente aceito: regulamentos locais tenderão a falhar, ou arruinarão a unicidade da rede. É o momento de se discutir a extraterritorialidade de jurisprudências, tema que é cada vez mais crítico.

Mesmo dentro de fronteiras, há que se ter muita cautela em propor leis. Valeria mais, talvez, fomentar a conscientização dos cidadãos quanto ao uso adequado.

Uma comparação, que não se pretende jocosa, é com os riscos do mar. Há, por exemplo, ataques de tubarões no Recife, em praia considerada de risco. Como diminuir esse risco? Certamente o tubarão não reconhece nem respeita leis nacionais. Também não há como “multá-lo” ou “prendê-lo”. Ainda menos sentido faria uma caça indiscriminada visando sua eliminação, ou então, que se proíba o acesso ao mar. Ao lado de eventuais providências técnicas que diminuam os riscos, o básico é incutir-se consciência deles, e agir de acordo. Eduquem-se os usuários, sem esquecer que há – e continuará a haver – tubarões.



Países com mais de 15%  de penetração de IPv6, segundo:
https://www.internetsociety.org/blog/2018/06/six-years-after-state-of-ipv6-deployment-2018/


terça-feira, 29 de maio de 2018

Eça e três pecados sociais


Há uma carta a “Bento de S.” na “Correspondência de Fradique Mendes”, delicioso texto do Eça de Queiroz. É de 1900, mas parece de ontem. Nela a personagem Fradique apostrofa Bento pela ideia de fundar um jornal.

“Meu caro Bento, a tua ideia de fundar um jornal é daninha e execrável. Tu vais concorrer para que no teu tempo e na tua terra se aligeirem mais os Juízos ligeiros, se exacerbe mais a Vaidade, e se endureça mais a Intolerância. Juízos ligeiros, Vaidade, Intolerância - eis três negros pecados sociais que, moralmente, matam uma Sociedade!”

Três “negros pecados sociais” ainda mais claramente visíveis hoje. Troque-se “jornal” por “rede social” (abaixo troquei por “X”), e teste a atualidade da carta. 

Sobre o primeiro pecado, juízos ligeiros: “é com impressões fluidas que formamos as nossas maciças conclusões. Largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos ‘Este é uma besta! Aquele é um maroto!’. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há ação individual ou coletiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda. Por um gesto julgamos um caracter: por um caracter avaliamos um povo”.

No segundo pecado, a vaidade, em tempos de narcisismo em alta e da compulsiva necessidade de sermos vistos, a carta vai certeira: “a forma nova da vaidade para o civilizado consiste em ter o seu rico nome impresso no X, a sua rica pessoa comentada: eis hoje a impaciente aspiração e a recompensa suprema! O mundo quer agachar sob as duas asas que o levem à gloríola, lhe espalhem o nome pelo ar sonoro. E é por isso que os homens se perdem, e as mulheres se aviltam, e os políticos desmancham a ordem do Estado, e os artistas rebolam na extravagância estética, e os sábios alardeiam teorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os gêneros, surge a horda ululante dos charlatães. Vê quantos preferem ser injuriados a serem ignorados!”

Finalmente, a intolerância, o pecado mais atro, cria-se um novo espaço para o seu exercício, baseado em espaços murados: “dentro desse murozinho, onde plantas a tua bandeirola com o costumado lema de imparcialidade, desinteresse, etc., só haverá, inteligência, dignidade, saber, energia, civismo.

Para além desse muro, só haverá necessariamente sandice, vileza, inércia, egoísmo, traficância!”. São esses muros que impedem uma pacificação. Seria possível um eventual “aperto de mãos”, “naquele gesto hereditário que funda os pactos”, “se cada manhã X não avivasse os ódios de Princípios, de Classes de Raças, e, com os seus gritos, os acirrasse como se acirram mastins até que se enfureçam e mordam.”. Mundo dividido entre “réprobos” e “eleitos”. “X exerce hoje todas as funções malignas do defunto Satanás, de quem herdou a ubiquidade; e é não só o Pai da Mentira, mas o Pai da Discórdia”, lhes sopra na alma a intransigência, e os empurra à batalha, e enche o ar de tumulto e de pó. Não só atiça as questões já dormentes como borralhos de lareira até que delas salte novamente uma chama furiosa - mas inventa dissensões novas”.

E o típico fecho irônico: “Onze horas! Ora esta carta já vai muito tremenda e verbosa. Eu tenho pressa de a findar, para ir, ainda antes do almoço, ler meu jornal, com delícia. - Teu Fradique”. 

Sob o sol, nada de novo...



terça-feira, 15 de maio de 2018

Em busca de sanidade

Os chineses desenvolveram um sensor que, acoplado a um capacete ou a um boné, capta ondas cerebrais de seu portador e, ao que diz a notícia, será de uso obrigatório em uma gama de atividades. Como sempre, há uma explicação “racional e de boa fé”: imagine-se que um condutor de ônibus esteja prestes a adormecer ao volante. O fiel boné transmitirá essa informação à central, que poderá tomar as devidas providências preservando a integridade física dos ocupantes e do próprio motorista. Em cenário um pouco diferente, chão de fábrica, o sensor detecta que um funcionário está distraído e pode sofrer um acidente ou danificar um equipamento e, de novo, providências serão tomadas.

Mas, se imaginarmos poder medir o grau de insatisfação do operário, uma eventual latente tensão, uma tendência a se desgarrar do rebanho ou iniciar um movimento reinvidicatório, aí a porca torce o rabo. O capacete poderia acionar os setores adequados “de controle”, e a “explicação” ficaria mais difícil. Prefiro correr o risco de algum imprevisto, do que ter meu estado de espírito constantemente monitorado.

Fazendo paralelo com a discussão sobre dados pessoais, creio que não há dado mais pessoal do que o que se passa em meu bestunto.Entretanto nem sempre é tão clara a linha de corte, entre o que se pode e o que não se pode fazer, e há opções que podem nos levar ao oposto do que buscávamos, ingenuidades reais, e as falsas, travestidas de “boa fé”. Adultos devem ser tratados como tais, em seu direito de decidir as barganhas da vida, respeitados os limites éticos. As maravilhas que a tecnologia nos traz não são dádivas gratuitas e, obviamente, há modelo que as sustenta.

Se, por um lado, há que se buscar limite e transparência dos acordos faustianos que estamos dispostos a assinar, por outro não se pode esquecer que o que move o mundo sempre foi a ambição, seja material, seja pelo poder. Ferramentas como buscadores, aplicativos de entretenimento, provedores de informação e redes sociais não são “dádivas” e custam/valem proporcionalmente ao seu alcance e popularidade. E o modelo que as sustente, por ora, é o mesmo do século passado: nós, a plateia, somos o objeto de troca.

Ouvimos rádio, assistimos à televisão, usamos os poderosos buscadores e ferramentas na rede, sem aparente pagamento, mas a um custo. Confesso que carrego no porta-luvas do carro um “guia de São Paulo”, mas sou um recalcitrante. Hoje basta seguir a orientação da mágica vozinha suave, que nos informa “vire à esquerda em duzentos metros”, mas, para isso, devemos liberar nossa localização na cidade, parte da barganha faustiana.

Claro que o usuário concordou em dar a sua localização, como aliás já ocorre no uso do celular, mas será que ele sabe que essa informação poderia ser repassada a outros interessados? Ele concordaria com isso?

http://www.scmp.com/news/china/society/article/2143899/forget-facebook-leak-china-mining-data-directly-workers-brains

https://www.technologyreview.com/the-download/611052/with-brain-scanning-hats-china-signals-it-has-no-interest-in-workers-privacy/