segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

As camadas da internet

Cibernética, palavra de raiz grega, tem o sentido de governança. Já que falamos de redes, talvez cibernética seja mais adequada a esse conceito difuso: diríamos cibernética da Internet quando discutirmos sua governança e, para isso, há as pistas que a própria Internet fornece: ela tem contextos e camadas. A cibernética também os terá.

A camada mais profunda é a estrutura física e está afeita às telecomunicações. Internet chega até nós via linhas telefônicas, rádio, cabos coaxiais e ópticos, satélites, etc. E nesse nível a cibernética anda bem definida há tempo. Usa recursos públicos, às vezes escassos. Há concessões para exploração do serviço, regras técnicas de alocação de recursos, normas jurídicas a serem seguidas. No Brasil, o órgão regulador das telecomunicações é a Anatel.

Sobre essa camada, diversos conjuntos de programas implementam famílias de protocolos, há mais de 40 anos, para que computadores (e humanos) possam conversar. De todas as alternativas, o TCP/IP baseado em padrões e processos abertos foi a solução eleita pela “comunidade Internet”: pesquisadores, técnicos, terceiro setor, empresas e governos.

Quanto à sua cibernética, essa camada vale-se muito dos que debatem e dos que têm interesse em implementar os protocolos. Todos podemos participar dessa discussão, mas a necessidade de conhecimentos específicos torna-a mais adaptada à comunidade técnica/acadêmica. Aqui não se destacam o uso de recursos públicos ou regulação: a solução que prevalece é a que, ungida pelo consenso, mostra-se tecnicamente sólida, estável, confiável e permite o crescimento da rede.

Chega-se agora aos níveis de interação, de geração e consumo ilimitados de conteúdo, onde os atores, humanos ou máquinas, enviam e recebem informações entre si na gigantesca matriz onde todos estão ligados a tudo. É o nível mais complexo e desafiador. A Internet permitiu que todos pudessem expressar suas ideias e convicções, além de executar transações pela rede num ambiente global, ignorando fronteiras nacionais.

Entretanto note-se que legislações nacionais raramente coincidem: a definição do é “legal” ou “permitido” varia de um país a outro, mas a rede é global, desafiando-nos a prover coexistência, preservar a liberdade e os direitos individuais, combater os ilícitos, etc.

Trata-se de um complexo e colorido mosaico onde as peças nem sempre se encaixam, onde valores locais e globais podem conflitar. Aqui cibernética é a arte de harmonizar as diferenças e preservar o convívio numa rede única, não fracionada: preservar a autonomia dos componentes do mosaico sem que ele se estilhace.

Trata-se assim de promover e estimular o diálogo entre os que têm interesse nessa rede única, estável, socialmente útil, e também disruptiva e revolucionária.

Fóruns nacionais como o “Observatório da Internet”, mantido pelo CGI, e internacionais como o IGF são espaços para defender a rede e seus princípios. E podemos nos orgulhar que o Brasil é visto como protagonista nesse tema: aprovamos há um ano o Marco Civil e estamos tratando de proteção de dados individuais. Que tenhamos persistência e sorte no caminho.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O Marco Civil não é a cura de todos os males

Esculápio, o deus da Medicina, teve duas filhas: Higia ("saúde", de onde vem "higiene") e Panaceia, "a que tudo cura".

O Marco Civil está em vigor há quase um ano. Há, entretanto, pontos a esclarecer, especificar ou, até, regulamentar. Essa complementação será feita por decreto mas, para isso, os diversos segmentos da sociedade são chamados a contribuir com idéias e sugestões.

Em "neutralidade da rede", por exemplo, há espaço para a definição de possíveis exceções a ela. Para isso, o CGI (Comitê Gestor da Internet) e Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) serão ouvidos. Mas antes de procurar exceções, temos que voltar à essência do que estamos tratando. Um de meus temores pessoais, por exemplo, é que se tente usar o Marco Civil como uma panaceia para todos os males que nos afligem. Nunca é demais lembrar que ele surgiu para, mais do que "curar males", evitar que surjam. Uma espécie de vacina para manter a saúde da Internet.

Não espere do Marco Civil que resolva o problema da baixa inclusão na rede, que combata desequilíbrios econômicos, que promova o uso competitivo e socialmente adequado da Internet. Para isso há leis e organismos específicos, que existem antes do Marco Civil e que agora atuarão em sinergia com ele, cada qual em sua esfera.

O que se busca com a neutralidade, então? A meu ver, queremos que a experiência total de rede esteja disponível a todos. Que se possa provar de tudo, como num imenso bufê, porque é dessa exposição que deriva o crescimento da rede, o surgimento de novos aplicativos, o ativismo da comunidade.

A forma com que se chega à rede é um dos complicadores dessa discussão e afeta nossa experiência. Ligados de forma perene, em casa ou no trabalho, teremos disponível uma "capacidade", uma bitola de cano que nos liga ao manancial da Internet. Mas se a estivermos usando de forma móvel, via telefone, o que temos não é "bitola de cano", mas "tamanho de balde": a franquia.

De qualquer forma, seja no acesso fixo, seja no móvel, a neutralidade defende que nenhum destino nos seja vedado, nenhuma aplicação restringida ou tecnicamente privilegiada. A rede é rica e nela há serviços pagos e serviços grátis, mas esse não pode ser critério que privilegie ou obste tecnicamente um serviço. Se eu contrato uma franquia de "x" gigabytes, devo poder usá-la como quiser, até o último byte. Pode ser que alguns serviços, devido a acordos comerciais, não gastem minha franquia, e isso pode ter efeitos em áreas como a de competição ou a econômica mas, em meu entendimento, se o meu livre arbítrio em usar o que contratei estiver preservado, e se os "pacotes de dados" não forem priorizados, não perco neutralidade com isso. Penso, assim, que a discussão sobre bytes que gastam a franquia e outros que não gastam, cabe dentro de uma rede que não restringe o arbítrio do usuário, tecnicamente neutra. Poderia isso deformar o cenário competitivo e econômico? Pode ser.

Mesmo assim, não é missão do Marco Civil tratar desse aspecto. Se o sobrecarregarmos com nossos próprios projetos, poderá ser ineficiente para cuidar de sua missão específica! O Marco Civil serve muito mais a Higia do que a Panaceia.