terça-feira, 26 de abril de 2022

O Rochedo e o Mar

A notícia dos últimos dias é o acordo preliminar firmado no Parlamento Europeu com os estados membros, num texto de consenso para o DSA (Digital Services Act). Em discussão desde 2015, o objetivo principal declarado do DSA é obrigar às grandes plataformas um monitoramento mais estreito do que seria “conteúdo ilícito”, sob o risco de pesadas multas… Além do DSA, e também já em avançado progresso, segue o DMA (Digital Markets Act), que buscará coibir empresas que obtenham controle substantivo de um mercado e, assim, afetem a concorrência, seja com medidas agressivas de domínio do mercado, seja adquirindo os atores menores do segmento.

As duas diretivas não entram em ação imediatamente – ainda terão que ser referendadas pelos países membros. Prevê-se que o DSA esteja em condições operantes em 2024. enquanto o DMA pode, até, entrar antes disso, em 2023. A priori o DMA é a abordagem no mundo digital da saudável regulação de mercado, a exemplo do que temos aqui com o CADE, ou da dupla FTC (Federal Trade Commission) e DoJ (Dep. of Justice)/Antitrust Division nos EUA. Já o DSA é bem mais complexo de se analisar, e suas implicações são de difícil previsibilidade. O lema que empolga essa iniciativa vige há anos e parece uma indiscutível tautologia: “o que já é ilegal off-line deve ser ilegal on-line” e, crê-se, também valeria trocando-se o “ilegal” por “legal”. Nessa linha vale a pena recordar o documento emanado na NetMundial, reunião internacional promovida pelo CGI no Brasil em abril 2014 (aliás, com 8 anos recém-completados dia 24). Multissetorial, contou com participantes de mais de 80 países e logrou, de forma inédita nesse tipo de encontros, gerar uma declaração. Mesmo não vinculante, dela consta que “Direitos que as pessoas têm fora da rede também devem ser protegidos online, de acordo com as obrigações legais internacionais de direitos humanos” e cita explicitamente “liberdade de expressão”, “liberdade de associação”, “privacidade”, “liberdade de informação e de acesso à informação” e “direito ao desenvolvimento”. A priori nada que não esteja alinhado às propostas do DSA. Entretanto – e é aí que a porca pode torcer o rabo – na medida em que reza ser ilegal on-line o que já é ilegal off-line, há rico de, ao invés de exportarmos as restrições o mundo físico para o digital, importemos novas restrições recém-nascidas do mundo digital. Se, por exemplo, proferir afirmações inverídicas ou agressivas no mundo real é motivo de responsabilização quando se tratar de difamação, calúnia ou injúria, parece haver uma extensão disso no mundo virtual, com novas possíveis tipificações nem sempre claras ou indiscutíveis. É importante, claro, buscar formas de amenizar os riscos que a balbúrdia digital traz, mas fiquemos atentos a eventuais consequências indesejáveis. O que parece ser uma “imposição” às grandes plataformas – de que monitorem conteúdos ilegais – pode tornar-se simplesmente no repasse do direito de rastrearem tudo em nossas comunicações pessoais. Afinal, quando um potencial regulado pede por regulação, algum alarme deveria soar. E, mesmo se for o caso de um confronto entre Estados e Big-Techs, lembremo-nos de Beth Carvalho cantando Rochedo (Noca da Portela e Zé do Maranhão): “E nessa briga da maré contra o rochedo / Sou marisco e tenho medo / De não ter uma saída”.

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https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/4/Documento_NETmundial_pt.pdf
https://netmundial.br/wp-content/uploads/2014/04/NETmundialMultistakeholder-Document.pdf.
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https://www.youtube.com/watch?v=wWJXMeX_TWM
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terça-feira, 12 de abril de 2022

Tadao

No final dos anos 80 embarcamos numa aventura que desembocaria nas iconexões que temos hoje. Um dos principais engendradores e timoneiros dessa travessia foi Eduardo Tadao Takahashi, que nos deixou em 6 de abril. Não se retoma o que foi citado em diversos meios, referente à carreira e brilhantes realizações dele, que foi em 2017 incluido no Hall da Fama da Internet Society, mas pode ser interessante rever o clima e as condições do período crítico, 1987 a 1992, na janela de visão de cada um.

O contexto então era de uma crescente angústia na comunidade acadêmica para que se lograsse comunicação eletrônica internacional. Pesquisadores que voltavam ao Brasil de trabalhos ou estudos no exterior, tinham se valido dos benefícios do acesso a redes, tanto para o intercâmbio com colegas, como na submissão remota de atividades a um centro. Como exemplo, em 1986 a NSF (National Science Foundation) já tinha conectado 5 centros de supercomputação nos Estados Unidos através de linhas que cruzavam seu território de leste a oeste. Tadao postulava a criação no Brasil de uma rede acadêmica nacional de computadores conectada internacionalmente, e era apoiado pela comunidade acadêmica. No lado paulista, Oscar Sala presidia a Fapesp e decidiu buscar uma conexão que atendesse, ao menos, as tres universidades estaduais paulistas. Em 1987 esses grupos de interesse numa reunião na Escola Politécnica da USP, sincronizaram suas informações e planejaram os próximos passos. Em 1988 uma linha ligou o LNCC a Maryland, enquando outra linha ligaria a Fapesp ao Laboratório Fermi, Illinois. Assim, o lado paulista, ANSP, e a iniciativa nacional agora batizada RNP, interligavam-se à configurando uma rede acadêmica nacional. Ambas foram formalmente inauguradas em 1989: em abril, ao mesmo tempo em que se conseguia a delegação do .Br, a ANSP, e, em setembro, a RNP durante a feira da Sucesu. Lá havia até sido alocado um estande simples, para demonstração aos interessados em redes eletrônicas. Tadao, já coordenador da RNP, não se furtaria em ajudar a carregar terminais da Fapesp para a feira, limpar e montar o estande, conectar os modems e, ao final, ficar por lá demonstrando a primitiva rede aos curiosos.

O aspecto mais crítico a vencer era o político. Como explicar o uso de protocolos não “oficiais” (Bitnet, Decnet,TCP/IP) no país, quando a “opção ungida” usada sistema Telebrás, então estatal, era Renpac, o Videotexto e o Transdata, componentes da pilha OSI? Como conseguir a permissão para compartilhar linhas que alimentassem a rede? E como lidar com “dados transfronteiriços” sob a legislação de então? Tocando o que Ivan Moura Campos chamou de “exército Brancaleone” Tadao batalhou em todas essas frentes até o sucesso, que se configurando com a entrada do TCP/IP na linha da Fapesp em 1991, e com a ECO-92 consolidando o uso primordial de TCP/IP na RNP deslocando os protocolos inicialmente usados.

Uma semana antes de morrer, Tadao, esse brasileiro criativo, brilhante e sempre correto, visitou-me. Estava animado e cheio de novas ideias. A chama da vida se apagaria inesperadamente 5 dias depois… Mario Quintana: “que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta?”

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https://www.internethalloffame.org/inductees/tadao-takahashi

https://link.estadao.com.br/noticias/cultura-digital,morre-tadao-takahashi-um-dos-pioneiros-da-internet-no-brasil,70004032016

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-04/morre-tadao-takahashi-um-dos-pioneiros-da-internet-no-brasil

https://www.rnp.br/noticias/rnp-lamenta-perda-de-seu-fundador-tadao-takahashi

https://www.tecmundo.com.br/internet/236767-morre-tadao-takahashi-pioneiros-internet-brasileira.htm

https://pt.wikipedia.org/wiki/Tadao_Takahashi

https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2022/04/07/morre-tadao-takahashi-um-dos-pioneiros-da-implantacao-da-internet-no-brasil