terça-feira, 31 de março de 2020

A Volta ao Lar

Trabalhar de casa é uma novidade que pode causar algum estranhamento, especialmente quando a rotina era chegar muito tarde e sair cedo. Como alguém já comentou ironicamente, “há umas pessoas pela casa, sempre as mesmas – deve ser o que chamam de ‘família’, e alguns eventos, que antes aconteciam magicamente, agora têm que ser cuidados um a um…”.  O inesperado convívio intenso, antes característica dos fins de semana, e amenizado por saídas e passeios, é gerador de alguma tensão nova. Verticalizamos atividades de forma radical: tudo é feito em casa e já nem dá para ir à padaria, do outro lado do quarteirão, pedir um “x-egg” e uma cerveja…

Precisamos montar uma área de trabalho caseira, cercada dos equipamentos necessários para comunicação eficiente. Interagir de casa pede comunicação e coordenação.

E aí entra a nossa Internet, que já usávamos fartamente antes, mas que com o confinamento tornou-se crucial. A rede resistirá à nova sobrecarga? Vamos dar uma olhada rápida na estrutura que suporta nossas atividades. Há um conjunto de “tubos de dados”, conexões que ligam empresas, equipamentos, sítios Web, e também todos nós, de casa. Além das conexões, há serviços que usamos para consultas, compras e pedidos, via aplicativos ou diretamente. O conjunto de “tubos” tem uma capacidade momentânea limitada, assim como os “serviços” tem um limite de atendimentos. Já que o acesso a serviços tradicionais não deve apresentar grandes mudanças, olhemos a vazão instalada hoje.

A demanda de vazão tem mudado de perfil além, é claro, de crescer continuamente. Há 10 anos, com o acesso doméstico mais limitado, a curva de tráfego começava a subir pelas 9h da manhã, atingia um pico parcial ao redor das 11h30, caia um pouco na hora do almoço e voltava a subir de tarde, chegando ao máximo diário por volta das 17h, quando tornava a cair bastante. Com a expansão da banda larga doméstica e com a popularização de vídeos e entretenimento disponíveis via Internet, a curva mudou. O pico de uso passou para as 21h, e ficou bem mais pronunciado. Assim, o teste de esforço da “tubulação” ocorria às 21h. Com o teletrabalho, a tele-educação, a telemedicina, a curva de uso passa a ter um perfil mais constante: o tráfego nos horários comerciais aproxima-se daquele que acontecia às 21h, com ainda um pequeno predomínio do horário noturno. O máximo diário, entretanto, subiu pouco acima do que se via há dois meses.

O resumo da ópera é positivo. Não há ameaça imediata de algum problema catastrófico, que nos impeça de usar a rede, agora que vivemos fisicamente isolados. A estrutura que aguentava um máximo noturno, deve aguentar o mesmo valor, agora quase uniforme nas demais horas do dia. Se na Europa e regiões onde o acesso doméstico tem grande capacidade havia risco de colapso, aqui estamos mais tranquilos. Aliás, lá fora provedores de conteúdo tomaram medidas para economizar banda e essas providências, “exportadas” para o Brasil, fazem com que haja mais espaço às aplicações que surgiram para amenizar o isolamento.

Professores estão gerando aulas virtuais, médicos atendem a consultas pela rede e nós todos agora trabalhamos, buscamos informação e interagimos de casa. Há também uma pletora de ofertas interessantes em entretenimento e diversão para nosso conforto durante o isolamento. Vamos usá-los com parcimônia e critério, prezando pelo equilíbrio na rede. Como dizia aquela velha máxima, “sabendo usar, não vai faltar”. Vamos manter o espírito elevado. “Delenda COVID-19”!


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Dados do IX.br de 31 de março de 2020: https://ix.br/agregado/





Curvas semanaiGráfico Semanal:


Gráfico Mensal:



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Quanto ao título: "A Volta ao Lar" é  nome de uma peça de teatro de Harold Pinter, traduzida e adaptada por Millor Fernandes. http://www.sergiobritto.com/torres-e-britto/a-volta-ao-lar/






terça-feira, 17 de março de 2020

A Peste

Sob muitos pontos de vista estamos vivendo um período atípico da humanidade. Até a metade do século passado nossos ascendentes tiveram que se haver com uma guerra que começou em 1914, com a gripe espanhola em 1919, um interlúdio tenso entre 1920 e 1938, coalhado de crises econômicas e políticas, e a volta da guerra em 1939. Nós fomos bastante poupados. Há sempre conflitos aqui e ali, com o drama e as injustiças que carregam, mas em nada comparáveis com a destruição e a mortandade da primeira metade do século 20.
E eis que de repente surge uma verdadeira ameaça global. Do tipo que considerávamos apenas tema para literatura de época e que pede medidas draconianas como fronteiras fechadas e recolhimento compulsório. Há, com o título acima, um ótimo livro de Albert Camus, que descreve o improvável ressurgimento da peste bubônica, cerca de 1940, em Orã, Argélia. Aos primeiros indícios - morte repentina de milhares de ratos nas ruas de Orã - há a tendência natural de negação, mas logo fica claro que, mortos os ratos, suas pulgas infestarão os humanos e a peste de alastrará, inclusive pelo contacto direto com os infectados. Fecham-se fronteiras e introduz-se quarentena compulsória aos suspeitos, além das medidas higiênicas de praxe. O texto, delicioso e com personagens complexas, incluiu tudo o que parece estamos para viver por aqui: corrida aos mercados, prateleiras esvaziando-se, preços subindo, a necessidade de ocupar o tempo de reclusão, as tensões sociais que o convívio forçado provoca, mas também exemplos de dedicação e abnegação.
Há muitos paralelos mas, como os tempos são outros, também diferenças importantes. A disseminação galopante de informações de hoje não se compara com a forma informar novidades em Orã. Lá também circulavam boatos e inverdades, mas em proporção incomparável ao que vemos. Aliás, esse é um dos motivos da insegurança que nos assola: escolhemos "a la carte" o que queremos ouvir sobre essa pandemia. Desde algo animador, que minimiza o que virá e acalma os espíritos, a cenários aterradores que evocarão os 50 milhões de mortos da "gripe espanhola" de 1918. Ah, disseminam-se também elaboradas teorias de conspiração e de guerra biológica.

Outra diferença é o arsenal tecnológico de que dispomos para trabalhar a partir de nossas casas, remotamente. Temos equipamentos e bases de dados conectadas, temos boa capacidade de banda para comunicação, temos a estrutura da Internet a nos fornecer suporte. A barreira física que assim se cria é eficiente para inibir o vírus biológico. Mas não nos esqueçamos das modalidades artificiais de "vírus", as que são criação da informática. E para esses entes do mal, quanto mais dados trafegarem nas redes, quanto mais transações críticas forem executadas, mas instigante e promissor será o cenário. Com acesso remoto, a transmissão do virus biológico será controlada mas... haverá um recrudescimento de ameaças informáticas pelo aumento óbvio de apetitosos alvos. Transferir, sem a devidas medidas profiláticas, uma aplicação que era segura em rede local, para uma rede ampla como a Internet, pode criar riscos importantes.

Em Orã, após seis meses, a peste foi debelada.  Final feliz. Camus deixa um aviso aos leitores: "...muitos podem não saber, mas o bacilo da peste nunca morre... Espera pacientemente até o dia em que, para infortúnio (e aprendizado) dos homens, a peste acordará seus ratos e os enviará para morrer numa cidade feliz".

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algumas citações de Camus:
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"...ce qu'on appelle une raison de vivre est en même temps une excellente raison de mourir"
(o que se considera uma "razão para viver" pode ser, ao mesmo tempo, uma ótima "razão para morrer" -  de "O Mito de Sísifo")
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"Écoutant, en effet, les cris d'allégresse qui montaient de la ville, Rieux se souvenait que cette allégresse était toujours menacée. Car il savait ce que cette foule en joie ignorait, et qu'on peut lire dans les livres, que le bacille de la peste ne meurt ni ne disparaît jamais, qu'il peut rester pendant des dizaines d'années endormi dans les meubles et le linge, qu'il attend patiemment dans les chambres, les caves, les malles, les mouchoirs et les paperasses, et que, peut-être, le jour viendrait où, pour le malheur et l'enseignement des hommes, la peste réveillerait ses rats et les enverrait mourir dans une cité heureuse."

“Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
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https://www.edition-originale.com/en/literature/first-and-precious-books/camus-la-peste-1947-44765

terça-feira, 3 de março de 2020

O Mercado de Almas

Valor de mercado é algo volátil e difícil de definir, especialmente para nós, leigos em economia. Nesta semana, por exemplo, o surto do vírus do momento derruba bolsas, estraga previsões, azeda os otimistas. Do outro lado do espelho, inteligência artificial representa a nova cornucópia de bondades e riqueza. Sua simples menção, de preferência acompanhada de "alguma-coisa 4.0", e outras expressões crípticas, bastará para desencorajar os raros incautos que se aventurariam em polemizar...

Estamos entrando na quaresma (...acabou nosso carnaval / ninguém ouve cantar canções...). Lembrou-me que foi na Páscoa que o Dr. Fausto, no poema de Goethe, um cientista ávido de conhecimento como sói usualmente acontecer com eles, encontrou-se numa praça

com um cão negro, depois transmudado em um misterioso ser de capa vermelha e sorriso torto, que lhe propõe um pacto. Há todo um prefácio disso, que envolve uma aposta entre Deus e o Diabo, nos moldes do que se passou com Jó no velho testamento, mas não

trataremos aqui desses prolegômenos. Fausto pergunta ao misterioso visitante o nome. Ele desconversa e diz ser o "espírito que nega sempre tudo" trata-se pois do Tentador, que no poema tem o nome de Mefistófeles. O pacto, assinado com sangue, exigiu negociação, pois Fausto ambicionava muito: para si, todo o conhecimento possível e para o mundo uma sociedade justa e de fartura. Quando estivesse satisfeito com o resultado atingido ordenaria ao tempo: "Pare! Perpetue este momento inefável" e aí Mefistófeles ganharia

definitivamente sua alma. Ou seja, o Demo pagaria um preço bastante elevado pela alma de Fausto.

O tema da barganha demoníaca aparece em muitas obras. Em O Mandarim, de Eça de Queiróz, Teodoro, simples escriturário cético, após ler um livro fantástico, recebe a visita de um senhor de preto e cartola que lhe propõe algo que estava no tal livro: se Teodoro

tocasse uma pequena sineta à sua frente, um riquíssimo mandarim na China morreria instantaneamente, e sua fortuna viria para Teodoro. Convencido das vantagens, ele toca a sineta, recebe a fortuna e, pouco depois, arrepende-se. Avalia ter cometido um grande erro e tenta, sem sucesso, desfazer o pacto. A misteriosa figura de negro e cartola desaparece e sobra apenas um cão negro a farejar o lixo...

O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde, fala de um jovem vaidoso que, ao ser retratado numa bela pintura, lamenta-se que o retrato permanecerá sempre assim, enquanto ele envelhecerá. Propõe-se a vender a alma em troca de a pintura envelhecer ao invés do

retratado. Uma perene juventude para Dorian, enquanto seu retrato degenera. Nestes três exemplos há uma nítida diminuição no valor perceptível de almas no mercado. Se para ganhar a alma de Fausto o diabo teve que conceder poderes e conhecimento vastos,

a de Teodoro valeu riquezas, e a de Dorian, apenas o prazer narcisista de manter-se belo.

Qual seria hoje a cotação de almas, especialmente nos ambientes em redes, onde a verdade torna-se mais "flexível", e o hedonismo o individualismo experimentam inédita valorização? Quanto o Pai da Mentira teria que pagar pela nossa subserviência? Afinal todos queremos vídeos monetizados, alguns milhares de likes e ter muitos seguidores pelo mundo (quem sabe até algum moderno mandarim chinês entre eles...). Qual seria a barganha aceitável pelo nosso caráter ou ética? Ou, pior ainda, qual seria a definição de ética que vale? Alerta!


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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,o-mercado-de-almas,70003217289


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Em  link=http://biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/osermaododiabo.htm
o Sermão do Diabo, de Machado de Assis. Alguns trechos abaixo:

3º Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão embaçados.

9º Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra coisa se há de salgar?

11. Não julgueis que vim destruir as obras imperfeitas, mas refazer as desfeitas.

17. Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos acenderão velas.

18. Não façais as vossas obras diante de pessoas que possam ir contá-lo à polícia.