segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Por uma rede agnóstica

===

“Neutro” vem do latim “neuter”, que se compõe de “ne” e “uter”, significando “nem um, nem outro”. Por isso, na Química, o ph 7 é neutro, já que não é ácido nem básico. E “isto” ou “aquilo” é neutro em português, ao contrário de “esta” ou “aquele”. O neutro não distingue ácido ou base, masculino ou feminino. O neutro é agnóstico e não seletivo.

===

Se falamos em internet, como encaixar o “neutro” no contexto? Ajudará, inicialmente, dar uma olhada em como mecanismos que atuam na rede foram construídos. O que sempre ressalta é o uso de bom senso, da colaboração e da distribuição, além de uma coerente analogia com o mundo real. Se queremos, por exemplo, projetar um serviço de correio no mundo material, precisamos pensar em como transportar cartas. Temos que saber para onde devem ser remetidas, eventualmente seu peso e dimensões, mas não de que tema tratam. Se alguém remete o próprio currículo, para buscar a única oportunidade, imperdível, de emprego da vida, ou se está enviando uma coleção de piadas a outro amigo (bem, hoje essa pode ser uma atividade de risco...) isso não diz respeito ao correio, que não deve conhecer o conteúdo. Também não se levará em conta se o destinatário mora em área “diferenciada”, de alto padrão, ou se a rua dele sequer tem calçamento: a entrega será feita sob chuva ou sol e calor ou frio, com o mesmo empenho que Júlio Verne descreve em Miguel Strogoff, o correio do czar.

Na internet os protocolos foram definidos com sendo agnósticos em relação ao conteúdo. E sobre os protocolos básicos abertamente construídos, nada impede a adição de outros mais. Isso permitiu, por exemplo, o surgimento da web, da voz sobre rede, da imagem, entre outros. O que tecnicamente se entende como “neutralidade” na rede tem, então, três pilares básicos: não discriminar endereços de origem e destino; não olhar conteúdo; não vedar serviços tecnicamente possíveis sobre a rede, tanto os que hoje existam como os que virão a existir.

Neutralidade diz respeito à rede e resguarda-se ao usuário final o direito de dispor do que recebe. Assim com eu posso jogar fora uma carta em papel, ou não atender uma ligação telefônica, eu posso decidir o que entra ou não, via rede, em minha casa ou computador. Essa é uma decisão do usuário final que não pode ser assumida por nenhum ator no meio do processo. É a rede que deve ser neutra, em todos os seus segmentos e operadores, não suas terminações. Assim, um site pode ser grátis ou pago, pode exigir ou não identificação dos que o acessam, ou pode impedir acessos que considera inadequados, visto que “neutralidade” não se aplica aos pontos finais. A analogia com o mundo real é simples: o proprietário de uma casa decide quem pode entrar e quando. Mas a rua é pública e neutra, os transportes devem ser públicos e neutros, os conteúdos transportados deve ser invioláveis e a evolução dinâmica da rede deve ser mantida aberta e livre – afinal nunca sabemos que novos e fantásticos serviços podem surgir amanhã.

Proteger a internet deve ser prioridade. Adaptando uma frase de Nietzsche, “eu não sei o que quero que a internet seja amanhã, mas sei muito bem no que eu não gostaria que ela se tornasse”.

===
https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/por-uma-rede-agnostica/

25 de janeiro de 2016 | 03h16

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Diálogo sobre WhatsApp

Um “socrático” (S) e um estudioso (T) conversam:


S: Que pensa da suspensão do WhatsApp, T? Foi correta?
T: Sim! Afinal eles não atenderam a uma solicitação judicial.
S: E haveria essa obrigação por parte deles?
T: Ora, se estão operando no País, devem acomodar-se às leis nacionais. É o certo!
S: Faz sentido, T. Ocorre-me, porém, uma dúvida, veja: as leis nacionais proíbem, por exemplo, jogos de azar, mas há os que vão a cassinos no exterior jogar. Parece-lhe lícito? O País não deveria proibir isso?
T: Ah, mas trata-se de outra coisa. Pode ser lícito jogar no exterior. Não há nem como, nem por quê impedir um cassino de operar em outro país.
S: É bem lógico. Mas,T, e se um cassino é acessível via internet? De alguma forma ele estaria “operando no País” (as apostas poderiam até ser feitas pelo telefone…). Não seria o caso de fechá-lo?
T: Bem, agora você me complicou. Acho que sim… e acho que não. Decidi: acho que não! Ser acessível via internet ou telefone não é o mesmo que operar no País. Seria como impedir a leitura de livros cujo conteúdo não estivesse de acordo com as leis num determinado país, o que me parece violar liberdades…
S: Muito bem, T. Deixemos isso um pouco de lado e me esclareça uma segunda pergunta: uma solicitação da Justiça deve ser sempre atendida?
T: Claro! Não paira aí nenhuma dúvida. Há que se atender, sempre!
S: Concordo, T. Mas, digamos, alguém ordena a você que relate todas as conversas entre terceiros em que você esteve presente. Você certamente atenderia, não?
T: Não creio que conseguisse. Não é minha função prestar atenção às conversas dos outros. Mesmo que passem pelos meus ouvidos, eu não as escuto. Não teria como atender.
S: Nesse caso, você estaria violando a ordem judicial?
T: Não. É uma ordem que eu não teria como atender por motivos pragmáticos, não apenas por ética pessoal. Mas você não está querendo dizer que a ordem ao WhatsApp era desse tipo, está?
S: Claro que não. Mesmo porque não sei qual era a tal ordem: está sob segredo de Justiça. Você admitiria, então, que há ordens impossíveis de atender?
T: Sim, admito. Se me ordenassem, por exemplo, que flutue no ar, tampouco conseguiria!
S: Pensando em uma ordem possível de ser cumprida, que castigo você imporia a quem não a atendesse?
T: Não sou juiz, mas imagino que caberia impor uma penalidade ao agente. Mas que não afetasse terceiros inocentes.
S: Outra dúvida, T: o funcionamento do WhatsApp, aqui ou acolá, viola a lei?
T: Não é o que me parece.
S: Então, T, ainda que fosse possível suspender por completo o serviço, isto pareceria excessivo?
T: É o que penso, S.
S: Por último, não causa espanto que uma lei como o Marco Civil da internet, criada para proteger indivíduos e estruturas de ações excessivas, mesmo que bem intencionadas, seja invocada exatamente quando a ação reflete algo que o MCI visava evitar?
T: De fato S, de fato! E, em sua opinião, porque isso estaria ocorrendo?
S: Tudo que sei é que nada sei. Minha ação é de “parteiro” da verdade. “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nosso pensar”, caro T.

===
https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/dialogo-sobre-whatsapp/
12/01/2016 | 12h05
===