terça-feira, 18 de setembro de 2018

Temperança


Vivemos tempos de sensibilidades exacerbadas e do pipocar de emoções que rapidamente assumem o controle. Talvez seja uma consequência não desejada, que advém do fato muito positivo de que mais e mais estamos todos em contato via rede, e mais e mais falamos. Pode ser que estejamos testando nossa voz e seu alcance. Ou que estejamos experimentando a embriaguez da visibilidade.

Acabamos de ver, ao vivo, o incêndio que devorou tanto da nossa história. Por toda a parte, manifestações de pesar e de solidariedade, e o clamor de providências mas agora tardias: “casa arrombada... tranca na porta”. Claro que hoje é mais fácil salvar textos e ideias digitalizando-os. A velha ocupação dos copistas, que preservaram até nós tantos documentos inestimáveis, ficou bem fácil com a tecnologia que temos. Ou nem tanto...

Como bem comentou recentemente Vint Cerf, há riscos de um apagão gigantesco na história porque os dados preservados dependem também de se preservar o ambiente digital que permitirá recuperá-los – quantos dispositivos, programas, sistemas operacionais já não se perderam nessas poucas décadas? No caso do Museu, mesmo com a digitalização possível de material, o que se perdeu fisicamente é irrecuperável.

Conteúdo e contexto vieram à baila de novo quando li que uma importante comunidade de desenvolvedores de “software” aberto decidiu banir de manuais e do próprio código a expressão “master-slave” (mestre e escravo, em tradução literal).

Lembrei-me das aulas de eletrônica nos anos 70 quando aprendi o que era “flip-flop”, circuito de comutação e de memória. Existe em várias configurações, uma delas a de “master-slave”, que descreve uma operação em que parte do circuito comanda o contexto, e outra parte segue servilmente.

O conceito de “escravo” é algo nefasto e que já deveria estar totalmente removido da sociedade, mas o “escravo” do circuito em questão é apenas uma função não associável a qualquer imoralidade humana. Ao contrário, penso, detectar um problema oriundo do sentido original é uma forma de reviver a dor de mazelas que a humanidade busca intensamente remediar.

Do ponto de vista etimológico, sempre me ensinaram que a língua é dinâmica e que evolui ao talante de seus usuários. Seria “formidável” (e pedante) fazer as palavras voltarem à etimologia original. Ah, note-se que usei “formidável” em sua semântica primeira: “aquilo que mete medo, que é assustador”.

Eliminar palavras inadequadas levou-me a outra lembrança: Z, o filme premiado de Costa Gavras, trata do assassinato do deputado e ativista grego Gregório Lambrakis em 1963. Como mostra a história, em meio ao cenário de tumultos e de conflitos, houve o golpe militar que instituiu uma totalitária junta govenante. Durou de 1967 a 1974. Z, que é de 1969, trabalha com a corajosa investigação e julgamento dos envolvidos no assassinato.

Quando tudo parece apontar para a punição dos culpados, que também atingiria escalões políticos, ocorre o golpe militar truncando o processo. A cena final é um “anúncio em rede de televisão” em que se anuncia a “nova ordem no poder”. Termina com uma lista de temas que passam a ser banidos no país: diversos escritores, estilos de música, filósofos e... a letra Z!

Haveria que se coibir do uso da letra Z, porque sendo a primeira letra da palavra “vive” em grego, era usada nas pichações de protesto pelo assassinato de Lambrakis. Parece claro que proibir palavras, letras ou ideias nunca será solução para nada...


terça-feira, 4 de setembro de 2018

Caretinhas

Houve um tempo em que nossas impressões e sentimentos expressavam-se em puro texto. Era a época dos livros em que, totalmente enfeitiçados, entrávamos na história contada e vivíamos os dramas e as vidas das próprias personagens. Todo o tormento de Raskólnikov, de Crime e Castigo, após ter matado a velha agiota, acudia à nossa mente e, juntos com ele, expiávamos o crime indo passar uma temporada na Sibéria. O frio não era menos real pelo fato de estarmos no trópico.

Tudo começou a mudar no final dos anos 80, ao menos do jeito que vejo. Em 1989, na Fapesp, eu trabalhava no Centro de Computação e tínhamos o privilégio bastante ímpar de poder usar uma conexão internacional à rede Bitnet, o que nos dava o dom de receber e mandar correio eletrônico!

O correio eletrônico gozava de uma característica única: você fazia parte de um seleto grupo de “conectados”, que trocavam mensagens entre si, independentemente do status dos interlocutores. Pesquisadores aos quais jamais sonharíamos ter acesso e, muito menos, de estabelecer diálogo, dignavam-se a responder a correio eletrônico vindo de obscuros correspondentes do Brasil. Bem, o fato é que tínhamos correio eletrônico na Fapesp e, logicamente, nosso pessoal, do CPD, falava com os recém-conhecidos amigos virtuais via Bitnet – a “Because It´s Time Network”.

A Paulinha, então analista júnior do CPD, estava trocando “e-mails” com uns estudantes norte-americanos que tinham o “luxo” de possuir acesso à rede em seus próprios aposentos – nos dormitórios.

Certo dia a Paulinha me veio, cheia de dúvidas, com uma resposta que recebera, em texto, lógico, mas com uns finais de sentença enigmáticos. Algumas frases terminavam com dois pontos, hífen, abre parênteses, e outras com dois pontos, hífen, fecha parênteses. Reunimos o time de “espert

os da área” e começamos a discutir qual seria o sentido daquela pontuação... Uma nova forma de marcar o fim de uma frase? Problemas de compatibilidade com o conjunto de caracteres usado (ASCII)?

Não conseguimos uma resposta coerente. O jeito foi pedir à Paulinha que escrevesse ao correspondente “entregando os pontos” e pedindo e ele uma explicação do mistério. A resposta veio rápida. Quer dizer... rápida, na medida da época: um ou dois dias. Devíamos olhar aquilo girando o texto 90 graus. Assim, o enigma se tornaria uma “face triste” ou uma “face risonha”. Para nós foi o começo do que hoje se chama “emoticons”, e que à época batizamos de “caretinhas”.

Em textos curtos, telegráficos, sem dúvida uma “caretinha” ajuda na expressão da ideia. É fácil identificar algo pseudo-sério mas com intenção irônica ou humorística, se houver uma caretinha sorridente apensada. A sofisticação de buscar no leitor uma análise que vai identificar a ironia no sentido “literal”, entender a ideia que se quer defender mesmo usando de antinomia, ou de argumentação por absurdo, poderia ser abreviada ou suprimida com o uso de caretinhas. Se não há uma caretinha rindo ao final, provavelmente o texto deve ser lido literalmente. Se há uma caretinha, pode tratar-se de ironia.

Ganhamos ou perdemos com isso? Difícil responder. Certamente o trabalho mental foi facilitado, mas perde-se a sutileza e a complexidade da trama e da emoção. Afinal os hieróglifos, há quatro mil anos, também eram desenhinhos.

É um avanço?