terça-feira, 21 de janeiro de 2020

O Verão da IA

Panacéia ou armadilha diabólica são os posições extremas no espectro de quem discute Inteligência Artificial e as conseqüências de sua aplicação. Provavelmente a verdade (mas, o que é a "verdade?") deve localizar-se em algum ponto intermediário. E tanto os apologéticos como os apocalípticos obtém apoio de peso: o próprio Stephen Hawkins teria declarado que "... conseguir sucesso na criação real de IA poderá ser o maior evento da história da nossa civilização. Ou o pior. Não sabemos..."

O que ajuda a carrear tanta atenção à IA é que, talvez levianamente, grudamos o rótulo de IA em muitas coisas que seriam, apenas, sofisticada tecnologia, tratamentos estatísticos e exame de correlação de dados. Reconhecimento facial, por exemplo, é um tema de pesquisa desde os anos 60, e até recentemente não relacionado a IA. O mesmo se pode dizer das eficientíssimas máquinas de busca de que dispomos na Internet de hoje. Foi o rápido e contínuo desenvolvimento do poder computacional que, aplicado a algoritmos, permitiu que usássemos a impressão digital, ou imagem da íris, ou reconhecimento facial como identificadores pessoais de acesso. Processamento, associado a capacidade quase ilimitada de armazenamento e intercomunicação em rede, gerou ferramentas de busca e de localização. Parece vontade de "dourar a pílula" da IA - por si já muito poderosa - colocar tudo sob o mesmo guarda-chuva. Aliás, cunhou-se a sigla IAA (Inteligência Artificial Artificial) para designar essa simplificação matreira e oportunista.

Os exemplos citados podem ser muito potencializados com a introdução de IA. Algoritmos fixos usados tornam-se dinâmicos: "aprendem" com seus próprios erros e resultados e buscam refinar sua ação. Não se trata mais, apenas, de identificar uma face, mas de detectar o estado de espírito do indivíduo e, se possível inferir suas intenções. Não estamos simplesmente encontrando coisas na rede, mas recebemos resultados personalizados que, além de ter maior sintonia com o que procuramos, procuram causar mais impacto no que faremos depois. O céu (ou o inferno...) é o limite do que se pode conseguir quando sistemas evoluem a partir da sua própria experiência, afastam-se do seu funcionamento original e chegam a obter autonomia de difícil predição ou controle.

Há, assim, um efeito "moda" sobreposto a um real e efetivo progresso rumo a uma IA exuberante. Se previsões alarmantes, como "1984" de George Orwell ou "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley, parecem estar se concretizando rapidamente, outras mais otimistas e animadoras, como robôs domésticos, viagens interplanetárias e carros totalmente autônomos ainda situam-se no campo das possibilidades. A história da IA começa nos anos 60 e apresenta uma "ciclotimia": passa-se de momentos de euforia para momentos de retração, que ficaram conhecidos como os "invernos da IA". Estamos claramente num pleno verão, um pouco forçado, mas indiscutível. Há também alguns indícios de recolhimento: levantam-se dúvidas sobre "carros autônomos", se chegaremos mesmo à singularidade de Kurtzweil etc. Há quem prenuncie um novo inverno pela frente. Se esse inverno vier, que seja na forma de oportunidade para avaliar riscos e benefícios, o uso ética e controle de tecnologias críticas que representam ameaças à civilização. Que esse inverno traga um renascimento auspicioso. Shakespeare coloca na boca de Ricardo III: "... o inverno do nosso descontentamento converte-se agora em glorioso verão ... e todas as nuvens que ameaçavam a nossa casa estão enterradas no mais profundo dos oceanos."

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Sobre reconhecimento facial:
https://www.facefirst.com/blog/how-face-recognition-evolved-using-artificial-intelligence/
https://www.nytimes.com/2020/01/20/opinion/facial-recognition-ban-privacy.html
https://link.estadao.com.br/noticias/empresas,a-empresa-secreta-que-pode-acabar-com-a-privacidade-como-a-conhecemos,70003165298
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Os "invernos" da IA:
https://www.actuaries.digital/2018/09/05/history-of-ai-winters/
https://hackernoon.com/is-another-ai-winter-coming-ac552669e58c
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Stephen Hawking e sua avaliação da IA:
https://www.cnbc.com/2017/11/06/stephen-hawking-ai-could-be-worst-event-in-civilization.html
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o Verão da IA, detectado em 2016
https://computerworld.com.br/2016/06/27/mundo-comeca-viver-o-verao-da-inteligencia-artificial/
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terça-feira, 7 de janeiro de 2020

As Bases Unificadas

Adaptar-se ao ambiente digital e usá-lo para minimizar o esforço humano e aumentar a comodidade é um objetivo adequado e honesto. É, portanto, razoável buscar a integração de iniciativas, a digitalização de informações e a automação que nos livre de incômodos. Afinal ninguém quer guardar uma infinidade de endereços de serviços, com suas respectivas senhas de difícil memorização. Uma solução integrada e uniforme de acesso a eles, associada ao armazenamento dos dados pessoais específicos a cada serviço que se busca, é uma alternativa racional e eficiente. Porém (e sempre há um “porém”...), quando dados de contextos diferentes se misturam, corre-se o risco de perder o controle do processo e de minar o que nos restou de privacidade. No momento em que todos os dados de um indivíduo estiverem acessíveis numa única estrutura, será crítico prever barreiras que mantenham cada conjunto de informações segregado e acessível apenas no contexto do serviço buscado.

Certamente há bases com as fotografias de todos nós em instâncias do poder público. E os rostos dos cidadãos que transitam nas ruas são visíveis livremente aos que passam: não usamos capuzes. Com a capacidade de processamento de hoje aliada a ferramentais de inteligência artificial, optar pelo desenvolvimento de sistemas automáticos que busquem reconhecer quem entrou no metrô, ou caminha na rua, não é um desafio muito complexo. Some-se o apelo fácil e enganoso a uma maior segurança, e estaremos abrindo uma caixa de pandora que pode se tornar incontrolável. Mesmo sem considerar a Internet e o uso do GPS, a união de uma base enorme de fotografias de indivíduos, com as câmeras onipresentes e a localização precisa que sistemas de telefonia celular proveem é tudo de que um sistema informatizado necessita para poder monitorar completamente os nossos passos e, num futuro próximo, nossas emoções. Claro que, além dos órgãos estatais e de segurança, há outros poderosos atores interessadíssimos nesse conjunto de informações pessoais, a cujo acesso que a lei buscará regular. Conhecer usos e costumes de potenciais clientes e, se possível, saber também de seus interesses e fraquezas, é um fabuloso gerador de transações comerciais e receita. Afinal dados são o motor de boa parte da economia digital hoje.

Há também outro lado: queremos, sim, preservar nossa privacidade, mas queremos também transparência e responsabilização. Uma ação de indivíduos ou empresas que tenha repercussão social precisa e deve ser transparente. Um exemplo de antanho eram os “proclamas de casamento”: a comunidade deveria saber da existência de uma proposta de formação de um casal até para, eventualmente, levantar impedimentos ao ato, em tempo. Do mesmo modo o registro de imóveis permite que seja conhecido o dono de um terreno ou imóvel na cidade. Há, assim, dados que precisam ser públicos e dados que devem ser protegidos, como aliás prevê a Lei Geral de Proteção de Dados.

Quanto ao uso do poder das ferramentas que a informática está desenvolvendo em ritmo crescente, é cada vez mais claro que algum protocolo deveria ser definido para a sua evolução e aplicação... Não se trata de coibir progressos ou limitar o avanço da tecnologia, mas de garantir a não supressão de direitos e a manutenção de conceitos, cuja construção foi obra de séculos. Afinal, não é porque algo *pode* ser feito, que seja aceitável fazê-lo.