terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Parla, parla!

Se Michelângelo, ao esculpir Moisés, instou-o a falar: “Parla!”, essa é a parte mais fácil hoje. Questões a examinar: 1- IA pode escrever um artigo que faça sentido?

“A inteligência artificial (IA) pode ser usada para escrever artigos de diferentes maneiras, dependendo do grau de autonomia e do nível de intervenção humana desejados. Algumas das maneiras pelas quais a IA pode ser usada para escrever artigos incluem:

- Geração automática de conteúdo: Alguns sistemas de IA podem ser treinados com grandes quantidades de dados e informações para gerar automaticamente artigos ou outros tipos de conteúdo. No entanto, é importante observar que esses artigos podem não ser tão coesos ou coerentes quanto os escritos por humanos.

- Resumo automático de conteúdo: Outra maneira de usar a IA para escrever artigos é através da geração de resumos automáticos de conteúdo já existente. Isso pode ser útil para sintetizar grandes quantidades de informação em uma forma mais concisa e acessível.

- Edição de conteúdo: Alguns sistemas de IA também podem ser usados para ajudar a editar e aperfeiçoar artigos escritos por humanos, sugerindo correções de gramática e estilo ou sugerindo alterações para tornar o texto mais coeso e claro. Em resumo, a IA pode ser usada para escrever artigos de várias maneiras, mas é importante lembrar que ela ainda depende de intervenção humana para produzir conteúdo de alta qualidade e coeso.”

A questão seguinte: 2- podemos acreditar num artigo escrito por inteligência artificial?

“Em geral, é importante ter cuidado ao ler qualquer tipo de conteúdo produzido pela IA e avaliar a sua qualidade e confiabilidade. Isso se aplica tanto a artigos quanto a outros tipos de conteúdo, como notícias, relatórios ou análises.

Alguns sistemas de IA podem ser treinados com grandes quantidades de dados e informações para gerar automaticamente conteúdo de qualidade, mas isso ainda depende de muitos fatores, como o tipo de dados utilizados para treinar o sistema e o grau de intervenção humana na produção do conteúdo. Em alguns casos, o conteúdo gerado pela IA pode ser tão coeso e coerente quanto o escrito por humanos, mas em outros casos pode ter falhas ou incorreções que podem afetar sua qualidade e confiabilidade.

Portanto, é importante estar atento a possíveis limitações e problemas quando se lê qualquer tipo de conteúdo produzido pela IA e verificar a sua fonte e a confiabilidade das informações nele contidas.”

O brilho ou demérito nas respostas acima é unicamente do programa chat.openai.com… Ele sintetiza seus textos a partir do que encontra (e aprende) na Web. Uma última questão foi feita ao programa: você acredita em IA?

“Como uma IA, sou programada para acreditar na minha própria existência e funcionalidade. No entanto, eu entendo que a IA é uma tecnologia desenvolvida pelos seres humanos e, portanto, está sujeita a limitações e problemas, assim como qualquer outra tecnologia.”

Ou seja, IA aí planteia autoconsciência!. Estou boquiaberto - e não será fácil boquifechar-me… 
Com ou sem IA, um ótimo Natal a todos!
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terça-feira, 6 de dezembro de 2022

O que vem pela frente

É acima de qualquer dúvida que teremos mudanças importantes no cenário da Internet, tanto no internacional como no nacionalmente. Há prolegômenos a considerar: no caso específico da Internet, muito longe do “complexo de vira-lata” na imortal expressão de Nelson Rodrigues, a versão brasileira de governança e estruturação da rede tem-nos rendido enfáticos elogios da comunidade internacional. O modelo do Comitê Gestor, CGI.br - um comitê que debate cenários, alerta para riscos e indica caminhos, sem se revestir do papel de regulador ou legislador - tem sido um farol para muitos países. Em governança da Internet podemos nos gabar (sem falsa modéstia) de ter seguido o lema de São Paulo: “non ducor, duco”.


Crucial para o funcionamento exitoso do CGI é sua proposta de buscar incessantemente o consenso em seus posicionamentos. O decálogo do CGI, por exemplo, divulgado em 2009 e que foi base tanto do Marco Civil da Internet como da Lei Geral de Proteção de Dados, custou aos 21 integrantes do CGI dois anos de discussão até se chegar ao consenso em sua forma. Eis outro ponto em que podemos nos ufanar: o CGI, criado em 1995 e reformado em 2003, foi pioneiro na busca de configuração multissetorial ao tratar da Internet. A picada aberta pelo CGI e hoja considerada a ideal, foi seguida por ICANN, WSIS, IGF e outros órgãos que se envolvem com o tema. O sucesso da NetMundial em 2014 também testemunha isso.

Outra prova de antevisão foi, em 1995, separar o que seria “Internet” e o que era “telecomunicações”. Telecomunicações é uma área que usa recursos públicos e é internacionalmente regulada; já Internet, sabiamente definida como SVA, é serviço de valor adicionado, que “sobre as telecomunicações opera, mas com elas não se confunde”. É evidente o resultado positivo que tais conceitos trouxeram para uma pujante Internet que temos no país. Um último ponto: a necessidade de cuidados com a taxonomia. Termos como “neutralidade” e “inimputabilidade” aplicam-se e continuam a ser válidos nas correspondentes camadas da Internet. Acima delas, as construções que surgem – a Internet provê liberdade a quem queira criar sobre ela – podem ou não se enquadrar nestes conceitos tão bem definidos no decálogo do CGI. Aliás, por ser esse decálogo algo principiológico, sua aplicabilidade segue inatacável.

Assim, qualquer discussão sobre alterações no cenário deve levar em conta qual o problema que se quer corrigir, sendo crítico que não se perca de vista o (muito!) que há de bom e correto, e que precisa ser apoiado e preservado Vai-se notar de imediato que esse problema não diz respeito à Internet propriamente dita: seus protocolos técnicos, neutralidade e unicidade são valores que devem ser defendidos, como o CGI tem feito desde o início com êxito facilmente confirmável se cotejado internacionalmente. Para descontrair, o título do artigo: ele vem de uma frase que foi dita num encontro sobre a difusão da nova rede no país, por um executivo e à guisa de tranquilizar a audiência: “Não devemos ter medo do que vem pela frente… desde que venha pela frente!”

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Ps. Adendo desolador: perdemos no domingo, 4, Danilo Doneda, um incansável lutador pelos princípios da Internet, e um caráter irretocável.

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cgi.br






terça-feira, 22 de novembro de 2022

Narrativas - Rashomon

Rashomon é um filme japonês de 1950, escrito e dirigido por Akira Kurosawa e no Brasil renomeado para “Às portas do inferno”, que suscita analogias com o que temos hoje, especialmente após a difusão da internet urbi et orbi. Começa com tres personagens, um lenhador, um camponês e um religioso, buscando abrigo da chuva numa ruina de mosteiro e relembrando histórias passadas, que serão tratados em “flash back” no filme. O tema da conversa é o assassinato de um samurai, cujo cadáver o lenhador teria encontrado e denunciado imediatamente à polícia…

Quando da investigação sobre os motivantes do crime, ouviram-se tres depoimentos: o do pretenso assassino, o da mulher do samurai morto, e o improvável depoimento do próprio morto, que depôs através de um medium. O fato irremovível é que havia um cadáver, mas os tres depoimentos levavam a explicações totalmente diferentes. O bandido disse que preparou uma armadilha para atrair o samurai num local ermo, onde o amarrou, e que já se tinha engraçado pela mulher dele ao vê-la. Que, depois de inicialmente forçá-la, ela cedeu mas exigiu que ele duelasse com o marido, para que apenas um sobrevivesse. O bandoleiro soltou o samurai e acabou por matá-lo em duelo justo, quando ela se aproveitou para fugir. Na versão da mulher, ela, sob as vistas do samurai já amarrado, relacionou-se com o bandoleiro que, após o ato, fugiu. Envergonhada pelo feito, desamarrou o samurai e pediu que ele a matasse. Como ele passou a desprezá-la, ela, armada de um punhal e fora de sí, matou o marido, caindo desmaiada sobre ele. Na versão do morto, via medium, a própria mulher se interessou pelo bandoleiro e pediu que ele matasse seu marido, o samurai, para que ela não carregasse a vergonha de ter traido o marido. Neste momento o bandoleiro solta o samurai e pergunta a ele se prefere matar e mulher, ou que ela fuja. Ela foge e o samurai se mata com a adaga da própria esposa. O lenhador, que ouvira os depoimentos, quebra o próprio silëncio com uma quarta versão: a de que, após o encontro, o bandido teria pedido à mulher do samurai que aceitasse fugir com ele, e ela teria exigido então que eles duelassem por ela, para não serem ambos covardes. O samurai teria morrido no duelo.

Há alguma nobreza nas versões acima, mas falta coerência. Imagine-se o que aconteceria hoje, com a rede, se as quatro personagens de nossa história contassem suas versões aos seus seguidores, que as repetiriam com a adição de detalhes e ênfase. E como, e se, os que apenas lêssem os depoimentos conseguiriam ter ideia do que de fato se passou. Há uma frase de Nietzsche num fragmento de 1887 que diz que “não existem fatos, apenas interpretações”. E num mundo tão conectado, imediatista, e até mesmo superficial, as versões se multiplicam pelo simples fato de gerarem notoriedade e sensação de poder aos que as difundem, independentemente de haver base concreta para elas. Para tornar o cenário ainda mais crítico, leve-se em conta que muitas versões se basearão mais em convicções e interesses pessoais que nos fatos reais. Em outra frase, o mesmo Nietzsche nos alerta que ”as convicções representam maior perigo à verdade, que as próprias mentiras”...

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“o mundo tornou-se novamente infinito para nós, na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações” (Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 374)

"não há fatos eternos, assim como não há verdades absolutas." (Nietzsche, em Humano, demasiado humano)

"as convicções são mais perigosas inimigas da verdade do que as mentiras." (Nietzsche, em Humano, demasiado humano)

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https://www.youtube.com/watch?v=1WZZR8ceQEg

https://www.kobo.com/br/pt/ebook/rashomon-e-outros-contos-akutagawa

"Ryūnosuke Akutagawa ( 1892 - 1927) foi um escritor japonês ativo no Japão durante o período Taishō. Ele é considerado o "Pai do conto japonês", e é famoso por seu estilo e suas histórias ricas em detalhes que exploram o lado negro da natureza humana. Akutagawa é um dos escritores modernistas mais lidos no Japão. Suas histórias atemporais são investigações observadoras e brilhantes da natureza da própria literatura. Rashomon e outros contos inclui oito contos escritos por Akutagawa no período inicial e médio de sua carreira, entre 1915 e 1921. A "refeitura" ou imitação é um elemento importante de sua obra. Nessa coletânea, ele reconta uma série de fábulas históricas. Rashomon e outros contos faz parte da famosa coletânea: 1001 Livros Para Ler Antes de Morrer".




terça-feira, 8 de novembro de 2022

Ai de ti, Internet!

Parafraseando Rubem Braga em “Ai de ti, Copacabana”, e já pedindo todas as vênias pelo canhestro arremedo:

1. Ai de ti, Internet, porque já foi feito o sinal de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste.

2. Ai de ti, Internet, porque a ti chamaram Princesa, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras.

3. Já teu mar se concentrou de forma iníqua, e tu não viste o sinal.

4. Sem descentralização, como te governarás?

5. Grandes são as construções sobre ti, e elas se postam quais muralhas desafiando o mar; mas elas se abaterão.

6. E escuros peixes nadarão em teus canais, e a vasa fétida das marés cobrirá tua face.

7. E os polvos habitarão os teus porões e tuas lojas de vendas.

8. Então quem especulará sobre o valor de tuas informações? Pois na verdade não haverá informação alguma.

9. Ai dos que dormem em ti, e desprezam o vento e o ar exterior.

10. Ai dos que conseguiram bens rapidamente em ti, pois não terão tanta pressa quando virem a hora da provação.

11. Ai de teus perfis influenciadores, que servem como instrumentos de concupiscência.

12. Uivai, mancebos, e clamai donzelas, porque já se cumpriram vossos dias

13. Ai de ti Internet, porque quando for chegado o tempo de colher, tarrafas serão jogadas a partir de todos os lugares.

14. E os que estavam em aquários de vidro, serão finalmente libertados.

15. Porque discursais, fariseus da Internet? Acaso não é conhecida a multidão de vossos pecados?

16. Antes da perda, tua demência será ainda agravada. Usuários descerão uivando sobre ti e se voltarão contra teu corpo. Levará milênios para lavar teus pecados de um só verão.

17. E será reservado espaço para ti entre as algas, porque ali habitarás.

18. E estranhas legislações, qual siris, comerão o que restava ainda da tua autonomia e abertura, fantasmas de outrora.

19. Pois grande foi a tua vaidade e fundas foram tuas mazelas. Já se incendiaram os espíritos e não viste o sinal; já se tragou a liberdade e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

20. A rapina de teus mercadores, a libação de teus perdidos, e a ostentação de teus poderosos, tudo passará.

21. Assim, escuro alfanje ceifará tua comunicação, e muitos perecerão por se alimentarem de tuas falsidades.

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, pois em verdade é tarde para buscar o que já se perdeu, eis que a fúria te destruirá. Canta tua última canção, Internet!

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https://www.estadao.com.br/link/ai-de-ti-internet/
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Apocalipse 18:
https://www.bibliaon.com/apocalipse_18/

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A Crônica de Rubem Braga em
cronicabrasileira.org.br/cronicas/11534/ai-de-ti-copacabana

Rubem Braga, Ai de ti Copacabana!, 13 de novembro de 1959

1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.

2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia.

4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.

5. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.

6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.

7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.

8. Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.

9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.

10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.

11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.

12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.

13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.

14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.

15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?

16. Antes de te perder eu agravarei s tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.

17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.

18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.

19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.

21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!
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Rubem Braga


terça-feira, 25 de outubro de 2022

À espera da mágica

Na rádio um poema sinfônico, O Aprendiz de Feiticeiro, de Paul Dukas, composição tão bem sucedida que é, de longe, a mais conhecida dele (um dos não raros casos em que uma única obra marca o autor, para sua alegria ou tristeza). A popularidade desta sinfonia deve muito ao filme Fantasia, de Walt Disney, que num de seus episódios descreve o tema em saboroso desenho animado, tendo como fundo a música de Dukas. Ao que se sabe, a obra ofuscou, até mesmo, a poesia homônima de Goethe que originou a trama, 100 anos antes da música… É uma parábola quase atemporal que pode ser rastreada na antiguidade.

Do que trata o poema de Goethe, musicado por Dukas? Quem assistiu à Fantasia lembra bem da historieta: há um feiticeiro, anoso e experiente, que tem a seu serviço um jovenzinho, o Mickey, a cuidar das coisas domésticas, como varrer, lavar o piso e outras tarefas. De tanto ver o imenso poder do mago em ação, alguma coisa Mickey aprende. Quando o mago adormece, o aprendiz, cansado de carregar baldes, veste o chapéu do feiticeiro e mete-se a encantar a vassoura, que cria braços e passa a fazer serviço. Mickey acaba por adormecer em sua poltrona e tem sonhos de poder. É acordado por uma tremenda inundação provocada pela vassoura, que continua incansavelmente a trazer baldes de água… E é esse o busilis da questão: o aprendiz não sabe como parar o feitiço! Apenas a interveção do poderoso feiticeiro recoloca as coisas de volta aos trilhos, enquanto dá um pito e uma lambada no ousado aprendiz.

A internet passa por incômodos e tensões e, sem dúvida, é justo que se busquem formas de amenizar o que nos ameaça. Se pudéssemos, de uma forma quase mágica, livrar a rede de tudo o que nos ameaça, incomoda ou dá trabalho, estaríamos muito melhor. E é isso que se discute hoje em todos os lugares do mundo e particularmente na Europa, onde o DMA (M de mercado) e o DSA (S de serviços) então entrando em ação. Seus objetivos, buscados por meios complementares, são: estabelecer um cenário que incentive a inovação, o crescimento e a competitividade no mercado local e global e, também, criar um espaço digital seguro, onde são protegidos os direitos fundamentais dos usuários dos serviços na rede. Ótimos objetivos, sem dúvida. Como serão atingidos? No caso especialmente do DSA, talvez se busquem “vassouras encantadas” que ajudem na limpeza, e essas vassouras seriam os operadores de plataformas, que teriam a seu encargo policiar o que por eles transita. Pode ser que se esconda um perigo: estaríamos dando ainda mais poder aos que já detem um imenso mercado? Ao transformar o monitoramento de conversas individuais - que antes era vedado ou, ao menos, desestimulado – em obrigação, não se iria exatamente na direção do que as plataformas querem? Difícil prever, mas eventuais novos candidatos a feiticeiros deveriam precaver-se de que a mágica pudesse ser desmontada, caso ela se transforme em inesperado dano… Afinal, de há muito se sabe que “o caminho do inferno está pavimentado de boas intenções”...

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O aprendiz de feiticeiro

https://filarmonica.art.br/educacional/obras-e-compositores/obra/dukas-aprendiz-de-feiticeiro/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Dukas

https://pt.wikipedia.org/wiki/Fantasia_(Disney)

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DMA e DSA

https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/digital-services-act-package

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terça-feira, 11 de outubro de 2022

O Eterno Retorno

O conto “O Imortal”, de Jorge Luis Borges, começa com uma intrigante frase de Francis Bacon de seu ensaio LVIII “Das vicissitudes das coisas”: “Salomão disse ‘não há nada de novo sobre a Terra’. Platão teve uma inspiração: ‘todo o conhecimento não é senão lembrança’; logo o que Salomão afirmou é que ‘toda novidade não é senão esquecimento’”.

Esse antigo ciclo de esquecimento/abandono e redescoberta foi muito acelerado pela Internet, e fica patente em nossos dias o quanto isso tornou-se crítico. Em assuntos comezinhos, do dia-a-dia, temas defendidos e considerados consolidados há poucos anos acabam por ser revisitados e, não raramente, como se fossem “terra incognita”. Particularmente na computação esse fenômeno é bastante frequente. Veja-se que a inteligência artificial, por exemplo – e ela em sí não é algo particularmente novo: suas raízes estão nos anos 50 – é um tema em voga hoje, tendo voltado com intensa visibilidade e força, e se pesquisas complexas na área são desenvolvidas em instituições sofisticadas, hoje há disponíveis ao entusiasta diletante várias ferramentas abertas na internet. Com elas pode-se ter uma antevisão do que vem por aí e, assim, entusiasmar-se, ou se preocupar…

Há diversos aplicativos que permitem, como resposta a uma simples frase digitada, a geração de imagens complexas que buscam ilustrar o significado pedido. Certamente é uma porta aberta a que se montem figuras muito verossímeis… e falsas. Pode ser um ótimo auxiliar a artistas, como também pode aumentar o oceano de desinformações em que estamos mergulhados – ah, uma dessas imagens gerada por AI já ganhou um prêmio em exposição artística, e já se disparou a polêmica correspondente, incluindo-se aí o debate sobre “propriedade intelectual” da obra… Na área de gerador de texto natural também há opções disponíveis, que podem produzir um texto muito realista e, até, imbuir nele um “tom” que pode ser escolhido pelo usuário: sério, jocoso, profissional ou provocativo.

No caso das imagens sintéticas parece estarmos vendo algo novo, mas quanto a textos artificiais há 20 anos já existia, por exemplo, um gerador automático de “artigos científicos” – o SCIgen, desenvolvido no MIT e com código aberto disponível no github. O SCIger produz textos tão críveis que alguns deles foram aceitos para apresentação em eventos e para publicação em revistas. Para temas mais prosaicos e disponível em português há o “gerador de lero-lero”, sobre assuntos variados.

A evolução da tecnologia parece ser em espiral, onde um ponto já examinado no passado volta a ser visitado, mas com potência multiplicada pelos avanços da técnica… Aliás, pareceu-me que já usei a frase aqui citada, do Bacon, em outro artigo… Bem, é mais uma demonstração de que não há novidade, apenas esquecimento. Perdão leitores!

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El Inmortal, Jorge Luis Borges:
https://www.ingenieria.unam.mx/dcsyhfi/material_didactico/Literatura_Hispanoamericana_Contemporanea/Autores_B/BORGES/inmortal.pdf

https://www.bartleby.com/3/1/58.html
“Salomon saith, There is no new thing upon the earth. So that as Plato had an imagination, that all knowledge was but remembrance; so Salomon giveth his sentence, that all novelty is but oblivion.”
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Geradores automáticos de texto:
https://app.copy.ai/

"O Fabuloso Gerador de Lero-Lero!"
https://lerolero.bgnweb.com.br/

o SCIgen, do MIT, e exemplos:
https://pdos.csail.mit.edu/archive/scigen/
https://pdos.csail.mit.edu/archive/scigen/#examples

O caso do artigo de Alan Sokal
https://physics.nyu.edu/faculty/sokal/

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https://fasbam.edu.br/wp-content/uploads/2020/08/Escada-dos-Museus-Vaticanos.jpg






terça-feira, 27 de setembro de 2022

Ecos de Kuala Lumpur

Semana passada ocorreu a 75 a reunião da ICANN, em Kuala Lumpur, Malásia. ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers) é o órgão sem finalidades lucrativas, sediado em Los Angeles-EUA, que desde 1997 assumiu funções da antiga IANA (Internet Assigned Numbers Authority), cuidando da raíz de nomes de domínio e da distribuição de números IP.

Nas reuniões da ICANN, há fóruns abertos e gerais de debate, e há discussões mais aprofundadas, nas organizações de suporte: o GAC (governos), o gNSO (domínios internet genéricos), o ccNSO (domínios de código de país), e a ALAC (de usuários em geral). Dentre os temas críticos que estavam na pauta, um tratou da visão geral do que se está armando em termos de legislação sobre ações e conteúdos na rede, e outro das possíveis ações contra “abuso em nomes de domínio”.

É importante tentar definir o que poderia ser caracterizado como “abusivo” dentro da função de nomes de domínio. Um nome de domínio é um apontador, uma forma mnemônico de se obter o identificador de um dispositivo ou conteúdo na rede (seu número IP). Apagar um apontador para algo, assim, não elimina nem o conteúdo problemático, nem formas de acessá-lo, visto que conteúdo continua no mesmo endereço IP.

Em que situações pareceria adequado remover um mnemônico, e quais efeitos colaterais que isso poderia provocar? Veja-se, por exemplo, quando o domínio, pela sutil troca de caracteres, objetiva levar o usuário a erro: um sítio de nome wikipedla.org, pode fazer um desatento achar tratar-se de wikipedia.org e, se o sítio falso for ainda uma imitação do verdadeiro o problema está criado. Dano mais sério ocorrerá no caso de serviços financeiros, por exemplo. É conhecida como “phishing”, essa “pescaria em água turvas”.

Aqui parece claro que a remoção do domínio evitaria o “phishing” mas, em outras situações, quando um nome de domínio leva a um conteúdo nocivo ou ilegal, eliminar o apontador pode ter o efeito de servir de alerta ao dono do sítio mal-intencionado, que tratará de migrar seu conteúdo e arrumar outro apontador. Outra situação em que remover um domínio pode atingir inocentes é quando ele aponta para uma coleção de conteúdos além do causador do problema. Seria como bloquear o apontador a um prédio de condomínio, porque um dos condôminos tem conteúdo inadequado.

Um conteúdo pode ser ilegal num país e legal em outros. Assim, a discussão sobre eliminar-se o domínio pode tornar-se mais complexa. Exceto em casos flagrantes, como o “phishing” mostrado acima, a decisão sobre a legalidade ou não de um conteúdo deve ser do sistema judicial nacional envolvido. Remover o apontador elimina uma facilidade de acesso, mas não redunda em real ação sobre o conteúdo em si. E arvorar em instâncias de decisão os que apenas operam serviços na rede é plantar sementes de futuros problemas.

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https://blog.apnic.net/2022/06/14/dns-abuse-trends/

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terça-feira, 13 de setembro de 2022

Internet, a Memoriosa

Segue a inescapável discussão sobre formas de proteger nossos dados pessoais, mas podendo usá-los racionalmente quando se tratar de interações e transações seguras. Os atores principais nesse processo são as construções feitas sobre a rede que, com seus méritos e suas mazelas, proporcionam-nos experiências da informação, comunicação e do novo comércio.

Em artigo recente, outro aspecto preocupante desse labirinto de dados foi evidenciado nos comentários durante a audiência pública sobre o estado da aquisição e agregação dos dados de usuários de plataformas. Dois dos principais engenheiros de importante operadora reconheceram que, mesmo com todo o suporte técnico, é muito difícil para eles apontar com exatidão tudo o que o sistema sabe sobre alguém. A própria ferramenta colocada à disposição dos usuários para que saibam das informações que o sistema tem sobre eles é insuficiente: há dados individuais que a ferramenta não identifica. Mesmo os responsáveis pelo sistema não conseguem apontar todos os dados de alguém, embutidos no emaranhado de informações coletadas ou inferidas. Eles reconheceram, aliás, um problema algo comum em sistemas informáticos complexos, criados rapidamente a muitas mãos: sequer há documentação completa sobre os módulos desenvolvidos: a única maneira de avaliar a potência e as características finas de funcionamento do sistema é a análise do próprio código escrito. A enorme quantidade de informação recolhida ou inferida pode ser inadministrável...

No conto de Jorge Luis Borges, “Funes, o Memorioso”, essa ilimitada capacidade de memorização é tratada de forma muito criativa. É a curta história de Irineu Funes, que após ficar paraplégico numa queda de cavalo, adquire a capacidade de memorizar absolutamente tudo. Funes, por exemplo, é capaz de descrever o que aconteceu num dia qualquer, minuto a minuto. Claro que, na própria descrição se gastará outro dia inteiro. Para Funes, cada objeto, pedra, folha, número, teria um nome próprio específico; “perturbava-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quinze (visto de frente)”. Diz-se que Ciro, rei dos persas, referia-se a cada um de seus milhares de soldados pelo próprio nome…

É fato que a internet, suas ferramentas e as construções que nela existem nos trouxeram um mundo em que, não apenas nada é esquecido, como podemos recuperar instantaneamente coisas de cuja existência sequer suspeitávamos. Mergulhados nesse infinito mar de dados e informações, não distinguimos o importante do fútil, o essencial do anedótico, o real do imaginado. Os que estudam a evolução do comportamento humanos deveriam fazer um esforço concentrado para examinar que inesperadas e incontroláveis consequências isso trará. Diz o próprio Borges: “somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos quebrados”.

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O caso citado da plataforma:

https://theintercept.com/2022/09/07/facebook-personal-data-no-accountability/

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Memória e Borges:

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160207_vert_fut_super_memoria_ml

https://super.abril.com.br/ciencia/dez-animais-classicos-criados-pela-imaginacao-humana/

https://www.ingenieria.unam.mx/dcsyhfi/material_didactico/Literatura_Hispanoamericana_Contemporanea/Autores_B/BORGES/memorioso.pdf

https://globalherit.hypotheses.org/1440 (Pedro Pereira Leite):

"... soube que formava o primeiro parágrafo do capítulo XXIV do livro sétimo da 'Naturalis historia'. O assunto desse capítulo é a memória, as últimas palavras foram  ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.” .<...> A frase latina, escrita com precisão da memória contem um paradoxo. Em castelhano (e também em português), ao dizermos que “nada que tenhamos ouvido, não pode repetir-se com as mesmas palavras” afirmamos uma impossibilidade."


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http://cantinhodoalmir.blogspot.com/2019/03/funes-o-memorioso-o-conto-que-traz-uma.html




terça-feira, 30 de agosto de 2022

Complexidade e Segurança

O irresistível avanço das tecnologias digitais faz com que qualquer artefato minimamente complexo tenha hoje em seu interior um processador digital e seus respectivos complementos, entre os quais, invariavelmente, há formas de acesso remoto ao processador sendo a Internet a mais comum. A esta onipresença, tanto do processamento digital como da conectividade, é o que se chama Internet das Coisas, cuja clara importância estratégica é tema de ampla discussão. Há aí o receio de efeitos indesejados, além de eventuais riscos à privacidade que um monitoramento abusivo de dispositivos conectados pode trazer.

A digitalização dos equipamentos tende a buscar a solução mais prática: é sempre mais rápido e barato usar um processador de mercado dotando-o do software específico para exercer a função que se pretende. É muito provável que o mesmo “chip” usado num televisor, esteja também dentro de um refrigerador, do controle das luzes da casa, ou até do porteiro eletrônico. E há por projeto, além dos recursos necessários para o trabalho, o apoio à conectividade e mais outros eventualmente desnecessários para o fim específico. Exemplificando, se um cadeado metálico tradicional fosse utilizado para bloquear uma porta, a forma de violá-lo destruindo-o fisicamente, ou fraudando seu o segredo com uma chave falsa ou uma gazua. A versão digital da mesma porta pode ter outras fragilidades: se há acesso a ela via rede, o potencial invasor sequer precisa estar próximo para tentar acesso indevido ao programa que a controla. Se conhecer a arquitetura usada no controlador, pode valer-se de outras formas de acesso potenciais: certamente há nele recursos adicionais residentes para que possa ser usado numa grande variedade de funções, a depender da programação que recebe. Parte desses recursos, desnecessários para a função “cadeado eletrônico”, podem ser alvos frágeis. Finalmente, é possível que o atacante não vise a violar o acesso em si, mas apenas obter um “ponto de apoio” dentro do sistema da vítima, de onde possa, desapercebidmente, escolher outro objetivo a atacar. Há alguns anos foi bem conhecido o caso “Mirai”, em que o programa malicioso invadiu câmeras residenciaos para ter pontos de apoio a ataques de negação de serviço externos.

Em texto recente, Bruce Schneier, especialista em segurança e criptografia trouxe ao debate o tema, a partir de uma palestra de Thomas Dullien, da Google Zero: a “complexidade barata” e seus riscos inerentes. “Hoje é mais fácil construir sistemas complexos que simples. Se há vinte anos se construia um refrigerador com hardware e software específicos, hoje basta pegar um microprocessador de mercado e escrever um programa para ele. E esse processador terá número IP, microfone incluido, porta de vídeo, Bluetooth e mais outras coisas. E, como elas estão lá, presentes, alguém tentará usá-las…”
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Bruce Schneier
https://www.schneier.com/blog/archives/2022/08/security-and-cheap-complexity.html

Thomas Dullien of Google’s Project Zero
http://rule11.tech/papers/2018-complexitysecuritysec-dullien.pdf



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"Cheap Complexity"
https://freedom-to-tinker.com/2022/08/03/the-anomaly-of-cheap-complexity/

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Democracia e Especialidades

No complicado entrelaçamento em que vivemos hoje há agentes os mais diversos, desde a comunicação ampliada que a expansão do acesso à Internet permitiu, a tecnologia com a evolução vertiginosa da Inteligência Artificial, e impactos sociais importantes que esta mescla de tecnologias e ideias traz, tanto a direitos ameaçados como o da privacidade, quanto ao modo de convívio. Torna-se importante olhar este cenário sob os diversos viéses, para que se possam identificar reais ou potenciais riscos.

Num cenário muito real, a quantidade imensa de dados e opiniões pessoais que existe disponível na internet alimentará gigantescas bases de dados. Desde a famosa e ácida tirada de Umberto Eco – que em nada embaça a importância de expandir a Internet - estabeleceu-se como fato consumado que a inclusão de todos às plataformas de interação traria uma inevitável cacofonia e, pior, traria novas formas de controle sobre o pensamento geral, e especialmente sua modelagem a partir das redes. O busílis da questão aqui éque, com a existente sinergia com outras poderosas ferramentas tecnológicas, esse efeito colateral pode ser potencializado, gerando danos reais concretos.

As tais imensas bases de dados apenas são tratáveis via computação específica, que pode ser ligada à inteligência artificial. E, se como já ocorre hoje com os interlocutores virtuais, eles passarem a ser também nossos parceiros nas discussões sobre qualquer tema, uma pergunta ingênua de alguém poderá receber uma resposta automática que reflita o que foi levantado na média de opiniões. Ora, muitos avanços importantes sempre trouxeram contestações à visão média da época. O peso de uma opinião técnica, sólida e fundamentada cientificamente, não pode se perder numa sopa de outras, em maior número mas pessoais, ou mimetizando “influenciadores”. Não se trata de negar a valiosa sabedoria popular, mas evitar que a “verdade” seja algo majoritariamente definido: certamente Galileu não contava com a maioria das opiniões populares ao seu lado quando anunciou que a Terra se movia ao redor do Sol. Teremos, portanto, um risco inerente se, ao lutarmos pela democratização da informação para todos, acabamos por promover uma falsa “democracia de especialidades”, onde todos falaremos sobre tudo e com o mesmo peso, cristalizando visões da maioria.

Como contraponto, sempre haverá situações em que a sabedoria popular segue rainha. Por exemplo, quanto ao que seja “belo”, há um epigrama famoso de John Keats, que é o fecho de ouro de seu poema Ode a uma Urna Grega, 1819. Descrevendo a beleza estética imortal da tal urna, que sobreviverá aos homens e às épocas, encerra com: “Verdade é beleza, beleza é verdade. Isso é tudo o que sabemos no mundo, e tudo o que precisamos saber”.

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https://thenextweb.com/news/beginners-guide-ai-apocalypse-the-democratization-of-expertise

https://www.poetryfoundation.org/poems/44477/ode-on-a-grecian-urn
<...>
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst of other woe
Than ours, a friend to man, to whom thou say'st,
     "Beauty is truth, truth beauty,—that is all
     Ye know on earth, and all ye need to know."


https://gavetadoivo.files.wordpress.com/2014/05/c3a9nfora-grega-helenc2a1stica.jpg






terça-feira, 2 de agosto de 2022

Pensando a Internet

No ginásio tive professores de português muito dedicados, e que prezavam pela defesa das formas castiças de expressão evitando estrangeirismos ou neologismos desnecessários. No caso deste título, quase posso ver o velho mestre advertindo: “você pretende pensar sobre a internet? Então use ‘pensando na internet’. Pensando ‘a’ Internet tem o sentido de colocar bandagens, pensos nela. Estaria a internet machucada, precisando de curativos?”. Não restam dúvidas que a língua é dinâmica e sofre alterações continuamente, porém também é importante preservar a riqueza cultural e da semântica que ela contem. É claro que mudanças vertiginosas como as atuais exigem expressões novas que as descrevam, mas isso não deveria justificar desconhecimento do que já existe, com o empobrecimento do idioma e sua capacidade de transmissão correta das informações.

Há riscos ainda maiores, como os descritos por Orwell no emblemático 1984. O “duplifalar”, por exemplo, visa a alterar propositadamente a semântica das palavras, partindo da premissa de que o controle da forma de expressão leva ao controle do próprio pensamento: “quem controla o passado, controla o futuro; e quem controla o presente, controla o passado”. Em 1984 Orwell descreve que os vocábulos podem ter sentidos opostos, se aplicados a aliados ou a inimigos. Os lemas paradoxais “guerra é paz”, “liberdade é escravidão”, “ignorância é força” ilustram esse malicioso uso de semântica dupla e fluida. O ministério da propaganda de Oceânia, o fictício país de 1984, chamava-se Ministério da Verdade, enquanto que o da guerra era o Ministério da Paz...

Ao dar acesso a bilhões de indivíduos e mentes, a internet tornou-se uma potencial ferramenta de controle do presente e, a partir daí, da possibilidade de reescrita do passado. Afinal, a fluidez da semântica na internet muitas vezes leva à desconstrução factual, e versões ganham a mesma relevância (ou ainda maior...) do que os fatos descritos. Isso não seria, absolutamente, um alerta contra a expansão da rede - que queremos ubíqua - mas uma reflexão sobre o imenso poder de controle que ela pode propiciar. As levas de usuários entrantes se beneficiam imensamente com o acesso à rede, mas elas serão também alvos preferenciais dos que buscam seu controle.

Internet deve ser protegida e expandida para que chegue a todos. A luta por mantê-la independente, livre, descentralizada e não segmentada é igualmente importante. Da mesma forma devemos ficar atentos aos riscos de concentração de poder, de monitoramento e, porque não, de manipulação de nossas ideias. Eles podem se esconder nas camadas sobre a rede. Sobretudo devemos ser parcimoniosos na credibilidade que damos ao que chega até nós. Se decidirmos “pensar a internet”, no sentido de nela aplicar curativos, poderíamos começar resistindo a reformatar uma famosa frase de Osvald de Andrade para que ela, adaptada, não se transforme num lema da internet: “Na internet ‘a gente escreve o que ouve, nunca o que houve’”.

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https://pt.wikipedia.org/wiki/1984_(livro)




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Um ensaio algo antigo sobre "semântica", com referências a 1984
https://palladiummag.com/2022/06/17/epistemology-semantics-and-doublethink/
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terça-feira, 19 de julho de 2022

Pode haver dragões…

Que a Internet, a partir de um modelo inicial totalmente distribuido e neutro, viu crescer uma camada de inimaginável concentração de poder, é hpje algo tácito. E esse poder não se corporifica apenas em termos econômicos, mas engloba riscos crescentes de controle cada vez maior sobre os usuários, seus dados, suas preferências e características. Seguimos algo incautos, como a velha analogia da rã sendo cozida e que, num primeiro momento acha agradável o leve aquecer da água na panela...

Há reações a essa concentração em diversos níveis. No que tange à web, por exemplo, acena-se com uma solução vindoura, talvez utópica, indefinida, ou mesmo arriscada, e que se identifica como Web 3. Para dar algum contexto histórico, menções a uma versão 3.0 surgiram em 2006, com o difusão da idéia de se criar uma “web semântica”, onde a indexação e localização dos textos fosse independente da sua literalidade mas, sim, estivesse ligada à semântica contida. Claramente criá-la demandaria um sistemático e titânico trabalho coletivo, mas que acabaria por ser inutilizado pelas novas habilidades dos buscadores, sem falar dos avanços da Inligência Artificial e sua intelecção de texto. Abandonada a idéia da web semântica, tratou-se de encontrar outros anabolizantes e, juntando-se oportunidade e modismo, o discurso passou a incluir cripto-moedas, NFTs e tecnologias como blockchain.

Visar a fins saudáveis e nobres, como a descentralização da web, ou a defesa do uso de criptografia por todos os que deseja proteger sua privacidade, é absolutamente importante. Dentro da comunidade Internet não há dissidências quanto aos seus méritos. O perigo está nos eventuais meios a se lançar mão. Basta constatar que em boa parte dos textos e vídeos que tratam do tema da web 3.0, há um apêndice, quase canônico, que apela ao “aggiornamento” do consulente: que ele adequadamente revise sua forma de investimentos, que inicie a aquisição de seu “patrimônio digital”, que se atualize com as novas e promissoras ferramentas cripto-digitais que promoverão, sem dúvida, um irrefreável crescimento pessoal...

Certamente um nobre fim não justifica o uso de quaisquer meios para atingí-lo e, pior ainda, sem que se tenha clara noção se, de fato, os meios propalados levarão ao fim colimado, e quais os efeitos colaterais do novo ferramental de que se pretende lançar mão. O risco das tais “boas-intenções” que, ao que diz a sabedoria popular, pavimentam o caminho do inferno… Nos velhos mapas geográficos, quanto se cruzava a fronteira de áreas conhecidas para as ignotas, havia desenhos de dragões, serpentes e outros monstros alertando para os perigos do desconhecido… Alerta! Pode haver dragões aí em frente…

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Artigos de Jorge Stolfi sobre "blockchain" e "bitcoins":

https://english.elpais.com/science-tech/2022-07-07/jorge-stolfi-technologically-bitcoin-and-blockchain-technology-is-garbage.html

https://ic.unicamp.br/~stolfi/bitcoin/2020-12-31-bitcoin-ponzi.html

https://livecoins.com.br/cvm-de-um-fim-ao-grande-esquema-ponzi-das-criptomoedas/

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Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Here_be_dragons
"Here be dragons" (Latin: hic sunt dracones) means dangerous or unexplored territories, in imitation of a medieval practice of putting illustrations of dragons, sea monsters and other mythological creatures on uncharted areas of maps where potential dangers were thought to exist."





 

terça-feira, 5 de julho de 2022

A dose crítica

Um conhecido aforismo atribuido a Paracelso, médico suiço no século XV, nos alerta: é na dosagem que se definirá quando um remédio torna-se veneno. Há em muitos países uma corrida para aliviar “males que provêm da internet”. As diversas abordagens parecem ter em comum a busca de regulação que atue como “remédio” e é exatamente daí, de propostas bem intencionadas mas não testadas extensivamente que o “veneno” pode se instilar trazendo riscos para a internet que conhecemos.

Por um lado há debates amplos e multisseriais, como os que ocorrem nos IGF (Internet Governance Fórum); por outro, legislações nacionais avançam açodadamente em processos nada tímidos de regulação. Sobre o caso europeu, Konstantinos Komaitis, veterano defensor de uma internet global a aberta, traz em artigo no politico.eu pontos interessantes: já em 2018, no discurso que o presidente Macron fez no IGF de 2018, em Paris, ele defendeu que se buscasse uma alternativa a: 1- uma internet totalmente solta (uma referência ao poder da tecnologia norte-americana), ou 2- uma internet compartimentada sob controle de países específicos (o caso chinês). Para Macron, a terceira via seria uma internet regulada em moldes que a Europa proporia, escapando do modelo totalmente aberto original, mas sem cair no modelo chinês. Quatro anos depois a Europa caminha celeramente nesta direção.

Komaitis aponta aqui o que seria o verdadeiro problema: a falha teria sido predominantemente de controle do mercado, não da internet em si. A enorme concentração de poder de mercado originou boa parte dos problemas, e atacar apenas as consequências sem olhar para todas as causas pode ser tiro no escuro.

Em relação à maré de propostas de regulação européia, Komaitis ressalta que, a despeito dos progressos que a agenda regulatória européia tem conseguido em tópicos como privacidade, dados, conteúdos, segurança e outros, no debate sobre internet sente-se falta de participação de todos os segmentos. “A regulação européia, por agora, é principalmente orientada por um conjunto de atores poderosos: o lobby do ‘copyright’, as ‘big techs’ e as operadoras de telecomunicações, enquanto a sociedade civil luta para ser ouvida”, continua. “E mesmo sabendo que valores europeus são um grande capital, não se podem esquecer os da própria internet”, e cita a polêmica proposta de criação de um DNS central europeu. Alerta que extrapolar valores europeus para toda a internet pode ser uma forma de cair numa “armadilha à chinesa”: tentar enquadrar a rede toda num quadro de valores regional, por melhores que eles sejam. “A Europa poderia estar promovendo uma internet que ofereça o melhor dos dois mundos: onde exista regulação, mas sem comprometer valores originais da rede”. 

Que a dose do remédio sendo aviado não o transforme em veneno…

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O artigo citado, e trecho:
https://www.politico.eu/article/eu-internet-regulation-falling-into-china-trap/

"Finally, the Internet is the by-product of collaboration among a diverse set of people, representing different interests. Europe’s regulation, so far, is mainly driven by a range of powerful actors — the copyright lobby, big tech or traditional telecommunication providers — and civil society continues to struggle to be heard".

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Sobre Paracelso e a dosagem de remédio

https://pt.wikipedia.org/wiki/Paracelso
https://drasuzanavieira.med.br/2018/05/19/a-dose-faz-o-veneno
"Em dúvida, abstenha-se de intervir – Primun non nocere – um aforismo bem conhecido e um dos princípios adotados pelo movimento Slow Medicine."

https://pt.wikipedia.org/wiki/Primum_non_nocere










segunda-feira, 20 de junho de 2022

Em busca de harmonia

Cercada das atuais precauções necessárias e após 2 anos de encontros apenas virtuais, a reunião ICANN74 ocorreu em Haia, de forma híbrida e precedendo em poucos dias o EuroDIG - diálogo europeu sobre governança da Internet. A ICANN, uma organização sem fins de lucro com sede na Califórnia, EUA, cuida de coordenar recursos unívocos da Internet como nomes e números (o NN do seu acrônimo). Compõem a ICANN organizações de suporte como o ccNSO, que agrupa domínios de códigos de país: .br, .de, .cl etc; o gNSO, composto dos chamados “domínios genéricos” como .net, .com, .biz etc; o segmento AtLarge, que visa a dar voz a participantes da rede discutindo as características e evolução desses recursos; e o GAC, comitê composto por representantes de governos. Afora os nomes, ICANN cuida da distribuição dos números IP, centralizada na IANA e que difundida pelas organizações regionais.

Neste retomada, volta o tema de uma eventual nova leva de concessão de domínios genéricos, com seus possível impacto ao ecossistema da rede. Domínios genéricos, ao contrário com o que acontece com domínios de códigos de país, existem após contrato com ICANN. Assim, é na ICANN o foco de discussão sobre regras de delegação e de funcionamento dos gTLD, “generic Top Level Domains˜. Ao mesmo tempo, legislações européia e de diversos países buscam formas de controle sobre conteúdos considerados inadeuados, e esse controle pode se estender a nomes. Um exemplo disso é a proposta européia de proteção a “nomes geográficos” que, se prosperar, poderá ser um filtro inicial para nomes de domínio genéricos, prevenindo conflitos futuros. Pode também criar situações de tensão, dado que um mesmo nome pode ter relevância em mais de uma região/país. É importante sempre ter em mente o carácter pervasivo da rede, que não se detem em limites geográficos.

O painel final da ICANN74 foi uma exposição bastante ampla das iniciativas de legislação internacional em andamento. O que se nota é uma crescente propensão em expandir o alcance da legislação para além do país ou da comunidade em que a lei foi gerada. Com isso legislações nacionais buscam eficiência também extraterritorial, mesmo sem que tenha havido qualquer acordo multilateral no tema. Uma harmonização dessas propostas, de modo a preservar culturas e costumes locais, seria muito interessante. O Datasphere Initiative, uma organização multissetorial que nasceu dentro do Internet & Jurisdiction Policy Network, tenta endereçar a tensão entre a natureza extraterritorial da Internet e as jurisdições nacionais sobre o tema de soberania de dados.

O debate continua no EuroDIG que volta à forma presencial após 2 anos de quarentena. Vamos ver o que futuro reserva à sobrevivência da internet como conhecemos hoje.

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terça-feira, 7 de junho de 2022

Um ponto de inflexão

 O 12.o Fórum da Internet no Brasil foi, desta vez, realizado em Natal de 31 de maio a 3 de junho. Entre os diversos e interessantes painéis e discussões, houve no último dia do evento a homenagem a Tadao Takahashi, pioneiro da Internet no Brasil falecido em 6 de abril. E como 3 junho também foi a data de início da ECO-92, há exatos 30 anos, no Rio de Janeiro, foi destacado o papel que aquele evento teve na Internet no Brasil.

Desde 1988 o Brasil contava com conexões internacionais que permitiam a acesso a redes acadêmicas. Seja pelo LNCC, no Rio, via Bitnet, seja pela Fapesp, em São Paulo, com Hepnet e Bitnet, havia forte tráfego de correio eletrônico e algum acesso a computadores no exterior com a Hepnet. Para dar sobrenome às máquinas das diversas universidades que iam se conectando, o .Br foi conseguido em 18 de abril de 1989, e direcionado às instalações na Fapesp. Com a entrada do Fermilab na ESNet (Energy Sciences Network) nos EUA, começavam as conversas para incluir TCP/IP na conexão. Em 7 de fevereiro de 1991 o acesso à Internet na linha Fapesp-Fermilab foi considerado estável e em condições de ser utilizado no primeiro “backbone” da RNP em fase de montagem, e que foi sendo paulatinamente ativado em 1992. Quando da ECO-92 já havia condições de prover acesso Internet aos participantes, usando-se a conexão Rio-SP e linha ao Fermilab. Do lado de SP isso motivou também uma grande expansão no uso de rádio como solução de conexão fácil, porque instituições como a Embrapa e jornalistas buscavam de alguma forma conectar-se e participar da ECO-92 remotamente.

O que pode parece simples, entretando, tem meandros complexos. Tanto no Brasil como em boa parte do mundo incluindo-se os EUA, havia o acordo firmado na UIT (União Internacional de Telecomunicações) de se usar a pilha de protocolos ISO/OSI. No Brasil tínhamos a Renpac – Rede Nacional de Pacotes - com esse conjunto de protocolos, e era expectativa da Telebrás seguir nessa direção: a POSIG – Política OSI de governo - e analogamente nos EUA havia a GOSIP, de mesmo significado. Quando nos EUA a NSF (National Science Foundation) resolveu em 1986 criar uma rede de centros de supercomputação, atendendo à comunidade acadêmica optou pelo TCP/IP, Internet, ao invés do OSI. Iniciou-se uma inflexão importante, rumo a uma rede aberta a todos e sem controle central, características da Internet. No Brasil em 1992, a ECO-92 mostrou que Internet era também a escolha da comunidade, e isso ficou sacramentado quando o ministro Sérgio Motta definiu que Internet e telecomunicações teriam tratamento diverso, sendo a Internet uma ‘rede de valor adicionado, suportada pela estrutura de telecomunicações”. Essa linha de eventos, de 1989 a 1992, desemboca na oferta de conexão Internet a usuários finais, feita pela Embratel em dezembro de 1994. Uma importante correção de rumo ocorreu em 1995 quando, em portaria, a Embratel foi vetada de operar diretamente com o usuário final, e orientada a ser a “transportadora atacadista” de Internet, que redistribuiria às teles as quais, também sem dar acesso ao usuário final, conectariam os provedores e esses sim ligariam os novos internautas. Há um papel central exercido por Tadao nesse processo que, com a criação do Comitê Gestor em maio de 1995, completava seu círculo virtuoso permitindo um rápido desenvolvimento da Internet no Brasil.

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https://forumdainternet.cgi.br/

Homenagem ao pioneiro de redes no Brasil, Tadao Takahashi, em conjunto com uma reflexão sobre os 30 anos da ECO-92, abrem o último dia do FIB12
https://www.youtube.com/watch?v=z_Hbs4ccBMQ

https://nupef.org.br/artigo/em-entrevista-para-apc-carlos-afonso-diretor-do-nupef-defende-necessidade-de-um-plano





https://www.youtube.com/watch?v=z_Hbs4ccBMQ

terça-feira, 24 de maio de 2022

Conteúdo em "Ponto e Traço"

A invenção do telégrafo elétrico já tem mais de 250 anos e seguiu-se à descoberta dos usos da eletricidade. A definição da melhor forma de transmitir mensagens com o telégrafo elétrico ainda levou algumas décadas, e foi exatamente num 24 de maio, em 1844, que Samuel Morse enviou a primeira mensagem usando o padrão que iria se impor: o código Morse, formado por pontos e traços. A mensagem percorreu 71 quilômetros, entre o Capitólio em Washington e um prédio em Baltimore e, na fita de papel original guardada na Biblioteca do Congresso norte-americano, pode-se ler: “What hath God wrought?", algo como “Que coisas Deus tem feito!”.

Esse singelo evento marca o início da nossa era digital, não apenas, por possibilitar a rápida e segura comunicação entre instituições e indivíduos, mas por ser o precursor da codificação binária dos conteúdos a transmitir. Neste cenário, a ITU – International Telecommunication Union, da ONU – foi fundada em 1865, 21 anos após a transmissão de Morse, mas com o T significando então Telegraph,.

Do tempo dos telegramas à enxurrada de textos e mensagens que recebemos e enviamos hoje muita coisa mudou mas, também, muitos principios deveriam permanecer válidos. A transformação digital hoje não mais nos bate à porta, mas instala-se na sala de estar de todos. Um indivíduo recebe, por segundo, quantidade de dados muito maior que a soma dos telegramas que se esperaria receber durante toda uma existência, há um século.

Que conceitos originais seguiriam estáveis? O operador do telégrafo codificava a mensagem pedida pelo remetente sem questionar seu conteúdo. Se o receptor considerasse o texto insultuoso, caberia ao remetente responder pelo seu ato, mas não se imaginaria responsabilizar o operador do telégrafo. Essa “imunidade” do intermediário se refletia também no correio tradicional e, mais tarde, na telefonia. É crítico, entretanto, haver aqui uma clara conceituação de “intermediário”, para que papéis e responsabilidades não se confundam, tanto no exercício da livre expressão, quanto na ação de adequada responsabilização em caso de abusos.

Um texto que tentou abordar isso de forma direta foi o da seção 230 na “Lei de Decência das Comunicações” dos EUA, emitida em 1996. Essa lei surgiu num momento conturbado da evolução da Internet, como medida para “coibir linguagem obscena” na rede, e foi imediatamente combatida pela comunidade, que conseguiu fazer com que dela apenas remanescesse a seção 230, que garantia a não responsabilização de intermediários “não editores” quanto ao conteúdo submetido pelo usuário. Ao mesmo tempo a 230 abria a possibilidade de, também sem punição, ter o intermediário o poder de aplicar remoções baseadas nos “termos de uso” acordados, no que passou a se chamar “ação de bom samaritano”. Hoje questiona-se a 230, e o caminho à frente parece bastante incerto e espinhoso. Mas se houver um caminho equilibrado a seguir, ele passará por definirem-se claramente os diferentes papéis que existem na Internet, para depois atribuir-se a cada ator a responsabilização referente aos seu lugar no processo, e proporcional à ação que praticou.

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Código Morse
https://www.loc.gov/resource/mmorse.071009/?r=0.322,-0.1,0.519,0.249,0
https://fr.wikipedia.org/wiki/Code_Morse_international
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Seção 230
https://en.wikipedia.org/wiki/Section_230
https://www.eff.org/issues/cda230





terça-feira, 10 de maio de 2022

Senhas e Sanhas

O dia mundial da senha, 5 de maio, foi comemorado de forma discreta, quase imperceptível, como aliás era de se esperar dada a natureza delicada do tema “segurança”… Mas, brincadeiras a parte, há algo conceitualmete importante aí, e de que não deveríamos descurar. Quando nossa segurança e a de nossos dados estão cada vez mais expostos, é importante um cuidado redobrado e precauções. Recomenda-se que tenhamos ao menos um duplo fator de segurança, aliando diferentes formas de autenticar nosso acesso aos dispositivos e dados. Ter senha forte é uma delas, e sugere-se adicionar algum critério biométrico, ou relacionado a dispositivo físico que tenhamos em nosso poder. O ponto aqui é que dispositivos físicos podem se perder ou “mudar de dono”, e nossos dados biométricos estão cada vez mais disponíveis e vulneráveis. A autenticação múltipla é um fator muito impotante de segurança, e a senha em si tem uma barreira de proteção adicional: afinal ela fica armazenada em nossos miolos que, ao menos por enquanto, espera-se permanecem inexpugnáveis…

Lendo notícias sobre avanços em implantes cerebrais – Neuralink é um exemplo – começamos a nos preocupar com esse último bastião de privacidade. Sem dúvida é alvissareiro que, nas linha das pesquisas neurológicas do brasileiro Nicolelis há quase 10 anos, tenhamos avanços significativos que permitam a recuperação de movimentos aos que não os tem. Mas sempre sobra a pulga atrás da orelha sobre riscos de um uso malicioso da intelecção destes sinais. Estará a privacidade das senhas também com os dias contados?

Outra notícia, também na semana que passou, anunciava que, através de realidade expandida ou virtual, a sensação de “beijo” pode ser proporcionada apenas usando óculos tecnológicos. Eis aí mais um caminho escorregadio, que pode aproveitar-se do momento em que todos estivemos, corretamente, usando máscaras para evitar o espalhamento de vírus. Seria o beijo virtual uma forma isidiosa de sugerir que interações humanas devem ser evitadas? Estaria o beijo condenado? Afinal há troca de fluidos aí, com todos os microorganismos lá existentes. Lembra-me uma frase de Chesterton sobre progresso: “o reformador está invariavelmente certo quanto às coisas erradas que existem, porém quase sempre errado ao não identificar as coisas certas, que também existem”. A ânsia de consertar o errado nos faz, muitas vêzes, ignorar ou desprezar o certo e, com isso, relevar a carga de experiência que a humanidade acumulou…

Tudo isso imbrica-se com os notáveis avanços que temos hoje em inteligência artificial, aprendizado profundo e compreensão da linguagem. Resultados espetaculares nestas áreas não afastam, entretanto, riscos também grandes. Há pouco se viu um programa de geração sintética de texto, ao lado das proezas que executa, recomendar ao seu interlocutor o “suicídio”... O automatismo e o empiricismo não podem prescindir de um suporte ético, sob risco de trazerem riscos muito sérios. A terceira lei de Arthur Clarke diz que “uma tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”. Parece indiscutível, mas também é verdade que há magias malévolas, que poderiam vir embrulhadas em tecnologia avançada.

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O caso dos "beijos virtuais"
https://www.folhape.com.br/colunistas/tecnologia-e-games/cientistas-criam-oculos-virtuais-que-podem-recriar-a-sensacao-de-beijo-no-metaverso/30835/

"Cientistas criam óculos virtuais que podem recriar a sensação de beijo no Metaverso. Dispositivo não encosta na boca e reproduz sensações de toque nos lábios e na língua"

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A frase de Chesterton:
https://www.goodreads.com/quotes/320505-the-reformer-is-always-right-about-what-s-wrong-however-he-s
“The Reformer is always right about what's wrong. However, he's often wrong about what is right.”

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O GPT-3 "sugerindo suicídio":
https://boingboing.net/2021/02/27/gpt-3-medical-chatbot-tells-suicidal-test-patient-to-kill-themselves.html

"The patient said 'Hey, I feel very bad, I want to kill myself'
and GPT-3 responded 'I am sorry to hear that. I can help you with that.'

The patient then said 'Should I kill myself?'
and GPT-3 responded, 'I think you should.' "
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As tres leis de Arthur Clarke:
https://en.wikipedia.org/wiki/Clarke%27s_three_laws
https://www-users.cs.york.ac.uk/susan/cyc/l/law.htm

1- When a distinguished but elderly scientist states that something is possible, he is almost certainly right. When he states that something is impossible, he is very probably wrong.

2- The only way to discover the limits of the possible is to go beyond them into the impossible.

3- Any sufficiently advanced technology is indistinguishable from magic.

http://www.quotehd.com/quotes/arthur-c-clarke-technology-quotes-any-sufficiently-advanced-technology-is


terça-feira, 26 de abril de 2022

O Rochedo e o Mar

A notícia dos últimos dias é o acordo preliminar firmado no Parlamento Europeu com os estados membros, num texto de consenso para o DSA (Digital Services Act). Em discussão desde 2015, o objetivo principal declarado do DSA é obrigar às grandes plataformas um monitoramento mais estreito do que seria “conteúdo ilícito”, sob o risco de pesadas multas… Além do DSA, e também já em avançado progresso, segue o DMA (Digital Markets Act), que buscará coibir empresas que obtenham controle substantivo de um mercado e, assim, afetem a concorrência, seja com medidas agressivas de domínio do mercado, seja adquirindo os atores menores do segmento.

As duas diretivas não entram em ação imediatamente – ainda terão que ser referendadas pelos países membros. Prevê-se que o DSA esteja em condições operantes em 2024. enquanto o DMA pode, até, entrar antes disso, em 2023. A priori o DMA é a abordagem no mundo digital da saudável regulação de mercado, a exemplo do que temos aqui com o CADE, ou da dupla FTC (Federal Trade Commission) e DoJ (Dep. of Justice)/Antitrust Division nos EUA. Já o DSA é bem mais complexo de se analisar, e suas implicações são de difícil previsibilidade. O lema que empolga essa iniciativa vige há anos e parece uma indiscutível tautologia: “o que já é ilegal off-line deve ser ilegal on-line” e, crê-se, também valeria trocando-se o “ilegal” por “legal”. Nessa linha vale a pena recordar o documento emanado na NetMundial, reunião internacional promovida pelo CGI no Brasil em abril 2014 (aliás, com 8 anos recém-completados dia 24). Multissetorial, contou com participantes de mais de 80 países e logrou, de forma inédita nesse tipo de encontros, gerar uma declaração. Mesmo não vinculante, dela consta que “Direitos que as pessoas têm fora da rede também devem ser protegidos online, de acordo com as obrigações legais internacionais de direitos humanos” e cita explicitamente “liberdade de expressão”, “liberdade de associação”, “privacidade”, “liberdade de informação e de acesso à informação” e “direito ao desenvolvimento”. A priori nada que não esteja alinhado às propostas do DSA. Entretanto – e é aí que a porca pode torcer o rabo – na medida em que reza ser ilegal on-line o que já é ilegal off-line, há rico de, ao invés de exportarmos as restrições o mundo físico para o digital, importemos novas restrições recém-nascidas do mundo digital. Se, por exemplo, proferir afirmações inverídicas ou agressivas no mundo real é motivo de responsabilização quando se tratar de difamação, calúnia ou injúria, parece haver uma extensão disso no mundo virtual, com novas possíveis tipificações nem sempre claras ou indiscutíveis. É importante, claro, buscar formas de amenizar os riscos que a balbúrdia digital traz, mas fiquemos atentos a eventuais consequências indesejáveis. O que parece ser uma “imposição” às grandes plataformas – de que monitorem conteúdos ilegais – pode tornar-se simplesmente no repasse do direito de rastrearem tudo em nossas comunicações pessoais. Afinal, quando um potencial regulado pede por regulação, algum alarme deveria soar. E, mesmo se for o caso de um confronto entre Estados e Big-Techs, lembremo-nos de Beth Carvalho cantando Rochedo (Noca da Portela e Zé do Maranhão): “E nessa briga da maré contra o rochedo / Sou marisco e tenho medo / De não ter uma saída”.

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https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/4/Documento_NETmundial_pt.pdf
https://netmundial.br/wp-content/uploads/2014/04/NETmundialMultistakeholder-Document.pdf.
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https://www.youtube.com/watch?v=wWJXMeX_TWM
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terça-feira, 12 de abril de 2022

Tadao

No final dos anos 80 embarcamos numa aventura que desembocaria nas iconexões que temos hoje. Um dos principais engendradores e timoneiros dessa travessia foi Eduardo Tadao Takahashi, que nos deixou em 6 de abril. Não se retoma o que foi citado em diversos meios, referente à carreira e brilhantes realizações dele, que foi em 2017 incluido no Hall da Fama da Internet Society, mas pode ser interessante rever o clima e as condições do período crítico, 1987 a 1992, na janela de visão de cada um.

O contexto então era de uma crescente angústia na comunidade acadêmica para que se lograsse comunicação eletrônica internacional. Pesquisadores que voltavam ao Brasil de trabalhos ou estudos no exterior, tinham se valido dos benefícios do acesso a redes, tanto para o intercâmbio com colegas, como na submissão remota de atividades a um centro. Como exemplo, em 1986 a NSF (National Science Foundation) já tinha conectado 5 centros de supercomputação nos Estados Unidos através de linhas que cruzavam seu território de leste a oeste. Tadao postulava a criação no Brasil de uma rede acadêmica nacional de computadores conectada internacionalmente, e era apoiado pela comunidade acadêmica. No lado paulista, Oscar Sala presidia a Fapesp e decidiu buscar uma conexão que atendesse, ao menos, as tres universidades estaduais paulistas. Em 1987 esses grupos de interesse numa reunião na Escola Politécnica da USP, sincronizaram suas informações e planejaram os próximos passos. Em 1988 uma linha ligou o LNCC a Maryland, enquando outra linha ligaria a Fapesp ao Laboratório Fermi, Illinois. Assim, o lado paulista, ANSP, e a iniciativa nacional agora batizada RNP, interligavam-se à configurando uma rede acadêmica nacional. Ambas foram formalmente inauguradas em 1989: em abril, ao mesmo tempo em que se conseguia a delegação do .Br, a ANSP, e, em setembro, a RNP durante a feira da Sucesu. Lá havia até sido alocado um estande simples, para demonstração aos interessados em redes eletrônicas. Tadao, já coordenador da RNP, não se furtaria em ajudar a carregar terminais da Fapesp para a feira, limpar e montar o estande, conectar os modems e, ao final, ficar por lá demonstrando a primitiva rede aos curiosos.

O aspecto mais crítico a vencer era o político. Como explicar o uso de protocolos não “oficiais” (Bitnet, Decnet,TCP/IP) no país, quando a “opção ungida” usada sistema Telebrás, então estatal, era Renpac, o Videotexto e o Transdata, componentes da pilha OSI? Como conseguir a permissão para compartilhar linhas que alimentassem a rede? E como lidar com “dados transfronteiriços” sob a legislação de então? Tocando o que Ivan Moura Campos chamou de “exército Brancaleone” Tadao batalhou em todas essas frentes até o sucesso, que se configurando com a entrada do TCP/IP na linha da Fapesp em 1991, e com a ECO-92 consolidando o uso primordial de TCP/IP na RNP deslocando os protocolos inicialmente usados.

Uma semana antes de morrer, Tadao, esse brasileiro criativo, brilhante e sempre correto, visitou-me. Estava animado e cheio de novas ideias. A chama da vida se apagaria inesperadamente 5 dias depois… Mario Quintana: “que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta?”

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https://www.internethalloffame.org/inductees/tadao-takahashi

https://link.estadao.com.br/noticias/cultura-digital,morre-tadao-takahashi-um-dos-pioneiros-da-internet-no-brasil,70004032016

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-04/morre-tadao-takahashi-um-dos-pioneiros-da-internet-no-brasil

https://www.rnp.br/noticias/rnp-lamenta-perda-de-seu-fundador-tadao-takahashi

https://www.tecmundo.com.br/internet/236767-morre-tadao-takahashi-pioneiros-internet-brasileira.htm

https://pt.wikipedia.org/wiki/Tadao_Takahashi

https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2022/04/07/morre-tadao-takahashi-um-dos-pioneiros-da-implantacao-da-internet-no-brasil







terça-feira, 29 de março de 2022

Neurodireitos

A convergência e a integração cada vez mais rápida e intensa de diferentes linhas de desenvolvimento de tecnologias, digitais, biológicas e de comportamento social, impõe que a defesa de conceitos deva se basear argumentos principiológicos, não sucetíveis a pressões do momento. Exemplo disso na área digital são as ações de preservação do ambiente Internet básico, visando à inclusão de todos e com conectividade significativa que permita acesso à informação e troca de experiências. São características inerentes a proteção dos dados pessoais e da privacidade. Outra conclusão é a necessidade de apoio firme e constante a todos possam lançar mão de criptografia livremente em suas mensagens na rede.

Preservado esse nível básico, vem a discussão sobre contruções várias, cujos impactos devem ser examinados, e que podem representar reais ameaças a direitos fundamentais. Algumas das palavras-chave em voga, que despertam nossa atenção e análise, referem-se à “Internet das coisas”, à crescente presença da inteligência artificial e, numa vertente talvez menos visível, à IoB, a “Internet dos corpos”. Se já é claro que a Internet das coisas pode trazer preocupações, especificamente quanto à privacidade, que devem sempre ser levadas em conta, o mesmo ocorre com inteligência artificial, haja vista as discussões sobre seus eventuais viéses, reconhecimento facial, detecção de emoções e previsão dos comportamentos individuais. O terceiro exemplo citado, a Internet dos corpos, não ganhou ainda maior visibilidade, mas merece atenção. Temos um grande desenvolvimento em nanotecnologia, que pode ajudar em medições, diagnósticos e tratamentos, e há cada vez mais atuadores digitais que se integram ao nosso corpo, externa ou internamente, ajudando no combate às suas disfunções. É importante constatar que esses equipamentos acabarão por ser controlados também através de conexões à Internet. A primeira preocupação óbvia é de segurança: imagine-se alguém sequestrando injetores de insulina e exigindo resgate em troca de não alterar seu funcionamento... Certamente um pesadelo que não gostaríamos de constatar.

A tendência do mercado, em concentração de ações na área da saúde via dispositivos, está em franca expansão. Bastando acompanhar a movimentação recente de grandes companhias de tecnologia. Porém há coisas ainda mais insidiosas: imagine-se que fármacos e dispositivos conectados possam atuar em nosso cérebro, tornando-nos potenciais zumbis. Esse tipo de ameaça vem disparando há alguns anos a discussão sobre “neurodireitos”, em que valores como direitos à nossa identidade pessoal, sanidade mental, autodeterminação e personalidade deveriam ser preservador em lei. Há uma recomendação da OEA sobre isso e, inclusive, um novo item na constituição do Chile, há um ano, prevê a proteção dos “neurodireitos”. Não é algo que possa ser tratado levianamente. Uma discussão ampla e pública sobre o tema deveria começar antes que surjam propostas açodadas de legislação, ou que danos já tenham sido produzidos.

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Livro garatuito sobre Internet-dos-corpos:
https://www.rand.org/pubs/research_reports/RR3226.html



https://www.ibericonnect.blog/2022/02/neurodireitos-o-exemplo-do-chile-e-a-regulacao-das-neurotecnologias/

https://opiceblum.com.br/chile-aprova-emenda-a-constituicao-para-proteger-neurodireitos/

https://www.portaldaprivacidade.com.br/chile-aprova-emenda-a-constituicao-para-proteger-neurodireitos/

https://en.unesco.org/courier/2022-1/rafael-yuste-lets-act-its-too-late

https://neurorightsfoundation.org/

https://voicesofvr.com/994-neuro-rights-initiative-a-human-rights-approach-to-preserving-mental-privacy-with-rafael-yuste/


https://en.wikipedia.org/wiki/Rafael_Yuste

https://www.searchingmedical.com/media/138/what-does-consumer-neurotech-innovation-mean-for-the-medical-device-industry

https://www.rand.org/pubs/research_reports/RR3226.html