terça-feira, 28 de novembro de 2017

Força bruta e elegância



Os mais antigos lembrarão dos tempos em que as capacidades de processamento e de armazenamento de computadores eram escassas. Em 1965 Gordon Moore, fundador da Intel, prognosticou que a cada ano (prazo revisado depois para 18 meses) o número de transistores num “chip” dobraria. Grosseiramente, compraríamos o dobro de capacidade pelo mesmo custo. O surpreendente é que, apesar de alertas sobre interrupção da taxa de crescimento devido a limite físicos, o ritmo ainda está mantido.
Desde o anúncio da “hipótese de Moore” houve um fator de cerca de 50 milhões no número de transistores que pode ser integrado em um “chip”. Fartura é aparentemente sempre bom, mas há contrapontos.

No caso da Internet, por exemplo, a fartura de informações emitidas e disseminadas por todos trouxe um aumento enorme em notícias falsas, fraudes e riscos à privacidade. Armazenamento ilimitado e barato despreocupou-nos de guardar dados importantes de forma recuperável no futuro. Afinal, que parcela das infinitas fotografias que tiramos hoje resistirão, digamos, por uma década? A relevância de um documento, associada à durabilidade do meio, fez com que pergaminhos sobrevivessem milhares de anos e nos trouxessem o que pensavam os antepassados. Qual será a taxa de sobrevivência dos documentos de hoje, se os associamos a meios de armazenamento com vida efêmera?

Voltando aos “velhos tempos” da computação, a escassez instava o programador a usar cada bit, cada ciclo de processador, da forma mais eficiente possível. Com isso em mente, a “arte de programar” associava à técnica elegância e economia. A fartura leva à despreocupação. Afinal, se a máquina for suficientemente rápida, o programa não necessita ser apurado em termos de desempenho. Se há espaço ilimitado e barato, o tamanho que ocupará não importa muito (e, afinal, se ficou grande demais para caber na versão atual do equipamento, é só fazer a atualização para o novo modelo, que nem é tão mais caro assim): mais um estímulo à obsolescência... Ainda tenho (e funciona!) uma máquina fotográfica de 50 anos atrás, mas a carcaça dum telefone celular de 10 anos é um fóssil absolutamente inútil.

Houve também influência nos caminhos da Inteligência Artificial. Se antes a abordagem tendia a ser de “ensinar” a máquina a emular o que um humano faria, hoje, com a capacidade de processamento existente, pode-se simplesmente codificar um algoritmo simples e deixar que a própria máquina aprenda, evolua e altere esse algoritmo inicial pela “experiência” que adquire de seus “erros” e “acertos”.

Ou seja, estabelecidas as regras básicas para uma aplicação, a máquina “deduzirá”, por experimentações sucessivas e evolução, seu comportamento e, eventualmente, derivará daí sua própria “ética”. Como trazer essa “ética” artificial para algo que seja familiar aos valores humanos é o busílis da questão. Dirigir um automóvel, julgar um réu, aumentar a produção de uma indústria são atividades que se beneficiam tremendamente do acesso e processamento rápido de quantidades imensas de informação, mas será que isso basta?

Há algo que falta no cerne desses desenvolvimentos: aquilo que (ainda) nos distingue das máquinas: ética e consciência. Buscaremos um fim, um objetivo, que esteja acima do simplesmente “barato, prático e eficiente”?

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,forca-bruta-e-elegancia,70002099066

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terça-feira, 14 de novembro de 2017

Amazon em Abu Dhabi



Si (como afirma el griego en el Cratilo)
el nombre es arquetipo de la cosa
en las letras de 'rosa' está la rosa
y todo el Nilo en la palabra 'Nilo'.

Jorge Luis Borges, El Golem


A sexagésima reunião da ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers) aconteceu há 10 dias em Abu Dhabi. A capital dos Emirados Árabes Unidos é uma cidade nova, limpa, com prédios arrojados e que transpira riqueza trazida pelo petróleo. Além de ser vizinha do Burj Khalifa, o prédio mais alto do mundo com quase 900 metros de altura, Abu Dhabi abriga a espantosa mesquita Sheikh Zayed com mais de mil colunas, toda revestida de mármore branco e com o maior tapete (persa) já tecido. De tirar o fôlego.

A ICANN é uma organização não governamental sem fins lucrativos, situada na Califórnia norte-americana, que assumiu em 1998 a função de coordenar a distribuição dos números IP (Internet Protocol), tanto na versão 4 como na versão 6, e o registro dos domínios de topo (TLD – Top Level Domain, caso do .br, .com, .net, .de, .etc, entre outros) na raiz da rede. Suas reuniões concentram-se em tentar acomodar interesses operacionais, comerciais, governamentais, de política pública e social, preservando uma Internet única, aberta e diversa.

A iniciativa de povoar a Internet com milhares de novos gTLDs (generic TLDs) escorou-se em argumentos como para “atender melhor a comunidades e nichos específicos de negócios, aumentar a competitividade no registro de nomes e incluir diversidade com alfabetos disponíveis”. Trouxe, além de maiores riscos com novos domínios fraudulentos, registrados para exploração de incautos, tensões com comunidades, culturas e, especialmente, governos. 

Se há, por um lado, posturas “liberalizantes” que admitiriam a priori registro de qualquer nome de domínio, há também os que opõem-se com sólidos argumentos a que um empreendedor possa obter para si nomes como .brasil, ou .ala, ou .deus

A ICANN, prudentemente, buscou minimizar a eventualidade de problemas, criando normas e reservando nomes que não poderiam ser automaticamente registrados. A situação, entretanto, é mais complexa. A nova política, por exemplo, permite que donos de marcas possam solicitar seu nome como um TLD. E a empresa Amazon assim o fez, requerendo .amazon para si. Claro que conceder a uma empresa o nome de toda uma região do mundo não é coisa que vá acontecer sem questionamentos, e rapidamente comunidades da região se organizaram para questionar o pedido.

Um órgão que dá insumos à ICANN, especialmente em temas de interesse público, é o GAC (Government Advisory Committee). E neste caso o GAC, liderado pelo Brasil e por representantes de países da América do Sul, logrou consenso: em comunicado oficial, pediu à ICANN que sustasse a concessão do .amazon, no que foi atendido. Mas há formas de recorrer, previstos nos estatutos da ICANN e a Amazon recorreu. O grupo que julgou o recurso pediu à ICANN que “revisite cuidadosamente sua decisão anterior”. 

Assim, hoje a ICANN está numa “sinuca de bico”. De um lado, o poderio econômico de uma empresa, que pode aplicar somas consideráveis em sua causa judicial, e de outro, o posicionamento de comunidades indígenas e do GAC. Não foi em Abu Dhabi que se pacificou a discussão sobre o .amazon, e a tensão deve se estender ao menos até março de 2018. Acompanharemos.


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