segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Pedra e vidraça

Dom Basílio, no Barbeiro de Sevilha, descreve como uma calúnia, que começa como brisa suave, pode tornar-se um tiro de canhão: “La calunnia è un venticello e produce una esplosione come un colpo di cannone”.

O mundo da Internet é outro, bem diverso do que havia há 200 anos, e continua mudando em velocidade alucinante. A primeira impressão que temos ao olhar as redes sociais é que há um aumento simultâneo na agressividade e no melindre. Ao mesmo tempo em que aumentou a capacidade de atacar, nossa carapaça defensiva parece rala.

Uma tentativa de análise das tais redes sociais passa, talvez, por relembrar um dito, algo duro, de Umberto Eco: elas “deram voz a legiões de imbecis, que antes falavam no bar depois de um copo de vinho e não causavam danos à sociedade”. A rede nos deu o poder da reação rápida e fácil, mas tornou raro o refletir antes de enviar uma resposta. Mais que isso, no lento mundo pré-Internet com o restrito poder individual de participação, os alvos específicos e “vidraças” eram as pessoas públicas: governantes, políticos, artistas, esportistas. Nós, da arquibancada, líamos o que jornalistas, cronistas e outros escreviam a respeito das “vidraças” e, eventualmente, emitíamos também nossa opinião, que alcançava o pequeno grupo de amigos ao lado ou os da mesa do bar.

Nós, da arquibancada, jamais seríamos alvo de comentários, porque não éramos visíveis nem significativos. E se as “vidraças” eram pessoas notáveis e conhecidas, as “pedras” também eram.

Claro que nós, da arquibancada ou do bar, podíamos também jogar confetes de elogio ou alguma areia de crítica, mas isso passaria despercebido pelas “vidraças” e seria ignorado pelas “pedras”.

A Internet, com todos os seus aspectos positivos de colaboração e desprendimento, também proveu “pedras” para todos. Com amplificação fácil, as novas “pedras” começaram a produzir efeitos significativos. Os “davides” do passado perderam o monopólio das fundas e dos bodoques e todos pudemos arremessar muitos pequenos pedregulhos nos “golias” de nossa preferência. Uma chuva de pedregulhos pode produzir tanto ou mais dano que uma pedra grande.

Mas aí vem a outra face da moeda. Pau que bate em Chico bate em Francisco. Quem se torna perceptível jogando pedras (ou confetes) rapidamente transforma-se em potencial vidraça. Nós, os invisíveis da arquibancada, começamos a ser notados e a despertar reações. Os “notáveis” continuam sendo o alvo preferencial, mas os “não notáveis” também passam a merecer comentários.

E os comentadores tornam-se comentados; os críticos, criticados. Ganhamos o poder de falar, mas tivemos de passar o ouvir respostas rudes. As antigas “vidraças”, as tais pessoas públicas, tinham o couro já curtido e resistente pela exposição ao sol e ao vento dos críticos. Nós, as novas “vidracinhas” não acostumadas a isso, somos sensíveis e magoáveis. Com baixa blindagem, as “vidracinhas” pedem socorro esquecendo-se que, quando do outro lado, jogavam alegre e despreocupadamente suas pedrinhas nos alvos escolhidos.

É muito mais fácil ser pedra do que ser vidraça. Na Internet, entretanto, não se pode escolher.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,pedra-e-vidraca,10000071163
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https://portais.univasf.edu.br/sustentabilidade/imagens/50650vidroquebrado.jpg




segunda-feira, 8 de agosto de 2016

"Traduttore, traditore"

O adágio italiano fala da difícil tarefa de tradução: quem traduz corre sério risco de “trair” a ideia original, sem contar a quase impossível tarefa de traduzir poesia, preservando ritmo, expressão.

Por décadas a computação batalhou para gerar ferramentas automáticas de tradução. O sucesso, entretanto, foi muito limitado. Traduções risíveis eram comuns e, ainda hoje, não é difícil achá-las. Expressões são particularmente ingratas e podemos “ficar a ver navios” (cuja versão para inglês gerou, hoje, “it is to see ships”!). É aí, como diria o Millôr, que “the cow went to the swamp”, a vaca foi pro brejo.

O busílis da questão é a semântica. Sem que se “entenda” a semântica da frase, trocar mecanicamente palavras de uma língua a outra leva muitas vezes a resultados cômicos. A abordagem elegante e adequada desse problema, que envolveria inteligência artificial e complexos algoritmos, está ainda bem longe da perfeição.

Entretanto, há forma de se contornar o problema teórico e buscar melhor resultado. Menos “elegante” e mais baseada na “força bruta”, ela vem no rastro das tecnologias de base de dados, de inferências obtidas no tratamento de quantidades muito grandes de informação, de redes neuronais. A ideia é basear-se no que os humanos fizeram anteriormente e acumular tudo que se tem de tradução de textos, buscando traduções para a frase em questão. Em suma, trata-se de incorporar a experiência humana como parte importante dos algoritmos. É menos formal que o tratamento semântico, porém rapidamente gera resultados próximos do esperado.

Também pode ser uma forma de abordagem para jogos. Ao invés de codificar uma estratégia de jogo que avalie qualitativamente a solidez de uma posição, programam-se as regras dele, adiciona-se um arquivo gigantesco de todos os jogos conhecidos e coloca-se o computador a jogar contra si mesmo por um tempo. Ele pode “aprender a intuir” a melhor jogada e aperfeiçoar-se por meio da tentativa e erro.

Há tempos, quando a capacidade dos processadores era milhões de vezes menor do que a atual, a estratégia de criar programas que “aprendem” com a experiência de erros e acertos era pouco promissora. O processamento maciço de informação passou a suportar buscadores, tradutores, realidade aumentada e também programas para jogos com “intuição quase humana”.

De alguma forma isso representa uma visão inicial: o supercomputador como “calculadora prodigiosa e rapidíssima, executando trilhões de cálculos por segundo na resoluções de equações”. Afinal, se os humanos não tem “processador numérico embutido”, se temos apenas memória para lembrar da tabuada e das regras de multiplicação e divisão, simular nossa forma de pensar não passa por extrair raízes quadradas, senos e cossenos. Somos muito bons em inferir e diagnosticar situações, reconhecer padrões e objetos.

A forma de simulação que parece mais próxima (e até por isso assustadora) é de dotar a máquina da capacidade de tratar quantidades gigantescas de dados simples, e aprender com sua própria experiência. Como mais de um cientista já alertou, a inteligência artificial pode ser, talvez, “derradeira descoberta da espécie humana”.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,traduttore-traditore,10000067751
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