segunda-feira, 30 de maio de 2016

Se correr o bicho pega...

 Tomamos cuidado com saquinhos de plástico que pesam menos de um grama, e usamos “recipientes descartáveis” muito mais pesados para tomar café, água ou chá. Usamos saquinhos para temperar nosso lanche, onde o tempero em si pesa menos que o saquinho (e provavelmente custa ainda menos). Há até situações em que se proibiram os saleiros de uso coletivo. E antes o leite e os refrigerantes vinham em garrafas de vidro retornáveis. Levávamos a garrafa vazia na próxima compra, sabendo que o vidro é muito fácil de reciclar.


Embalagens complexas, sofisticadas e com camadas de múltiplos materiais são muito menos recicláveis que vidro, papel ou plástico simples. É ainda mais complicado quando se trata de reciclar eletrônicos, que incluem pilhas, metal laminado, plásticos e tratamentos químicos complexos.

A migração que a internet trouxe – dos materiais (átomos) para os bits – acenou com a visão do “novo escritório” sem papel. Afinal, bits não precisam ser reciclados e a possibilidade trabalhar de casa economiza tempo e meios de transporte. Estamos indo no caminho da conservação racional dos recursos naturais. Como reza o lema inscrito no brasão da USP, nossa maior universidade, “Sciencia Vinces”!

Mas – e sempre há esse “mas” – há o outro lado da questão. Se nossa interação é eletrônica, se usamos o banco sem papel, se compramos bens via comércio eletrônico, há porém o momento da metamorfose: os bits podem gerar, inocentemente e sem que o notemos, montanhas de átomos.

Reportagens recentes apontam que, por exemplo, na China o consumo de embalagens cresce 50% ao ano, tendo passado em 2015 de 20 bilhões de pacotes enviados pelo correio. Que um alemão gera em média mais de 200 quilos por ano em embalagens, sem qualquer sinal próximo de arrefecimento.

Pior, estamos em épocas de extinções não apenas materiais. O “bom senso”, por exemplo, vê-se seriamente ameaçado. Sinais alarmantes de tempos de individualismo, hedonismo, busca imediata de satisfação – com o interesse da criatura sobrepondo-se ao da espécie.

Claro que a ciência pode ajudar. Usando Internet das Coisas podemos tentar rastrear o lixo, melhorar o reaproveitamento.

E se há algo não negociável, nem mesmo no comércio eletrônico, é a viabilidade da espécie humana.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,se-correr-o-bicho-pega,10000054111
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https://conexaoplaneta.com.br/wp-content/uploads/2016/03/RaceforWater_PeterCharaf_Rodrigues.jpg



segunda-feira, 16 de maio de 2016

Átomos e Bits

A Internet abriu uma frente desafiadora em todas as áreas, incluída a economia. Ao passar do material para o incorpóreo, dos átomos para os bits, surgem formas de ignorar a “escassez” e criar a “abundância”, tanto na informação como na economia. Essa migração não é, entretanto, indolor. Gera grandes tensões entre os modelos tradicionais, que medem e se baseiam na substância concreta, finita e cara, e as transações imateriais, que usam bits sem peso e com fácil e quase infinita replicabilidade.

Não é um paradoxo recente. Em março de 1994, John Perry Barlow, um dos fundadores da EFF (Electronic Frontier Foundation) publicou o instigante texto Vendendo Vinho sem Garrafas, em que trata da nova “economia das ideias”. Usou na abertura uma citação de 1813 em que Thomas Jefferson, numa antevisão de mais de 200 anos, diz “quem recebe uma ideia minha, a recebe sem me tirar nada. As ideias devem fluir livremente no mundo, para a educação e melhoria do homem. E assim como a chama de uma vela acende outras sem diminuir a própria luz... A luz não é passível de confinamento ou de apropriação exclusiva por um indivíduo”. As ideias na Internet, independentemente de sua qualidade ou veracidade, circulam livremente, a baixo custo e transmudadas em bits.

Na mesma linha, em 1995, Nicholas Negroponte, do MediaLab (MIT), publicou Being Digital, livro que trata do futuro das tecnologias digitais, ressaltando que a migração da matéria (átomos) para o digital (bits) teria um enorme impacto, remodelando a economia, mudando drasticamente o centro do poder e afetando nossas interações sociais.

Modelos tradicionais são questionados e substituídos pela Internet. A seleção quase darwiniana que se opera na rede decidirá quem soube se adaptar ao novo ambiente e quem, na ânsia de preservar seu nicho tradicional, estará fadado à futura insignificância, ou mesmo à extinção. É uma mudança drástica e cruel, cujos contornos estão longe de serem definidos ou mapeados.

Átomos ocupam lugar no espaço, pertencem à geografia e, portanto, conhecem e podem ser afetados por fronteiras físicas. Bits, como as ideias, ignoram esses limites. Seguindo o raciocínio de Barlow, é fácil controlar, proteger ou etiquetar garrafas, mas nosso “vinho virtual”, em bits e sem recipientes que o contenham, escapa entre os dedos.

Quando discutimos processos na rede, como o de replicação de conteúdos ou o de imposição de limites em volume para conexões fixas à Internet, nos defrontamos com argumentos que se aplicariam ao debate baseado na “escassez” da matéria, na natureza dos átomos, na facilidade de seu controle. Um viés que ignora que agora estamos falando de bits e de imaterialidade.

Barlow enuncia três postulados provocativos, aos quais vale a pena dedicar mais atenção e que se relacionam com o trabalho de Claude Shannon, o pai da teoria da informação nascido há cem anos. Propõe Barlow que informação é uma atividade, que informação é uma relação e... que informação é uma nova forma de vida. Afinal, não é isso que vemos acontecer hoje, o tempo todo, na Internet?

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,atomos-e-bits,10000051405
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O presidente Luiz Inacio Lula da Silva recebe nesta sexta-feira um dos primeiros exemplares do laptop de US$ 100 que começou a ser fabricado em Taiwan. O micro foi entregue a Lula por Nicholas Negroponte, fundador do Media Lab, do MIT e fundador do projeto que usar estes micros portáteis para a inclusão digital em países em desenvolvimento. E/d: Lula, Negroponte, David Cavallo, representande da empresa na América do Sul, e Rodrigo Lara Mesquita, da Radium Systems, empresa envolvida no projeto. 24/11/2006 - Foto: HÉLVIO ROMERO/AGÊNCIA ESTADO/AE

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Senhas e Sanhas



 É moda falar sobre novas formas de identificação positiva. As ondas que o cérebro gera quando pensamos em algo é uma “impressão cerebral” que, devidamente recolhida, pode se mostrar mais segura que a “digital” em provar que somos nós mesmos. Dizem também que é tão seguro quanto um “abre-te Sésamo” moderno usarmos o desenho da íris, o timbre da voz, o rosto, ou o DNA, e que as velhas senhas estão obsoletas. Estaremos melhor e mais seguros com o uso de nossos parâmetros pessoais? Para mim a resposta é “depende...”.

Qual o fim a que se destina essa chave pessoal? Há ao menos dois objetivos, que estão longe de serem iguais. O primeiro é a necessidade de uma identificação positiva em atos que praticamos. Entende-se facilmente que o processo eleitoral queira garantias sobre a identidade do eleitor e, para isso, resolva que é mais seguro retroceder à época anterior às carteiras de identidade e assinaturas, optando pelo processo algo primitivo de usar a impressão digital.

Com a tecnologia que temos hoje é bem simples garantir, a partir do relevo da pele digital, identificação rápida e segura. Da mesma forma, em transações bancárias ou comerciais, em declarações de imposto de renda e quetais, o Estado quer certeza sobre nossa identidade.

E quando usamos redes sociais, correio eletrônico, navegação pela rede, enfim, em nossas interações pessoais? Claro que aqui queremos proteger a privacidade. Não é caso de provar a terceiros nossa “identidade”, mas sim garantir sigilo em tópicos a que apenas nós mesmos deveríamos ter acesso. Isso era tradicionalmente feito com o uso de senhas. Devemos continuar com elas, ou “evoluir” e usar nossos dados de biometria?

Elucubremos: um dado biométrico é certamente pessoal. Mas será ele “privado”, no sentido de que possa ser mantido em segredo? Ora, as impressões digitais estão em inúmeros cadastros, inclusive o eleitoral, além, claro, dos copos de cerveja usados; a íris é visível em fotos; a voz grava-se com fidelidade, o DNA está num simples fio de cabelo perdido. Pior que isso, nada impede que alguém nos force (conscientemente ou não) a colocar o dedo num sensor, a olhar para uma câmera ou falar num microfone e... eis aí obtida a nossa “identificação pessoal positiva”.

A senha, porém, mora em uma casa talvez ainda inexpugnável: nossa “cachola”... Claro que há meios, especialmente usando “big data”, que podem dar dicas de quais seriam nossas escolhas prováveis de senha. Com capacidade de processamento, um ataque de “força bruta” testando milhões de alternativas, pode quebrar senhas fracas. Pior, se alguém precisa vitalmente saber nossa senha pode recorrer a processos dolorosos para que a revelemos, mas, claro, essa é uma possibilidade remota e terrível, não um prosaico caso de furtos de dados.

Em suma, uma senha bem escolhida, malgrado todos os contra-argumentos, deficiências e senões, continua a ser uma ótima (e secreta) proteção à nossa privacidade. Não misturemos a proteção de dados pessoais com a necessidade, que há em casos reais, de identificação positiva. São objetivos bem diferentes.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,senhas-e-sanhas,10000048637
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