terça-feira, 23 de novembro de 2021

O Poder de um Nome

A discussão sobre inteligência artificial ganhou os holofotes da atenção geral, internacionalmente. O que contribui para essa ascenção irresistível é um conjunto de fatores, que vão, desde o poder da expressão “IA” em si, à sustentada e crescente expansão na capacidade de processamento e armazenamento que pode hoje ser aplicada sobre a imensa quantidade de informações à disposição dos algoritmos. E há que se considerar também a particular concentração dessas características nas mãos de um punhado de empresas, as chamadas “big-techs”. 

A oferta de capacidade de processamento e armazenamento distribuídos no que lembra a imaterialidade de nuvens, deslocou o poder de computação, que antes poderia estar situado nas instituições que dela necessitam, para estruturas que, apesar de parecerem descentralizadas e neutras, são controladas por poucos fornecedores, num ciclo bem definido de expansão. Afinal, ao concentrar-se o poder de computação exatamente onde ele já existe, realimenta-se seu crescimento de forma rápida e sem limites Para adicionar sinergia ao cenário, basta lembrar que também é lá que estão os enormes repositórios de dados, provenientes dos usuários de seus serviços de plataformas e redes sociais. A “faca e o queijo”.

Além dos dados e do processamento, some-se o uso da capacidade coletiva da comunidade em treinar, voluntaria ou involuntariamente, os produtos gerados. Nós mesmos treinamos as aplicações que serão usadas para nos proverem mais informações criteriosamente escolhidas, que aumentem nosso grau de aderência e de permanência no sistema. 

Finalmente, é importante que a escolha de um nome seja catalizadora. “Inteligência artificial” ressoa bem, é nome forte, tem mais de 70 anos de existência e um “apelo tecnológico” irresistível. IA passou por épocas em que era foco de muita pesquisa, e por períodos em que caiu em semi-esquecimento – os “invernos da IA”. Claro que, oportunisticamente, além da real e poderosa IA pode-se embrulhar no mesmo saco o que lá couber, especialmente se for algo que, por necessitar de muito processamento, pareça inatingível aos usuários comuns. Jorge Luiz Borges em “o Golem” já havia descrito o poder em um nome: “o nome é o arquétipo da coisa; nas letras de ‘rosa’ está a rosa; e todo o Nilo na palavra ‘Nilo’”. 

 IA é o tópico da vez e não podemos perdê-lo de vista, até para tentarmos minimizar os riscos que pode estar embutidos em IA. Discute-se hoje na Unesco um texto que recomendaria procedimentos éticos relacionados ao desenvolvimento e disseminação da IA. O documento está em fase final de discussão para ser aceito pelos países signatários. E por aqui também estamos debatendo estratégias. O importante é que essa discussão envolva os segmentos da sociedade, que certamente IA já afeta, e muito, indistintamente a todos. 

 === Sobre a citação de Jorge Luiz Borges, em "o Golem": 
https://www.poemas-del-alma.com/jorge-luis-borges-el-golem.htm

" Si (como afirma el griego en el Cratilo)
 el nombre es arquetipo de la cosa
 en las letras de 'rosa' está la rosa
 y todo el Nilo en la palabra 'Nilo'." ===

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Novos tempos

Analisar os impactos da Internet no que fazemos em nosso dia-a-dia já é um objetivo bastante ousado e quase inatingível, mas avaliar como ela tem afetado nosso comportamento social é ainda mais desafiador. Ressalvas importantes: há que se distinguir entre a Internet em si: uma infraestrutura aberta, sem limites físicos, que chama todos a uma conexão e provê um acesso absolutamente ilimitado a informações de todo o tipo, das muito úteis, às eventualmente nocivas e propositadamente enganosas, passando um vasto elenco de futilidades; das construções que crescem sobre ela. Essas construções que também respondem pelo nome de “plataformas”, valem-se do princípio de “livre inovação” - que deve ser preservado! – e podem evoluir para empresas com grande concentração de poder econômico e social, escorado especialmente na forte fidelização de seus usuários. Essa estratégia de intenso engajamento é operacionalizada pela aquisição de vasto conhecimento dos dados e características dos usuários. É a chamada “economia da atenção”, quando manter o usuário constantemente conectado, e sempre usando os serviços da plataforma, traz mais retorno econômico a ela.

A forma de atenuar esse controle poderia residir numa conscientização nossa, associada a leis de proteção de nossos dados, como a que temos no Brasil. Mas é fato que o “canto da sereia” do conforto, facilidade e prazer emocional que os usuários recebem, reduz qualquer postura mais crítica em relação ao “pacto” feito. A excitação de poder participar, com voz, em discussões de qualquer tema é tão contagiante que pensamento crítico ficará “pra depois”… Assim, das alternativas que restam para se atenuar essa dominância, ouve-se cada vez mais frequentemente as que provem de regimes fortes. Aliás, dos mesmos regimes que muitas vezes praticam controle estreito e uma coleta desmedida de dados de seus cidadãos, mas que não impede de coibir o mesmo quando se tratar de atores privados. Como achar soluções de equilíbrio, que possam ser implementadas com algum sucesso em prazos razoáveis? O risco de ir “da frigideira ao fogo” aqui é grande.

O caráter livre e aberto da rede pode ter afetado o comportamento em comunidade: a definição de “tolerância” tem sendo revisitada. Como exemplo refiz, via buscadores, vagas lembranças reencontrando algumas das músicas irreverentes que despreocupadamente se cantavam na universidade... Achá-las é ainda possível, mas seria admissível cantá-las?. O comportamento petulante, amistoso/jocoso dos anos 70 hoje poderia ser rotulado de “inaceitável”, e como algo a ser segregado. Folheie-se A Serpente Encantadora, livro do Telmo Martino: é uma “janela no tempo” com crônicas da época do Jornal da Tarde. Telmo, além de mente afiada e de um texto culto e ágil, era dotado de uma língua ferina, venenosíssima, e tratava todos e tudo, poupando pouquíssimos. Seria Telmo ainda possível hoje, em plena “cultura do cancelamento”, ou seguimos empobrecendo a olhos vistos?

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Sobre China e as Big Techs:
https://www.theguardian.com/technology/2021/nov/03/techscape-china-jack-ma-regulation?mc_cid=c7d999a2d3&mc_eid=c3ed2a6583
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Sobre "A Serpente Encantadora", Telmo Martino