segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Salsichas e software aberto

Tive um ótimo professor de química no colegial, chamado Tertuliano. Certa feita, conversando sobre produtos orgânicos, ele fez a seguinte provocação: "digamos que vocês queiram comprar salsichas. Há salsichas a granel, amarradas por barbante e penduradas em ganchos nas feiras. E há salsichas em lata fechada. Qual dos dois tipos lhes parece mais seguro e saudável para o consumo?"

Claro que a resposta simples e imediata foi "as salsichas em lata, professor". Afinal elas não estão expostas ao tempo, às moscas, ao manuseio, e estão bem protegidas pela lata. O professor, entretanto, fez uma observação importante e curiosa: as salsichas a granel estão expostas a tudo e todos. Precisam ser "construídas" levando em conta que devem resistir à sujeira e aos ataques usuais dos insetos. Têm casca grossa e podem ser lavadas várias vezes antes do uso. Já as que estão nas latas dependem da embalagem para sua proteção. Fora da lata são, por si, frágeis e deterioráveis. E, pior, se a lata tiver um defeito que tenha afetado seu revestimento ou permitido a multiplicação interna de bactérias, o risco é grande e invisível!

Voltei a pensar nisso quando, há muitos anos, alguém declarou peremptoriamente que para ter aplicações seguras devemos optar por programas fechados, cujo código não se divulga, porque assim estão a salvo dos hackers. Ora, isso não leva em conta as sábias ponderações do Prof. Tertuliano... Se um software é aberto e suas entranhas visíveis, tanto os bem intencionados como ou mal intencionados (as "moscas") tem o mesmo acesso à sua estrutura. O consumidor pode ter certeza de que tanto as virtudes como os defeitos estão ambos expostos.

Porém, se falamos de software fechado, passa a ser um "ponto de fé" acreditar ou não em sua resistência inata a ataques. Mais que isso, nada nos garante de que ele não se propõe a ir além do que está descrito em seu manual e, eventualmente, comportar-se de forma eticamente falha ou criminosa.

Vejamos um exemplo prático: é pacífico hoje que para termos alguma segurança em nosso computador pessoal e evitarmos contaminações e ataques precisamos de um "antivírus". Mas (e o diabo sempre mora nos detalhes) já paramos para pensar que poderes esse tipo de programa tem em relação ao nosso ambiente?

Ele se comunica com o exterior. Recebe de fora atualizações, novas versões, novas ordens. Não é, portanto, estanque. Por outro lado, é um aplicativo que tem acesso a todos os dados que estão em nosso computador. Que garantias temos de que esse programa tão íntimo nosso, mais que membro da família, não repassará indevidamente dados para fora? Bem, não devemos levar isso a um extremo paranoico, mas cautela (e caldo de galinha) nunca fizeram mal a ninguém.

A moral da história é que se temos dúvida sobre a segurança de um aplicativo, o fato de ele ser de código aberto permitirá (ao menos em tese) seu exame completo e profundo e até o conserto de eventuais falhas.

Quanto mais transparente e aberto um código, mais olhos o examinam e, parafraseando Eric Raymond (A Catedral e o Bazar), "com um número suficiente de olhos, todas as falhas serão óbvias".

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

As heresias

G K. Chesterton, jornalista e escritor inglês, em 1905 definia - certamente de forma provocativa - "herético" como "um homem cuja visão das coisas tem a ousadia de diferir da minha". No ótimo documentário sobre o Paulo Vanzolini, Um Homem de Moral, ouve-se dele: "do povo, de cada um, pessoalmente, eu não gosto, mas do povo em geral eu gosto muito!".

A internet, reflexo como qualquer estrato da sociedade humana, é povoada de indivíduos nobres e também de vilões, dos que são desprendidos e altruístas e, também, dos que caluniam, cometem fraudes e crimes. Há indivíduos de todos os tipos na internet, e deles, certamente, podemos gostar ou não, mas não há como não gostar da rede em si.

E, para definir o que é esse "objeto" de que gostamos e entender do por quê, é necessário estabelecer as características da rede, até para preservá-las e defendê-las. É importante, ao mesmo tempo, lutar pela ortodoxia da internet e pela diversidade de seus heréticos participantes.

Em 24 de abril de 2014, após meses de trabalho coletivo que culminou em dois dias de reunião em São Paulo, cerca de mil participantes concordaram em gerar um conjunto de dois documentos fundamentais para a proteção e evolução da internet: uma declaração de princípios e o que discute a evolução do ecossistema de sua governança.

A NETmundial foi, mal comparando, um primeiro "concílio" da internet, onde se buscou identificar as características e os conceitos da rede. Da mesma forma com que foi fundamental para o cristianismo o trabalho basilar, estruturante e divulgador dos primeiros apóstolos e dos concílios que definiram o seu cânone, a NETmundial pretendeu, humildemente, ter contribuído para que a internet não perca o que a fez grande, onipresente e valiosa. Que tenhamos claro o que se pretende defender e preservar.

Esse conjunto de participantes, que veio de mais de 100 países e representou de forma equilibrada as comunidades interessadas na rede, gerou uma estruturação dos princípios a ser defendidos para que a internet sobreviva da forma com que foi concebida. Neles podemos ler, por exemplo, que "a internet deve continuar a ser uma rede de redes globalmente coerente, interconectada, estável, não fragmentada, escalável e acessível, baseada em um conjunto comum de identificadores únicos...", que "...como um recurso global universal a internet deve ser estável, resistente, segura e confiável..." e que "a internet deve ser preservada como um ambiente fértil e inovador baseado em uma arquitetura de sistema aberto, com colaboração voluntária, gestão coletiva e participação, apoiando a natureza ponta a ponta da internet aberta, e buscando resolver problemas técnicos de uma maneira consistente, aberta e colaborativa". Finalmente, que "... a capacidade de inovar e criar está no âmago do notável crescimento da internet e trouxe grande valor para a sociedade global. A governança da internet deve continuar a permitir a inovação livre de barreiras."

Considerando esse o primeiro esfoço bem-sucedido para acordarem-se princípios que devem ser protegidos por todos, pode-se lê-lo como uma "boa nova" para os adeptos da rede. Um "evangelho" gerado no "concílio" que foi a reunião da NETmundial. E de São Paulo surgiu uma carta aos habitantes do novo mundo da rede, estabelecendo aspirações e desejos.

Nessa analogia de quase dois mil anos, é claro que "heresias" surgem e surgirão. Há os que gostariam de ver a internet com gestão centralizada e concentrada em Genebra, há os que veem nela apenas um ambiente de negócios fabulosos, há os que a veem como ferramenta de aglutinação de partidários, há os que a veem como uma experimentação fundamentalmente técnica. Um cânone torna mais claro para os defensores da rede o que pode ser feito para expurgá-la de heresias que buscam sua destruição.