terça-feira, 25 de julho de 2017

Os novos intermediários

Poderíamos considerar Minority Report, um filme de Stanley Kubrick em 2002, como um precursor da discussão sobre algoritmos automáticos e seus riscos. No filme, mais ou menos como um Cesar Lombroso redivivo e usando Inteligência Artificial, tres mutantes humanos, flutuando num aquário, fazem-se de pitonisas para as ações futuras dos habitantes, pré-condenando alguns antes mesmo de que um crime tenha sido cometido. Um cenário aterrador, mas de “ficção”...

Leu-se recentemente que uma rede social está desenvolvendo algoritmos que implementam filtros de conteúdo com o propósito de prevenir, entre outras grosserias e comportamentos inadequados, “linguagem de ódio e atitudes discriminatórias”. Em um outro serviço na rede - um buscador indexador de conteúdos -, já há previsão de atendimento a solicitações de “remoção de resultados de busca” partindo de usuários que se sentem prejudicados pela possibilidade de acesso a algum conteúdo que, mesmo existindo na rede, seja polêmico ou incorreto em sua visão. Não é o funcionamento que se esperaria de uma máquina “automática e burra”, cuja função seria, apenas, de executar amplamente sua função mecânica sobre uma base enorme de informações, sem semântica ou exame de mérito que exija decisões próprias.

Pessoalmente tenho sérias reservas a esse tipo de “remédio”. É frequente e natural sentir-se a necessidade de suporte na decantação da pletora de informações que recebemos, ou em eventual bloqueio de conteúdos que nos sejam ofensivos, mas deveríamos evitar a tentação de erigir intermediários e seus mecanismos em censores ou ajudantes de nosso propósito pessoal.

Claro que há inúmeras situações em que, ao se jogar na rede afirmações pejorativas ou inverídicas, rompe-se não apenas a barreira da boa educação, mas até a de licitude. Mesmo assim, ao invés de redelegar aos intermediários a busca por algoritmos que eliminem esse comportamento, deveríamos procurar formas de onerar o real emissor, reponsável pelo conteúdo inadequado. Ou, de outra forma, tomar a nosso encargo a implementação das ferramentas de bloqueio e filtragem locais e pessoais que considerarmos adequadas, como muitos aplicativos já permitem. Repassar genericamente essa responsabilidade a terceiros pode representar abrir mão de nosso direito de acesso total e livre à informação. Certamente essa rede “depurada por outrem” não preservará a neutralidade a que se almeja. E a pressa impensada na busca de alívio pode gerar monstros ainda maiores, e de que não nos livraremos facilmente: um leviatã digital a controlar nosso dia a dia, soberana e perenemente.

Colabora para essa situação o aumento exponencial e contínuo da capacidade de processamento eletrônico e da transmissão e armazenagem de dados que, se por um lado criam um ferramental muito poderoso, por outro prenunciam um cenário obscuro de controle e de censura. Dar esse poder a um intermediário, excedendo sua missão específica de conectar interessados e informações geradas nas pontas, mesmo que revestido da melhor das intenções, pode acabar muito mal.

É mais uma caixa de Pandora que, uma vez aberta, liberará os miasmas que não conseguiremos recapturar. Caso típico em que a emenda pode sair muito pior que o soneto.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Sem Intermediários?

Antes da Internet, informação era algo a ser buscado naquelas poucas fontes, tradicionais e da escolha do usuário, como era o caso dos jornais. Essa missão é muito bem descrita nas palavras de Júlio de Mesquita Filho, sobre o “papel do jornal”: "Não procuro dirigir nem criar a opinião pública no meu Estado. Ao contrário, procuro apenas sondar com cautela as opiniões em que o Estado se divide e deixo-me ir, confiado e tranquilo, na corrente daquela que me parece seguir o rumo mais certo".

Muita água rolou debaixo da ponte desde que a Internet tornou-se personagem central em nosso dia a dia. E tentamos mapear suas características, às vezes com acerto, outras vezes errando o ponto. Certamente a rede representa uma ruptura, de amplitude, alcance e impacto ainda não dimensionáveis, e seu efeito no tecido social é igualmente assustador, podendo ser até mais profundo que seu impacto econômico. Mas há aspectos em que as coisas podem não ter mudado tanto, ou da forma como imaginávamos e apregoávamos. Um desses casos, penso, é a “desintermediação” que a rede teria trazido: hoje geradores e consumidores de qualquer coisa, desde informação até bicicletas usadas, passando por livros, mantimentos e serviços, poderiam se comunicar diretamente, sem um mediador. Um cenário que apontava para o eventual desaparecimento de muitos tipos de intermédiarios, o que de fato acontece, mas não de forma absoluta e com sutilizas não previstas nas análises em geral.

O fato é que não somos onipotentes ou oniscientes, e temos limites em absorver dados e em examinar sua coerência e precisão. Em muitos casos, não conseguimos prescindir de curadoria naquilo que consumimos, nem queremos perder o conforto que esse suporte nos trazia. Isso que pode ser óbvio no caso da saúde - ninguém em sã consciência abriria mão da consulta a um médico em troca dos palpites das redes sociais - pode ser menos óbvio no caso da obtenção de informação. Nesta fase de complexa transição em que vivemos, quando há abundância de microfones para todas as bocas, e os dedos são muito rápidos em replicar qualquer fato bombástico sem alguma ponderação anterior, não é de se estranhar que se surja a necessidade, às vezes inconsciente, de novos intermediários. Eles aliviariam nossa carga agindo como “filtros” e avalistas do que recebemos e restaurando algum conforto...

O “papel do jornal”, assim, não desapareceria com o “jornal de papel”, mas iria transmutar-se na Internet. Hoje recebemos “sugestões de leitura”, seguimos “youtubers” e canais virtuais, participamos de debates muitas vezes orientados para objetivos não muito claros. O risco é que esse novo e enorme conjunto de intermediários é muito mais fluido e, eventualmente, menos coerente ou fiel aos fatos. Claro que sempre haverá viés numa história que nos contam mas, no passado, esse viés era mais conhecido e mapeado do que é hoje. E o poder do intermediário pode ter se tornado subrepticiamente maior do que era. Longe de escaparmos da intermediação em nossas interações, corremos o risco de ser, não apenas mais tutelados, mas modulados pelos intermediários na rede, especialmente os que procuram dominar o cenário global atual, bem distantes da missão definida por Júlio de Mesquita Filho