terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

É Barlow!

Em 7 de fevereiro perdemos John Perry Barlow, um ferrenho defensor dos conceitos fundadores da internet. Era véspera do 22.o aniversário de sua Declaração da Independência do Ciberespaço produzida em 1996, Davos, Suiça, que descreve uma internet ideal, libertária e aberta. Foi também uma reação à emenda da lei de telecomunicações norte-americana, que propunha censura a expressões ofensivas.

Barlow tinha uma vasta gama de interesses, da academia, incluindo passagem por Harvard à contracultura. Definia-se com um “velho hippie”, foi rancheiro, membro e letrista do Grateful Dead, fundador da EFF (Electronic Frontier Foundation), amante de gatos (perdeu seu gato Buck em 2014), ensaista e escritor. Visitou o Brasil algumas vezes.

Do que escreveu, citaria The Economy of Ideas, de 1994. É uma instigante obra que me permite uma historieta: Saí da Fapesp em 1996 e mudei-me para a Agência Estado, cujo time ímpar e foco amplo e atrativo incluia participação em eventos semestrais no Media Lab do MIT, então sob a batuta do Nicholas Negroponte. Num desses eventos (1998?) o tema era “ferramentas de proteção à reprodução dos textos jornalísticos” e internet era o foco, pois era lá que os textos começavam a ser copiados à larga. Durante dois dias ouvimos pesquisadores do Media Lab propondo formas para “marcar” os textos, prevenindo ou identificando cópias indevidas. Sugeriam-se desde sutis alterações no espaçamento de caracteres, adição de assinaturas digitais, até uso de “marcas d´água” invisíveis. Ao final, o contraponto: uma palestra do Barlow. Com botas e cinturão de um rancheiro do Wyoming, e a postura de ativista da contracultura dos anos 70, ele nos daria sua visão do tema. “Vocês estão aqui discutindo detalhes desimportantes. O que cada um de nós produz pouco tem de próprio e muito deve ao lido e aprendido. E, com o fim do suporte físico, sem capas, embalagens, garrafas, a intenção de ´dificultar reproduções da obra´ está fadada à impossibilidade. Tudo serão bits indistinguíveis; não há mais onde colocar etiquetas. Isso não significa que não devamos remunerar, e bem, o autor. O suporte e o intermediário, uma entidade recente, vão sumir. Vejam, quando Bach compunha uma cantata, torcia para que fosse bem recebida e bastante reproduzida, porque isso significaria uma nova encomenda de música, garantindo o seu sustento e de sua numerosa prole. Penso que, uma vez publicada a obra, ela passa a ser de todos. O que eu acabo de dizer aqui, passa a ser de vocês e, por favor, disseminem isso livremente e fartamente. Se essa minha apresentação foi bem avaliada, receberei novo convite para outra palestra e, lógico... cobrarei o dobro!”.

Voltando à Declaração, em tempos de “local de fala” e de hipersensibilidade geral, vale recordar um trecho: “Estamos criando um mundo que todos possam entrar sem preconceitos ou privilégios de raça, poder econômico, força militar ou local de nascimento. Estamos criando um mundo em que qualquer um, de qualquer lugar, possa expressar suas ideias, por mais singulares que sejam, sem medo de ser forçado ao silêncio ou à conformidade. <...> Criaremos a civilização da Mente no Ciberespaço, mais justa e humana do que a que temos hoje”... Oxalá o espírito da internet contido nas palavras de Barlow sobreviva.



A Declaração:
https://www.eff.org/cyberspace-independence

Buck, o gato, e o "procura-se" que Barlow colocou no "twitter"

John Perry Barlow, durante discurso em Nova York em 2012


http://link.estadao.com.br/noticias/geral,e-barlow,70002195832


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Duas de papagaio

Há um tempo li algo que me gerou sensações diversas e misturadas. Estava em jornal reputado (.. e repasso sem confirmação adicional definitiva) que na Inglaterra uma mulher recebeu inexplicavelmente compras que ela não teria feito: alguém, passando-se por ela, teria comprado “caixas para presente”, que foram devidamente entregues pela loja e cobradas.

A pesquisa do ocorrido levou à constatação de que na compra, feita via internet, foi usado um assistente de voz da própria companhia vendedora. Nenhum dos familiares da mulher teria sido o gerador do pedido e, dado que a voz de quem o fez o era a da senhora em questão, restou uma explicação bizarra: foi seu papagaio cinza do Congo, espécie muito faladora e esperta, que imitava à perfeição a voz da dona. O tal papagaio teria ativado acidentalmente o assistente de voz e, do improvável diálogo, originou-se a ordem de compra.

O lado positivo óbvio são as facilidade que os assistentes artificiais caseiros podem adicionar ao nosso dia a dia, com os progressos da intelecção de voz. De negativo, além de constatar que um dado biométrico – a voz – foi erradamente identificado como sendo de uma pessoa, há a forma com que uma transação pode ser debitada, sem maiores considerações.

O outro caso, em linha aparentemente oposta: um amigo adquiriu um desses psitacídeos personagens de piadas. Perguntei-lhe se o papagaio era “ele” ou “ela”. Disse-me que o chama de “o”, mas apenas um teste de DNA resolveria: visualmente não se consegue identificar o sexo. Nós, os humanos, precisamos de auxílio de alta tecnologia para saber se devemos nos referir à ave como “louro” ou “loura”. Já um papagaio comum, simples, saberá imediatamente se está diante de uma moçoila papagaia, ou de um mocinho, e sem fazer nenhum teste de DNA... Certamente há espaço aqui para obtermos ajuda com sistemas automatizados... Por outro lado, quando se trata de separar pintainhos que virarão galinhas dos que, futuros frangos, apenas enriquecerão nosso almoço, há humanos que conseguem distinguir, e com bastante eficiência. Para mim, é um mistério...

O caso do “papagaio comprador” lembrou-me da discussão sobre “notícias falsas”. O que li e repassei seria notícia falsa? Falsa ou verdadeira, pareceu-me interessante! “Se non è vero, è bem trovato”, diriam os italianos. Muitas vezes o que é verossímil ou agradável ao narrador (ou ao vendedor...) passa por verdade. É uma tendência humana, que a internet apenas potencializa.

Em 1819, John Keats, poeta romântico inglês, escreveu aos 23 anos o famoso poema Ode a uma Urna Grega, cujo belo fecho diz: “Beleza é verdade, verdade é beleza, eis tudo que sabemos, e tudo o que se precisa saber!”. Keats, assim, respondeu esteticamente à terrível e eterna questão “afinal, o que é a verdade?”: se algo é belo (nos agrada, ou convém), é verdadeiro... Não é a minha forma de pensar: como engenheiro, gosto de fatos. Há que se reconhecer a atração epicurista e romântica que a beleza tem, de vestir a versão com a roupa da verdade. Afinal estamos em tempos pós-modernos, e o “eu sinto” será mais valorizado do que “os fatos mostram”...

Ah, em tempo, Keats morreu com 25 anos. Pelos padrões atualmente em discussão, estaria ainda no fim da adolescência...



https://gavetadoivo.wordpress.com/2014/05/09/ode-a-uma-urna-grega-de-john-keats/



http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=399909&partId=1