terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Dedos ágeis, neurônios irritadiços

A Declaração de Independência do Ciberespaço, escrita por John Perry Barlow, cofundador da Electronic Frontier Foundation, completou 20 anos. É, talvez, sonhadora e romântica, mas expressa alguns dos sentimentos mais preciosos e entranhados da internet – o sonho em que estamos imersos, sabe-se lá por quanto tempo antes que se desmanche – ou pior, que se transforme em pesadelo (bate na madeira: arreda azar!).

Parece que dedos e miolos distanciaram-se. Tudo hoje é rápido, para consumo instantâneo. Pensar pode fazer perder o momento e a vantagem de ser o primeiro a escrever. Atiramos antes de perguntar, ou mesmo entender – afinal se errarmos, sempre poderemos pedir desculpas depois. Ou nem sempre…

Por outro lado, afirmamos estar no rumo da tolerância e harmonia. A mim parecem propósitos divergentes. Espero estar errado e ficaria feliz em ser desmentido, mas me é difícil aceitar: se queremos convívio, devemos viver com os nossos defeitos e com os dos outros, sem reagir visceralmente.


Lemas como “tolerância zero com a intolerância” são uma contraditórios. É como dizer “guerra à guerra”. A intolerância, um grande mal, necessita ser claramente combatida com… tolerância. Gandhi dizia que “olho por olho leva a uma terra de cegos”. Toleremos não o erro em si, mas ao humano que erra e busquemos trazê-lo de volta à educação e bom senso.

De um lado há uma ampla janela para expressar ideias e, de outro, um exacerbar de sensibilidades. Qualquer deslize, mesmo não proposital, pode gerar uma reação furibunda, não só de quem se sentiu “ofendido” de alguma maneira, mas da legião de acólitos que, ao sentir o “cheiro de sangue”, juntam-se à mole dos justiceiros. Formam-se grupos centrados não em ideias, mas em dogmas. E como é fácil juntar multidões nas redes sociais…

A primeira emenda da constituição norte-americana emoldura a liberdade de expressão. Claro que essa liberdade não inclui gritar “fogo” num cinema lotado, apenas para ver o que acontece. Afora situações patológicas como essa, porém, as ideias devem ser livres. Diz Barlow: “Estamos criando um mundo onde qualquer pessoa, em qualquer lugar, poderá expressar suas ideias e crenças não importando o quão estranhas sejam, sem medo de ser coagido ao silêncio ou conformidade”. Será mesmo?

Millôr Fernandes descreveu no prefácio de “Um elefante no caos” algo que, esperemos, não seja profético: “Estávamos no último, ou num dos últimos redutos do ser humano. Depois disso viria o Fim, não, como tantos pensavam, com um estrondo, mas com um soluço. A densa nuvem desceria não, como tantos pensavam, feita de moléculas radioativas, mas da grosseria de todos os dias, acumulada, aumentada, transmitida, potenciada. O homem se amesquinharia, vítima da mesquinharia de seu próprio irmão, cada dia menos atento a um gesto de gentileza, a um raio de beleza, a um olhar de amor desinteressado, a um instante de colóquio gratuito, a um momento de paz, a uma palavra dita com a beleza da precisa propriedade. E então tudo começou a ficar densamente escuro…

E o espírito não sobrenadou.”

Lutemos para que sobrenade!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Pelas bordas

Há consenso em que neutralidade na rede implica em não cercear origens e destinos na internet mas, quando eu mando algo ou tento acessar um site, como a rede acha o caminho? Afinal, a internet não tem GPS e não existe um Guia das Rotas Mundiais…

Vamos começar pelo princípio: em geral, para ir a algum lugar eu escrevo um “nome de domínio”. É como dar um nome de pessoa a quem se quer telefonar ou de uma rua para onde enviar uma encomenda. Não basta. Da mesma forma que no Brasil temos um CEP associado ao endereço para definir geograficamente para onde se quer ir, um “nome de domínio” deve ser traduzido para um número IP, que nos remeterá a uma região da internet. Os números IP estão associados a sub-redes que são partes dos “sistemas autônomos” (SA). A analogia (sempre imperfeita) com o correio seria: ao saber o CEP sei o Estado e região a que me refiro. Se conseguir chegar até lá, o correio local cuidará do resto…

A internet é constituída de milhares de sub-redes, os SA, que possuem administração própria e política interna de roteamento. Assim, se meu pacote chegar à fronteira do SA pretendido, o encaminhamento passa a ser responsabilidade da sub-rede. A pergunta que permanece: como a internet saberia direcionar o pacote até o SA de destino?

Cada SA gera, dinamicamente, a partir das informações que seus vizinhos repassam (os outros SA) uma tabela de caminhos na rede. Um protocolo específico, o BGP (Border Gateway Protocol) explica como se processa esse intercâmbio. O nome do protocolo revela a essência: trata-se da maneira que um SA repassará informações além de sua “borda”. É como aquela antiga conversa de vizinhos porta a porta. Outra analogia, menos anacrônica é com os sistemas que ajudam, hoje em dia, os motoristas a escolher as melhores rotas. A partir de informações de congestionamentos, eventos, distâncias e tempo, eles sugerem uma rota e uma previsão de duração para o percurso.

Tanto no caso da rede, quanto no caso do trânsito, há forte confiança na comunidade. Ambos funcionam porque os segmentos colaboram de forma positiva e honesta. Se alguém passasse a informar acidentes de trânsito inexistentes a ajuda que o sistema de trânsito nos dá poderia ser contaminada. Também na internet, se um sistema autônomo “enlouquecer” e passar a divulgar rotas irreais, durante algum tempo haverá uma “perturbação na força”, e as coisas ficarão momentaneamente confusas.

No Brasil, é o NIC.br quem fornece o número a cada um dos SA nacionais. Ele fornece também, preventivamente, um “telefone vermelho” que pode ser usado nos casos em que algo realmente anormal ocorra.

O que se espera de uma rede neutra é que as informações recebidas para roteamento sejam adicionadas àquelas localmente geradas e o conjunto seja passado à frente sem modificações ou “truques”, que privilegiem ou eliminem alguma rota em especial.

Como no trânsito, é possível escolher rotas mais rápidas ou menos esburacadas. O trajeto pode depender das condições do momento, mas não de alterações artificialmente embutidas no sistema, que prejudiquem terceiros.

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https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/pelas-bordas/
08/02/2016 | 08h00