terça-feira, 21 de agosto de 2018

Ordálios Digitais

A busca pela verdade é tão velha como o homem, e está longe de se encerrar. Há inúmeros exemplos de tentativas de definir o que seria sua essência e, convenhamos, pouco sucesso. Talvez seja mais fácil tentar definir o que seja mentira. Mentira não parece ser o oposto de verdade. Para Nietzsche “as convicções são mais inimigas da verdade do que as mentiras”. Mentira busca parecer verossímil para obter maior resultado.

Desde sempre houve disseminação de boatos e de mentiras visando a obtenção de alguma vantagem estratégica. A Internet elevou esse problema ao paroxismo. Nossa época foi batizada de “sociedade da informação”, mas talvez devesse chamar-se “sociedade do ruído”. Afinal, uma das medidas da qualidade acústica de um equipamento é a relação sinal/ruído que ele apresenta. Nos velhos amplificadores, conhecidos como de “alta fidelidade”, a relação sinal/ruído era muito elevada: havia imensamente mais sinal do que ruído. Qual seria a relação sinal/ruído da Internet? E tem ela aumentado ou diminuído?

Suponhamos que seja viável definir uma mentira. Como diminuir seus efeitos? Há alternativas: impedir que surja; detectá-la rapidamente e removê-la; tornar o receptor menos suscetível a ela. Como na Internet parece dificílimo impedir que a mentira brote em algum ponto da rede, a tendência pareceu ser a de trabalhar na rápida identificação e remoção.

Para que essa detecção seja neutra e sem viés, pressupõe-se que há uma verdade conhecida, à qual a mentira se contrapôs. E trabalha-se em desenvolver “verificadores de fatos” e “detectores de mentiras” digitais. Podem, sem dúvida, ser ferramentas úteis às quais os usuários podem lançar mão, caso queiram. Mas, se instituídas como “filtros antecipatórios”, oráculos infalíveis, os usuários terão apenas uma versão “higienizada” da rede, sob critérios invisíveis de “higienização”. A “convicção” imposta pode ser um inimigo ainda mais perigoso.

O passado nos mostra formas de “verificadores de verdade”, não digitais, mas automatizadas. Lavar a honra com um duelo, por exemplo, não é mais uma alternativa hoje. Outra “prova” antiga para decidir se alguém dizia a verdade, se era inocente, consistia em submetê-lo ao ordálio, uma prova cruel que deixa ao imponderável a decisão sobre o acusado. Andar sobre brasas vendo se queima ou não os pés, ser jogado num rio para testar se flutua ou afunda. 

Sobrou-nos ainda a expressão “pôr a mão no fogo” como mostra de confiança numa afirmação. Se eu ponho “minha mão no fogo” por algo e saio ileso, o fogo provou que eu estava dizendo a verdade. Na versão digital, não é mais o fogo, mas um programa que examinará a afirmação, decidindo sobre sua veracidade. Quem sabe teremos uma versão moderna da pitonisa, que nos diria o que nos reserva o futuro sem ter que recorrer a fumaças místicas, ao exame do voo de pássaros ou das vísceras de animais. Entretanto é exatamente a terceira opção acima, a que trata da evolução do receptor e que pode nos parecer longa e difícil, aquela aconselhada pelo oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”.

Submeter-nos a um ordálio moderno, entregar a decisão a uma “pítia digital” é desacreditar ou abdicar do aperfeiçoamento humano. Eu não colocaria minha mão no fogo pela exatidão e neutralidade do ordálio, seja ele o antigo, ou o digital...


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Ordálio da água fervente:




terça-feira, 7 de agosto de 2018

A Memória do Mundo

A Memória do Mundo é o título de um pequeno conto fantástico escrito em 1968 por Ítalo Calvino. É contado em primeira pessoa pelo diretor de um centro de documentação que, ao se aposentar, pretende passar a continuação da tarefa a seu sucessor natural – Muller, um especialista em agregação de dados. Há detalhes importantes a passar a Muller: o verdadeiro objetivo do trabalho volta-se ao iminente fim do mundo. “Trabalhamos tendo em vista a extinção da vida sobre a Terra, em breve. Para que tudo não tenha sido inútil, para transmitir aos outros, sabe-se lá quem seriam, aquilo que sabemos … e você consegue colocar todo o Museu Britânico numa castanha”. Parece algo ambicioso mas, como pontua Polônio em Hamlet, “há método em sua loucura”. 

Em 1996, usei pela primeira vez um buscador automático geral na rede: o Altavista. Era absolutamente espantoso que, em apenas poucos dias, um conteúdo, de qualquer lugar da então nascente Web, fosse mapeado e catalogado pelo Altavista. Esses “poucos dias” tornaram-se horas e, mesmo com a Web imensamente maior, tudo continua a ser indexado pelas ferramentas de hoje. Eis a memória do mundo ao alcance da mão.

Voltando ao texto, o que parecia um trabalho bem definido tinha seus percalços e suas tentações. Ao fim e ao cabo, só existirá o que estiver armazenado na memória. O que ficar de fora, é como se nunca houvera existido. O processo definirá, em suma, até o passado do mundo. Mas, mesmo que se guarde o máximo possível, sobre homens, animais, conversas, imagens, há limites. 

Caberá ao diretor o poder discricionário: “...o posto para o qual você é qualificado lhe dá esse poder, o de acrescentar um ‘toque pessoal’ à memória do mundo”, e é difícil resistir a essa tentação. O diretor esclarece ainda alguns “conceitos”: as obviedades, além de pouco atraentes ao leitor, nem sempre representam a verdade. O misterioso e o inusitado são muito mais provocativos. Aconselha: “com as intervenções que você fará – com extrema delicadeza, claro – serão disseminados também juízos, reticências, e... até mentiras. Veja, apenas na aparência a mentira exclui a verdade. Em muitos casos, por exemplo num consultório psicanalítico, a mentira pode ser até melhor indício que a própria verdade”

O conto vai deslizando em direção ao abismo, até que o diretor faz uma confissão. Todos o sabem lamentoso viúvo com a perda de Angela, amada esposa. O que poucos sabem é que seu casamento não fora um mar de rosas. Longe disso. Angela, a “esposa ideal”, era uma imagem carinhosamente montada e que ele preservou nos arquivos. A distância entre a Angela-informação e a Angela-real tornou-se tão grande que a única saída para não colocar em risco sua imagem ideal foi assassiná-la. No último parágrafo chega a tremenda conclusão: “se na memória ideal do mundo não há nada a corrigir, o que nos resta é corrigir a realidade, onde ela não concorda com a memória do mundo.”

Estamos ficando cada vez mais próximos de poder “corrigir a realidade”. Hoje. com as redes, todos somos coautores de nossa “memória”, que pode ou não aderir à realidade. Será que nos veremos no papel que o diretor atribuiu a Muller? “O poder corrompe” e, como complementava Millôr, “o poder absoluto corrompe melhor”. 

Os portugueses também já sabiam: “Quer conhecer o vilão? Dá-lhe o bastão.”


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Ítalo Calvino