segunda-feira, 21 de março de 2016

Pra cá de Marrakesh

Pra cá de Marrakesh

Em 1º de janeiro de 1983, a Arpanet passava a usar apenas o TCP/IP, novo conjunto de protocolos e o “I” do IP, Internet Protocol, passava a se confundir com o nome da própria rede. RFC (Request for Comments), protocolos da Internet e seus parâmetros técnicos continuariam documentados pelo time de Jonathan (Jon) Postel, do Instituto de Ciências da Informação (ISI, na sigla em inglês), da Universidade do Sul da Califórnia. Nas mãos de Postel foi também entregue a função de distribuir blocos de números IP e delegar nomes de domínios numa hierarquia de nomes mnemônicos dos equipamentos que participavam de rede. O nível mais alto da hierarquia de nomes do DNS (Domain Name System), está reunida no que se chamou “raiz de nomes” da rede, onde “moram” os “sobrenomes”, como .com, .net, .ar, .br, .info e outros. O pequeno time de Postel, de dois ou três pesquisadores, ficou conhecido como IANA (Internet Assigned Numbers Authority). De 1983 para 1998 muita coisa mudou.

A Internet extravasou da comunidade acadêmica e sua importância comercial tornou-se óbvia. Antes gratuitos, nomes de domínio passaram a ser cobrados em 1995. Em 1996, o TCP/IP foi adotado como o protocolo oficial de redes como a NSFNet. A estrutura que garantia a perenização dos serviços de nomes na rede (DNS) pareceu algo pequena e acadêmica: em 1998, os EUA – que vinham financiando a Arpanet via departamento da defesa – descreveu como poderia ser a transição da gestão de nomes e números para a nova realidade e colocou no jogo o departamento de comércio. Buscava-se “privatizar” a IANA.

O herdeiro da IANA seria quem fizesse a melhor proposta e mostrasse que teria a participação dos diversos segmentos da sociedade. A escolha foi a ICANN, uma ONG criada em 1998 em Los Angeles e sediada no mesmo prédio da IANA. Tudo indicava uma transição suave e sem riscos, mas Postel faleceu após complicações de uma cirurgia cardíaca. Com a ICANN recém-criada e, sem Postel, o departamento de comércio queria garantir que nada de anormal ocorresse na gestão da raiz: em janeiro de 2001, um ano após a ativação da ICANN, a NTIA assinou com ICANN um contrato – que acabou sendo renovado a cada três anos – para supervisionar a IANA. A NTIA validaria as alterações na raiz de nomes.

O poder de um país supervisionar alterações feitas na raiz de nomes gerou desconforto. Em março de 2014, em pleno “caso Snowden”, a NTIA anunciou que, se houvesse uma proposta adequada, ela cederia esse poder e não renovaria o contrato. Nada é tão simples: se as comunidades de nomes, números e protocolos concordassem, ICANN poderia ser a única responsável final pela IANA, sem a NTIA. Eventualmente, um novo “mecanismo” poderia dar poder às comunidades no papel de supervisão da NTIA.

Na 55ª reunião da ICANN de Marrakesh, no Marrocos, comemorou-se o fim do processo, sendo enviada uma proposta à ICANN e, depois, à NTIA e ao Congresso dos EUA. Se tudo der certo, num novo cenário não haverá mais “um” governo em posição diferenciada. A gestão da Internet será multissetorial. A Internet quer seguir e ir “pra lá de Marrakesh”, mas há as eleições norte-americanas a considerar. Conseguirá?

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https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/pra-ca-de-marraqueche/
21/03/2016 | 05h00

segunda-feira, 7 de março de 2016

Cozinhando rãs

Há notícias de que provedores de acesso fixo pretendem incluir “franquia” nesta forma de acesso. É uma discussão importante.

A Internet foi sendo montada com o aluguel de canais de dados às empresas de telecomunicação. O entroncamento de “canos” de diferentes bitolas, que permitissem escoamento do tráfego, é o “backbone”. As teles forneciam dutos vazios e seu preenchimento era feito por integrantes da rede.

Em 1988, não antes de longa batalha burocrática, o Brasil ligou-se a redes acadêmicas, alugando canais internacionais. Em 1 hora passavam até 1,5 megabytes, menos do que uma fotografia! Claro que à época a web não existia. Uma carta, com tamanho médio de mil bytes, levava 2 segundos para chegar: era um limite diário de 40 mil e-mails – e o canal satisfazia (!) as necessidades da comunidade. Contratar mais velocidade seria ter maior desembolso, com o mesmo modelo.

O modelo da telefonia é outro. Entra, na cobrança de conexão, a distancia e a duração do chamado. Por isso, quando em 1994 abriu-se a rede para uso doméstico via conexão telefônica, um “cronômetro” passou a onerar o usuário. Pagava-se pelo canal e pelo tempo. Quem quisesse pagar menos, deveria “telefonar” depois da meia-noite ou em fins de semana, quando o “cronômetro” parava de rodar. Em 2001, surgiram modelos grátis para a internet caseira e, com a entrada da chamada “banda larga”, o modelo voltou ao original, sem “taxímetro”. A restrição sentida era apenas a velocidade contratada, sem pressão do tempo ou restrições ao tamanho do conteúdo. Foi um momento de grande expansão da rede.

A telefonia celular moveu a gangorra outra vez. A Internet móvel é “carregada” pela estrutura celular, o que sugere a volta do modelo de 1994: o que seria cobrado não é mais a velocidade e sim a quantidade de informação trafegada. Os provedores de acesso móvel passaram a oferecer “planos” com franquia. Claro que nesse modelo volta a pressão pelo “rápido e curto”, e ressurgem modelos em que serviços podem pagar a conta, preservando a franquia do usuário. Não muito diferente do 0800 e da “chamada a cobrar”. Mas, para economizar, é melhor usar apenas serviços grátis ou curtos? A experiência da rede deve se reduzir a isso?

Cada modelo tem características e impactos diferentes. O modelo fixo é neutro e permite ao usuário uma participação mais elaborada e uma experiência mais densa. O móvel traz a ubiquidade e o imediatismo, ao lado de superficialidade e aversão a conteúdos longos. De alguma forma, são complementares.

O anúncio de controle de franquia na Internet fixa preocupa, já que sua experiência passaria a ser a mesma da móvel. Alega-se que “contratos da rede fixa já citavam franquia”. Pode ser que naquelas letrinhas pequenas constasse, em alguns contratos, um limite, alto para nunca ser atingido, nem chamar atenção. E se foi “aceito”, agora haverá evoluções e pode-se mexer com esses limites.

Afinal, “a franquia já estava lá”. Lembrou-me a receita de “como cozinhar rãs”: coloca-se a rã na panela de água fria, e ela nada alegre e despreocupada. Lentamente, a temperatura sobe e, quando a rã se dá conta, não há mais o que fazer: será cozida. Parece que a temperatura da água da internet fixa sobe rapidamente. Tá morninho aí?

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https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/cozinhando-ras/
07/03/2016 | 07h00
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