segunda-feira, 28 de julho de 2014

Privacidade, isso ainda existe?

...  e o que vocês sussurraram aos ouvidos, dentro de casa, será proclamado dos telhados”
Lucas 12:3

Houve um tempo em que a Internet era considerada o livre mundo da anonimia, da invisibilidade na ação, do não monitoramento, Lá se podia interagir sob o manto de um pseudônimo e a nossa navegação nunca seria rastreada. Mas essa concepção da rede é fundamental e tecnicamente errada. Sem falar nas recentes revelações de Edward Snowden, os desenvolvimentos e serviços que surgem comprometem ainda mais a possibilidade da ação anônima na Internet.

O primeiro aspecto a considerar é que a tudo na Internet depende de protocolos. Se visitamos um sítio, nossa intenção de lá entrar é conhecida pelo servidor, que nos dará (ou não...) permissão de acesso. E, claro, todos somos identificados pelo nosso número IP, tanto visitantes como visitados. Assim, ao contrário de serviços no mundo tradicional, onde podemos ouvir rádio ou assistir à TV sem que as emissoras apercebam-se disso, um acesso a um emissor de rádio na Internet depende de autorização para que nosso IP possa receber o fluxo de dados correspondente e, certamente, esse fato pode ser arquivada para o futuro. Ou seja, uma emissora na Internet sabe exatamente que IPs recebem seus dados a cada instante.

Mais que isso, e até para algum conforto adicional, muitas vezes somos “carimbados” pelos sítios que visitamos para sermos reconhecidos em uma eventual volta. Como o que se passa quando alguém sai de uma festa mas a ela pretende voltar em seguida. Esses “carimbos”, os “cookies”, nos facilitam a vida porque não precisamos nos reidentificar a cada passo mas, por outro lado, deixam em nosso sistema marcas que podem durar por bastante tempo. O navegador que usamos exibe os “carimbos” quando voltamos ao sítio, para sermos reconhecidos como usuários e para que uma interação, eventualmente interrompida, possa continuar de onde parou. Podemos instruir o navegador para que não aceite “cookies”, mas isso pode ser um estorvo grande para a nossa interação.

Outras ameças existem: o uso da rede para armazenamento de dados pessoais pode expô-los aos que gerem os serviços. Pode acontecer com o nosso correio eletrônico, com listas de endereços, com redes sociais. A capacidade assombrosa de processamento que há hoje permite que se possa ir além: pedaços de informação como palavras que buscamos, números IP usados, horários e sítios que visitamos, podem ser agrupados e acumulados, identificando-nos virtualmente. Mesmo que nossa identidade não esteja claramente lá, a individualização da informação levará fatalmente a que sejamos localizáveis pela tecnologia conhecida como “big data”. E com a adição, em breve, de nossos equipamentos caseiros à “internet das coisas”, ainda mais dados, preferências e características pessoais serão automaticamente coletáveis.


O Marco Civil trata da preservação da privacidade possível, ao restringir a coleta de informações àquelas que são diretamente ligadas à transação em curso. É claro que quando usamos um banco pela rede, tanto o banco como nós mesmos devemos ter certeza de quem é o interlocuotor. Idem se compramos algo pela rede, a ser entregue em um endereço físico. Nossa privacidade depende do contexto: ela é diferente numa roda de amigos, numa livraria ou num banco. Mas, certamente, não é assunto da livraria ou do banco saber quais são nossos amigos, da mesma forma que não compete a quem nos transporta ao banco ou à livraria saber o que fomos fazer por lá. O Marco Civil estabelece que as infomações coletadas devem ser as que dizem respeito ao dado contexto, que devemos ter sempre o direito de saber quais informações serão coletadas e que podemos, em caso de não concordar em usar o serviço, de pedir que nossos dados sejam descartados.

domingo, 13 de julho de 2014

A Internet nasceu neutra e deve permanecer assim

O “Diccionario da Língua Portugueza”, de Antonio de Moraes Silva, de 1789, define neutralidade como a “indifferença do que não toma bando, nem favorece nenhum dos partidos”.

Há três semanas entrou em vigor o Marco Civil da Internet. A lei colocou o Brasil na vanguarda dos países que protegem a rede e seus usuários.

A discussão que precede a aprovação do Marco Civil estendeu-se por anos e teve um de seus focos principais no tema da neutralidade. A lei aprovada defende a neutralidade da rede, mesmo entendendo que pode haver casos de exceção a ela, a serem individualmente tratados em eventual regulamentação adicional posterior.

Alio-me aos que defendem intransigentemente a neutralidade da rede, até porque é algo que deve ser buscado em todos os ramos de atividade e em todas as transações. A rede nasceu neutra, permitindo comunicação direta entre origem e destino da informação, sem admitir que alguém no meio do ambiente filtre ou bloqueie os dados que trafegam.

Não era conceito novo: tanto nos correios como na telefonia pressupunha-se que ninguém interferisse ilegalmente no conteúdo que lá trafega. Mas a neutralidade da Internet alcança outros níveis, especialmente devido à constante possibilidade de inovação.

Ninguém imaginava em 1990, por exemplo, que a web surgiria e menos ainda avaliaria seu impacto. Ou que as redes sociais teriam o alcance e o poder que lograram em poucos anos. É fundamental, assim, que a Internet seja preservada como um “jardim sem muros”, onde novas aplicações surjam de um dia a outro e estejam ao alcance de todos.

Ao contrário do que se passa, por exemplo, na distribuição de TV por assinatura, onde canais novos têm que ser subscritos pelo assinante, na Internet todos, independentemente da quantidade de banda que assinam, podem ter acesso às “novidades”. Assim qualquer novo serviço sobre a rede será passível da experimentação e sujeito ao crivo dos usuários. Sobreviverá ou não devido a seus méritos e características, como tem sido a regra na rede.

Tratar por igual os serviços não impede que os haja gratuitos ou pagos, bons ou ruins, leves ou demandantes de recursos, mas atribui ao usuário o poder de escolha ao acessar o que quiser, e pagar pela quantidade de banda que pretende ter. Isso é bom para o mercado, bom para o usuário e bom para o empreendedor.

E exceções? Apenas para citar uma, há práticas mal intencionadas na rede, que visam minar a própria neutralidade dela e que, portanto, devem ser tratadas como exceção, para a própria preservação da neutralidade ampla. Parece uma contradição, mas isso ocorre quando se detecta um ataque do tipo “negação de serviço”, quando alguém quer impedir que um site ou um serviço seja acessível aos demais usuários, usando para isso de meios automáticos que geram uma sobrecarga artificial.

A forma de amenizar esse tipo de ataque passa por filtrar endereços da origem do ataque. Ou seja, pode haver necessidade específica de interferir no processo “fim-a-fim” da Internet, exatamente para preservá-lo neutro.