terça-feira, 24 de outubro de 2023

ICANN em Hamburgo

Em Hamburgo reunião da ICANN comemora 25 anos de sua existência. Estabeleceu-se em 30 de setembro de 1998 como uma entidade multissetorial para coordenar os recursos comuns da Internet, o que inclui a gestão dos números IP e a manutenção e operação da raíz de nomes. É na raíz de nomos que se ancoram todos os domínios de topo, como os gTLDs (genéricos) .COM, .ORG, NET, e os ccTLDs (domínios de código de país) .BR, .DE, .IT etc. A missão da ICANN foi, assim, assumir as tarefas que estavam originalmente a cargo da IANA (Internet Assigned Names Authority): um pequeno grupo de pessoas capitaneado Jon Postel. Por azares do destino, Postel faleceu inesperadamente apenas 18 dias depois da inauguração da ICANN, frustando assim sua condução como chefe de operações da recém-criada organização Esse foi um dos fatores que fez com que ICANN levasse algum tempo até se estabilizar, até que passasse a contar em seu corpo com a ativa participação de pioneiros como Steve Crocker, Vint Cerf, John Klensin e outros.

O evento em Hamburgo, que contou com o apoio do DENIC, o NIC da Alemanha - o terceiro maior ccTLD do mundo - teve um painel relembrando as etapas, desde as reuniões preparatórias anteriores a 1998. Na programação técnica usual, continuará a discussão sobre a forma de se abrir uma nova temporada de propostas para a criação de mais gTLDs.

Quanto a como tratar dos riscos e ameaças que plataformas e serviços criados sobre a rede trazem, estamos em momento bastante crítico. A Inglaterra, por exemplo, aprovou uma legislação bastante restritiva e de vigilância de conteúdos que, à guisa da proteção a crianças e adolescentes, responsabilizará diretamente os provedores que não removerem conteúdo “ilegal”. Em linha aparentemente oposta, Benjamin Brake do recém criado Departamento de Política Digital e Dados, do Ministério de Assuntos Digitais e Transportes da Alemanha, citou em sua fala de abertura na ICANN que alguns dos princípios fundantes da rede podem estar em risco. Nas palavras dele, há, mesmo no chamado “espectro progressivo” da comunidade, os que postulam uma “censura bem-intencionada”, que dê a si mesma um aspecto de virtude que muitos consideram realmente existir.

Coincidentemente li há dias a primeira constituição Brasileira, de 1824, do Império – encontrável na íntegra em planalto.gov.br – e dela pinço dois item do seu último artigo, o 179. Repasso em linguagem original da época:
“IV. Todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras, escriptos, e publical-os pela Imprensa, sem dependencia de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que commetterem no exercicio deste Direito, nos casos, e pela fórma, que a Lei determinar.”
“XXVII. O Segredo das Cartas é inviolavel. A Administração do Correio fica rigorosamente responsavel por qualquer infracção deste Artigo.”

A arte de equilibrar esses princípios com eventuais medidas de proteção que não os degradem é um ponto crucial, e que deve ser discutido hoje. Lembrando Marx (o Groucho), “Veja, esses são meus princípios… Se você não gosta deles, eu tenho outros…”.
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https://icann78.sched.com/


terça-feira, 10 de outubro de 2023

A Comunidade Internet

Em Quioto, Japão, começou o Fórum de Governança da Internet de 2023, evento que, por excelência, reúne a comunidade multissetorial que debate os rumos da rede. Estamos num complicado ponto de inflexão sob vários aspectos. Há quase 30 anos, em outubro de 1996, o presidente dos EUA, Bill Clinton, assinava atualização da E-FOIA- “Eletronic Freedom of Information Act Amendments”. O contexto pode ser ancorado numa anterior proposta de legislação para combater a pornografia na Internet: o CDA “Communications Decency Act”, que havia sido assinada pelo mesmo Clinton em junho de 1995. Houve imediata reação da “comunidade Internet”, contra o que considerou uma tentativa de censura à Internet. Neste clima, John Perry Barlow, que em 1990 fundara com Mitch Kapor e John Gilmore a EFF - Eletronic Frontier Foundation, publicou em fevereiro de 1996 a famosa “Declaração de Independência do Ciberespaço”. Barlow instava os governos do mundo a que “tirassem suas mãos do novo mundo de idéias”, a Internet, permitindo a todos seus integrantes total liberdade de expressão, “independentemente de quão estranha ela possa parecer”. A pressão da “comunidade Internet” surtiu efeito, e o CDA perdeu bastante do escopo original. Um trecho que restou, a seção 230, garantia a imunidade aos “provedores de meios de acesso e comunicação” em relação ao conteúdo que seus usuários gerassem e, ao mesmo tempo, lhes dava liberdade de agir dentro de seus “códigos de conduta”.

Claro que muita coisa mudou desde então e, com as plataformas sociais, muitos dos que antes de classificariam como “intermediários” não caberiam mais nesse tipo de proteção. Mas o que também se sente é uma certa apatia e uma ausência da pressão que a tal “comunhidade Internet” sempre exerceu, visando a preservar os fundamentos originais da rede.

A essa visão idilica da Internet primeva, podemos contrapor o que Umberto Eco considerava como os problemas e as deformações que a rede trazia: num mundo onde todos falam, caberia a nós a tarefa de triar a qualidade, dentro da infinidade de dados. Delegar essa tarefa a outrem traz sempre o risco de perdermos muito de nossa autonomia, em nome de eventual “segurança”. Ainda na linha de Eco, em artigo recente Fernando Schuler adverte que: “...somos filhos de uma época de ódio e angústia não porque há gente ruim rondando uma sociedade indefesa, mas porque ganhamos liberdade e um poder inédito para revelar quem somos”. Afinal Vint Cerf, que acaba de fazer instigantes comentários na abertura do IGF, já nos tinha alertado de que “a Internet é o espelho da sociedade”.

Uma lei recém aprovada na Inglaterra propõe-se a nos livrar “das coisas ruins que há na rede”. Na definição de “ruim” é que mora o perigo e efeitos colaterais dessa lei são bem preocupantes.

Na Antígona, de Sófocles, peça escrita há quase 2500 anos, uma frase que ainda ressoa muito atual, e alerta para os riscos de confundirmos o bem e o mal: “aos que os deuses querem levar à destruição, o mal aparenta ser o bem”…

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Abertura do IGF

https://dig.watch/updates/stakeholders-vision-in-opening-remarks-at-igf-2023

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sobre o FOIA

https://efoia.bis.doc.gov

https://wikilai.fiquemsabendo.com.br/wiki/Hist%C3%B3ria_da_FOIA

https://www.justice.gov/oip/blog/foia-update-freedom-information-act-5-usc-sect-552-amended-public-law-no-104-231-110-stat

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Antigona, de Sófocles - versos citados 620-623

https://en.wikipedia.org/wiki/Whom_the_gods_would_destroy,_they_first_make_mad

https://www.simonandschuster.com/books/Antigone/Sophocles/9781681464022