terça-feira, 18 de agosto de 2020

Anticorpos

Saiu na semana que passou um artigo na Science Magazine, “a disseminação de notícias verdadeiras e falsas”, que comenta “fake news”. Traz métricas e analisa comportamentos mas, apesar de recém-publicado, trata do que passou até 2017. Certamente há um fator de escala devido ao robusto e constante crescimento da Internet, porém não há porque sua essência hoje ser muito diferente da que era há três anos.

O primeiro ponto que chama a atenção: o artigo postula a que se abandone o termo “fake news”, cujo sentido considera irremediavelmente polarizado pelos meios e pela política. Os autores preferem usar “notícias falsas” a “fake news” que se tornou, mais que algo relacionado à veracidade, numa espécie de labéu que uns impingem aos outros. Outra conclusão do estudo é que as notícias falsas propagam-se mais rapidamente que as parcialmente falsas, e estas mais rapidamente que as verdadeiras. Aduz que isso se deve ao comportamento humano de apressar-se em repassar o que pareceria causar mais impacto. Também identifica as áreas mais afetadas: em ordem descrescente viriam a política, as lendas urbanas, os negócios, terrorismo/guerra, e ciência/tecnologia.

Se tentarmos uma analogia (precária, como costumam ser as analogias…) poderíamos dizer que há uma “pandemia de notícias falsas”, que nos atinge globalmente. Não muito diferente do que se passa com os vírus e as bactérias que nos afligem. Como se enfrentaria uma peste deste tipo? Prosseguindo na analogia, poderíamos pensar em isolar-nos do debate, em filtrar ou bloquear notícias, em não participar de redes sociais mantendo-nos em “quarentena”… Talvez com isso “achatássemos” o pico da onda, mas provavelmente não resolveriamos esse problema, tão velho como o mundo. Ele continuaria à espreita, para voltar à carga; afinal, se no cristianismo a mentira é apanágio de Lúcifer, o portador da luz, na mitologia nórdica há uma divindade especializada em enganar: Loge, o deus do fogo, é ardiloso, astuto e não se melindra em aplicar todo o tipo de embustes.

Assim, a médio prazo, a solução real seria que nós mesmos nos defendêssemos. Criaríamos “anticorpos” às mentiras que nos assediam. Olhando o passado vemos que tem acontecido: com mais exposição aos fatos, passa-se a separar o que parece verídico do que é falso, e a escolher as fontes em que confiar. Com a Internet e as redes sociais, todos somos “fontes de informação”, mas isso não impede que passemos a dar crédito seletivo a algumas fontes, e criemos mecanismos para obter alguma garantia de veracidade.

Qual seria, então, o “anticorpo” que nos defenderia da ameaça de “infecção” por notícias falsas? O amadurecimento propiciado pela educação, o aumento na diversidade da informação que recebemos, e a melhora nos mecanismos de que lançamos mão para discriminar entre o que é crível e o que podemos rotular de ficção! O remédio contra a informação falsa é, portanto, mais informação!

E o atual projeto de lei que procura combater as “fake news”? Tenho, independentemente das “boas intenções” de que ele esteja pleno, muito receio em seguir na sua linha, seja pelos riscos à privacidade, seja por efeitos colaterais. A posição mais prudente em relação ao projeto, que não teve ainda uma discussão aberta e extensa, parece ser aquela aconselhada pelo poeta em Cântico Negro: 
“‘Vem por aqui’- dizem-me alguns com os olhos doces / estendendo-me os braços, e seguros / … /Nãosei por onde vou, / não sei para onde vou/ - Sei que não vou por aí!

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https://science.sciencemag.org/content/359/6380/1146/tab-pdf

Categorias onde mais aparecem notícias falsas



Atividade no twitter durante o período investigado:
noticias verdadeiras notícias semi-falsas notícias falsas


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Cântico Negro, de José Régio
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
-  Sei que não vou por aí!"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces











terça-feira, 4 de agosto de 2020

Global - Local

A Internet chegou ao Brasil em 1991, mas antes já havia aqui conexões a redes acadêmicas como a Bitnet, que contavam com eficiente correio eletrônico. Acresceu-se ao espanto que tive ao poder de comunicar-me via eletrônica, a impressão de que isso seria algo restrito a poucos. Afinal boa parte do conteúdo era em inglês, “língua franca”, e os participantes eram egressos da academia. Também me pareceu que a rede causaria uma uniformização em comportamentos e cultura, pela ampla disseminação de informações. Em pouco tempo, porém, fui mudando minha idéia. Uma lista de discussão, então muito ativa, a BrasNet, que incluia pesquisadores brasileiros no exterior era em português! Mais emblemático ainda era o que corria na BrasNet: além dos papos acadêmicos havia dicas de onde encontrar farinha de mandioca, feijão preto ou cachaça, nos EUA e Europa… A nostalgia pela cultura natal.

Montei outra imagem: a comunicação seria global e sem entraves, mas ela não vinha para sobrepor-se aos usos e costumes locais. Pelo contrário, poderia ser uma forma de fortalecê-los! Microculturas locais ameaçadas de desaparecimento, poderiam ganhar força e apoio via Internet. O artesanato indígena em nosso país, por exemplo, teria agora potenciais compradores vindos de todo o mundo, gerando sustentabilidade. Em suma, o “global” da rede poderia ajudar a reforçar o “local” em muitas regiões… A participação local ficou ainda mais evidente com a chegada da web ao país em 1993, com seus atrativos para gerar entrada em maciça de novos usuários.

Sempre há um custo a pagar: incômodos antes raros, como spam e fraudes, multiplicaram-se visando especialmente os ingressantes. Com a popularização dos buscadores e das plataformas de interação social, tornaram-se cada vez mais comuns abusos de privacidade, difamações e calúnias. A reação a eles trouxe iniciativas, tanto de novas leis, como de atividade judicial, que, além de não surtirem bons resultados práticos, tinham efeitos indesejados ao afetar usuários inocentes e deformar a rede como um todo. Foi neste cenário que o Comitê Gestor emitiu em 2007 seu decálogo, visando à preservação dos conceitos e liberdade na Internet.

Para que ações sobre a rede sejam efetivas, é crítico obter equilíbrio entre o local e o global. O respeito às características culturais locais não deve ameaçar uma fragmentação Internet. Soberania nacional implica, também, em se reconhecer a soberania das demais nações. Exemplo simplório: há na rede jogos de azar e há países em que esses jogos são ilegais; cabe aos países reprimir cidadãos que burlam sua lei acessando tais jogos, mas esta ação não pode ir além das fronteiras. Em vários países o consumo de álcool é proibido: caberá a eles fiscalizarem seus cidadãos, mas isso não lhes dá poder a pedirem a erradicação de menções a bebidas alcoólicas na rede global. Em suma, não se pode expurgar da rede global algo que localmente desagrada. A soberania nacional se exercerá sobre os cidadãos e as empresas locais que praticaram os delitos na jurisdição local, e não mutilando a Internet. Por ocasião do atentado às torres gêmeas em 2001, Vint Cerf declarou que, mais do que nunca, a Internet deveria ser usada para lançar luz sobre aqueles que ameaçam a liberdade. “A informação é o fulcro da verdade, e seu livre fluxo é a corrente sanguínea da democracia”.


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Vint Cerf, Wednesday 12th September 2001 15:31 Hours
https://isoc-e.org/cerf-9-11/

<...>
Now, more than ever, the Internet must be wielded along with other
media to cast bright lights on all who would destroy freedom in the
world. Information is the torch of truth and its free flow is the
bloodstream of democracy.

The price of such free flow may be information we do NOT like or
believe, but the antidote to misinformation is more information,
not less.
<...>

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Exemplo de "lei local":
https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,homem-e-condenado-a-35-anos-de-prisao-por-posts-no-facebook-sobre-a-familia-real-tailandesa,70001832807

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IGF- Internet Governance Forum, Berlim, 2019




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e um texto sobre censura na rede, com mapas de ações dos países

https://www.comparitech.com/blog/vpn-privacy/internet-censorship-map/