terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Nihil Obstat - Imprimatur

Cerca de 200 anos depois que Gutemberg inventou a imprensa, quando se notou que a população passaria a ter um acesso amplo a livros e textos que antes, em raros manuscritos e suas cópias, estavam ao alcance de muito poucos, a Igreja Católica, certamente munida das melhores intenções em proteger leigos despreparados da exposição a conteúdos polêmicos e complexos, decidiu criar um cânone de lei, que pré-examinasse os livros candidatos à impressão. Os julgados apropriados ao grande público ganhavam o carimbo “Nihil Obstat – Imprimatur”, ou seja, os censores que examinaram o livro permitiam que ele fosse impresso. Isso não significava uma aprovação tácita ao conteúdo mas, sim, que ele não representaria perigo aos incautos leitores.

Nem temos ainda 50 anos da disseminação da Internet, e já há um visível movimento para que o acesso dos internautas ao que está na rede seja, de alguma forma, intermediado ou tutelado. Sem dicutir casos especiais, como formas de inibir o acesso de menores de idade ou incapazes, vamos nos restringir estritamente a, como se dizia antanho, “maiores de idade e vacinados”… Há, neste caso, também necessidade de tutela? Se houver, qual o nível e quais os critérios que o executor deveria respeitar? Alguém decidirá a priori o que se pode ler, o que seria bom ou mau ao leitor, ou o que seria perigoso para seu equilíbrio mental?

Não se deve trivializar o problema, até porque, quem ainda escreve um livro de papel pertence a um universo muito mais restrito dos que emitem suas opiniões na Internet. Mas, afinal, não era esse o propósito inicial da rede? Que todos pudessem ler e opinar sobre tudo? Teria sido superestimada a capacidade humana de conviver e dialogar num ambiente tão amplo e com tanto alcance?

Outro complicador que faz parte importante da equação é o fator “intermediários e seus algoritmos”. A crescente concentração de poder econômico, associada aos efeitos pouco transparentes mas intensos de amplificação, levam a outro debate inevitável, sobre eventual regulação de intermediários. É uma embate de titãs, com governos versus empresas gigantes e, prá variar, o usuário acaba sendo o marisco “nessa luta do rochedo com o mar”…

Quando escreveu a “Declaração de Independência do Ciberespaço” John Perry Barlow usou “ciber” como algo que significasse o mundo das redes, da eletrônica, do virtual. E “ciber” ganhou aceitação e uso global mesmo que, semânticamente, seu sentido grego original seja ligado a “controle”, como bem definiu Norbert Wiener, que cunhou “cibernética” em seu livro de 1948. Aos poucos, mas cada vez mais rapidamente, “ciber” reclama de volta sua semântica original: a Internet parece tornar-se, mais e mais, uma “rede de controle”.

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Gutemberg e a impressora
https://en.wikipedia.org/wiki/Printing_press

Nihil Obstat e Imprimatur e Nihil Obstat

https://en.wikipedia.org/wiki/Imprimatur
https://www.merriam-webster.com/dictionary/imprimatur
https://en.wikipedia.org/wiki/Nihil_obstat

Declaração de Independência do Ciberespaço - J.P.Barlow
https://www.eff.org/cyberspace-independence

Norbert Wiener e "cibernética"
https://en.wikipedia.org/wiki/Cybernetics:_Or_Control_and_Communication_in_the_Animal_and_the_Machine

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Como está a censura em relação à Internet:

https://www.vpnmentor.com/blog/online-censorship-country-rank/https://www.comparitech.com/blog/vpn-privacy/internet-censorship-map/

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Index Librorum Prohibitorum

https://en.wikipedia.org/wiki/Index_Librorum_Prohibitorum









terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Otimismo Gregoriano

O começo de ano com suas tradições e costumes é um convite e um pretexto para que se instile o otimismo em todos. A despeito do que podem apontar os indícios que se acumulam há tempos, sempre recebemos e enviamos votos de “um ano excelente”… Um salutar otimismo pode ser importante. E temos, afinal, a Internet, que pode ser uma poderosa alavanca para mover o mundo em alguma direção melhor. A dificuldade aí é nos convencermos de que o rumo tomado é aquele pela qual ansiávamos, um mundo com mais informação, mais colaboração, mais entendimento.

Nessa linha otimista, é difícil não lembrar do Dr. Pangloss, filósofo que, na obra de Voltaire, era o mentor de Cândido e ensinava “metafísico-teólogo-cosmolonigologia”. Afinal, se o próprio Leibniz já defendera que “vivemos no melhor dos mundos possíveis”, Pangloss, como caricatura, explora e extrapola essa linha, a de que todos os efeitos pressupõem necessariamente uma causa, e que “tudo está necessariamente destinado ao melhor fim”. Ele exemplifica: “o nariz, por exemplo, existe para que possamos usar óculos”. Num arroubo panglossiano poderíamos estender a idéia à Internet, e dizer que ela existe para que, num movimento claro, possamos nos provocar mutuamente à exaustão, e esperar que disso brote um bem maior...

Se o fácil e ácido sarcasmo acima é atrativo, ele não deve, entretanto, ignorar o indiscutível valor que a Internet trouxe a todos. Como defensores intransigentes dos conceitos da rede, e mesmo sabendo dos mau-usos e das mazelas que com ela podem vir, devemos sopesar, muito positivamente, o espírito de distribuição de conhecimentos e informações, a colaboração despreendida dos que adicionam valor à rede e, é claro, a abertura de voz a todos, numa possibilidade de interação humana em níveis nunca vistos.

Para buscar um contraponto ainda ficando em Voltaire, há um opúsculo chamado “O Mundo como Está”, em que Babuc, o narrador, conta como se desincumbiu de uma missão que lhe foi passada por uma potestade celestial. Ituriel, anjo encolerizada por excessos que via na cidade de Persépolis, incumbiu Babuc de examiná-la minuciosamente e aos seus habitantes, e elaborar um relatório recomendando ou não sua destruição. Em sua visita, ele fica alternadamente horrorizado e emocionado com o que vê: atos de violência e atos de caridade, injustiças flagrantes e decisões sábias. Para gerar um relatório equilibrado, Babuc tem uma saída esperta e apela à analogia: manda fazer uma estatueta composta de todos os materiais, terras, metais, pedras, desde os mais preciosos aos mais vís. Entrega-a a Ituriel e pergunta: “destruirias essa linda estátua porque ela não é toda de ouro e diamantes?”. Certamente na Internet se encontra ainda mais variedade da que Babuc encontrou em Persépolis.

Entre otimismo e pessimismo, talvez o conselho mais sensato seja o do próprio Cândido, que termina valorizando a ação individual simples, onde cada um pode somar algo ao todo. Voltaire faz Cândido sentenciar: “tudo o que foi dito é correto, mas precisamos cuidar do nosso próprio jardim”...

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Há em domínio público os livros citados:

Cândido, ou o Otimismo, Voltaire:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000009.pdf

O Mundo como Está, Voltaire:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000045.pdf

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trecho da fala do Dr. Pangloss, em Cândido:
https://www.gleeditions.com/candide/students/pages.asp?lid=102&pg=160
“It is demonstrable," said he, "that things cannot be otherwise than as they are; for as all things have been created for some end, they must necessarily be created for the best end. Observe, for instance, the nose is formed for spectacles, therefore we wear spectacles. The legs are visibly designed for stockings, accordingly we wear stockings. Stones were made to be hewn and to construct castles, therefore My Lord has a magnificent castle; for the greatest baron in the province ought to be the best lodged. Swine were intended to be eaten, therefore we eat pork all the year round: and they, who assert that everything is right, do not express themselves correctly; they should say that everything is best.”


https://www.urbandictionary.com/define.php?term=metaphysico-theologo-cosmolonigology

https://quotesgram.com/candide-by-voltaire-quotes/




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