terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O Último Bastião

Nossa segurança passa também pela definição de formas de identificação individual. Há uma diversidade de métodos para isso, sigilosos ou não, e não raro aconselha-se a se lançar mão de mais de um deles simultaneamente. O uso de características essencialmente pessoais permite identificar alguém com boa margem de certeza. É o que acontece com impressões digitais, com reconhecimento facial ou da íris, e outros usos da biometria. E há ainda formas não físicas, como o uso senhas pessoais, com diferentes graus de complexidade. Forma bastante robusta de identificação, como as impressões digitais, podem não ser nada sigilosas: afinal elas acabam em quase tudo o que tocamos. Assim com nossas fotografias e, até, nosso DNA, que poderia ser conseguido de fios de cabelos perdidos. O sigilo realmente reside nas formas mentais, como é o caso de senhas. Essas sim estão unicamente em nosso poder e parecem invioláveis.

A mente, esse último baluarte da privacidade e da identidade, sempre foi objeto de profunda pesquisa, que hoje apresenta avanços imp0rtantes. Por exemplo a DARPA, agência de pesquisas avançadas do setor militar norte-americano (e onde nasceu a Internet), conduz desde 2013 o projeto BRAIN, que visa a entender o funcionamento de nosso cérebro. É um dos muitos projetos mundiais que vão nessa direção. Resultado muito meritório desse tipo de pesquisa é o desenvolvimento de próteses que possam ser controladas por impulsos cerebrais, fazendo com que pessoas com disabilidades físicas superem suas limitações. Mas surgem outros possíveis usos, nem sempre éticos. Há algum tempo, por exemplo, foi anunciado na China um boné que monitora atividade cerebral e mede o grau de atenção de operadores em atividades de risco. Um motorista de ônibus ou um operador de máquina, por exemplo, teriam sua concentração momentânea na atividade avaliada. Se já há desenvolvimentos em inteligência artificial que, a partir de uma imagem, deduzem o estado emocional de alguém, via impulsos cerebrais essa avaliação seria muito mais direta.
Entender sinais cerebrais permitirá o controle de dispositivos com ou sem implantes invasivos de sensores e circuitos. E há o caminho inverso, onde é possível introduzir no cérebro sinais que produzirão imagens e sons, que não passaram pelos nossos sentidos normais. Ou seja, em breve é possível não só que nossos pensamentos sejam legíveis, mas que nossas sensações sejam geradas sem ter que passar por olhos, ouvidos, tato: a invasão da última esfera de privacidade que se considerava inviolável. Se o próprio pensamento puder ser monitorado, o grau de controle e vigilantismo poderia ir às raias do pesadelo.

O alerta para a necessidade do estabelecimento de limites vem dos próprios pesquisadores da área. Uma preocupação imediata pode ser a de estender a proteção de direitos, de forma a incluir não só o sigilo de nossos pensamentos, como a não interferência artificial às nossas decisões. Afinal, se for possível "plantar" na mente sensações que sejam indistinguíveis daquelas geradas pelos sentidos, nossa própria identidade e o livre-arbítrio podem tornar-se ficção. Na irônica frase do Millôr, "livre pensar é só pensar", garantia-se liberdade desde que restrita apenas a pensamentos. Hoje, até nessa úlima forma corre-se risco. Ao menos o "pensar" continuará livre?

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O projeto BRAIN, da DARPA
https://www.darpa.mil/program/our-research/darpa-and-the-brain-initiative
https://www.eletimes.com/darpa-sponsored-research-revolutionize-brain-computer-interface
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Quatro prioridades éticas para neurotecnologia e inteligência artificial:
http://www.columbia.edu/cu/biology/pdf-files/faculty/Yuste/yuste%20et%20al.nature2017.pdf
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China e o monitoramento de emoções:
https://www.technologyreview.com/f/611052/with-brain-scanning-hats-china-signals-it-has-no-interest-in-workers-privacy/
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Artigo sobre preocupações do pesquisador Rafael Yuste no tema:
https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-02-13/por-que-e-preciso-proibir-que-manipulem-nosso-cerebro-antes-que-isso-seja-possivel.html
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Millôr, na coluna "Livre pensar é só pensar"...
http://www.tribunadainternet.com.br/livre-pensar-e-so-pensar-millor-fernandes-12/
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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Mais canela e menos pimenta

Há um interessante filme greco-turco de 2003 que em português ganhou o título de "O Tempero da Vida", com bela trilha sonora e uma delicada análise de relacionamentos e emoções. O simples fato de ser uma produção greco-turca, conhecendo-se a tensão geopolítica da região, já mostra o clima humano e de otimismo. A tradução literal do título grego daria algo como "A Cozinha Política", mas implicaria num grave erro de interpretação: no caso, "política" remete à raiz "pólis", cidade. Parte importante do filme passa-se em Istambul, a antiga "Constantinópolis", que já foi o umbigo do mundo há mil anos. Os gregos se referiam a essa cidade simplesmente como "pólis", dado que ela era A Cidade, sem mais. Assim, o título em grego refere-se à culinária de Constantinopla. Há também um jogo de palavras em grego que mantem-se em português: o avô do protagonista explica ao então menino como se deve temperar a vida, e o faz com uma analogia à astronomia: afinal gastronomia tem apenas um "g" a mais... E trata do sal, da pimenta, da canela, das especiarias, associando seus efeitos aos corpos celestes e recomendando ao netinho atentar aos resultados que os temperos produzem em nossa vida e em nossos relacionamentos. Pena que a arte do tempero e virtude da temperança estejam entrando em desuso.


A polarização, que vemos crescente, é sinal dos nossos tempos. A aglutinação em torno de dogmas é rápida e nítida, por ser cada vez mais fácil arrebanhar partidários para qualquer idéia, mesmo as muito mal cozidas. Quando especialistas discutem um tema sabem que há opiniões divergentes e, mesmo quando tudo parece consolidado, nada impede que daqui a alguns anos a teoria suporte venha a cair. Afinal, tudo que nos parece "natural" hoje já foi "estranho" algum dia e poderá vir a ser abandonado num futuro. Muitas vezes uma idéia abandonada no seu nascedouro, depois de alguns séculos volta e se impõe. O heliocentrismo, por exemplo, inicialmente proposto por Aristarco de Samos 200 antes de Cristo, não conseguiu suplantar o geocentrismo de Aristóteles, mas voltou, mais de mil e quinhentos anos depois, com Galileu, Copérnico e outros. Ter arrogância na certeza é algo que a verdadeira ciência desconhece. Newton, fundamental para a física e para se prever a ação da gravidade nos corpos, foi humilde ponto de dizer que não forjaria uma hipótese sobre a natureza daquela força que ele tão bem equacionou: "hypotheses non fingo". Talvez seja um sábio conselho a seguir. Há os fatos, há as impressões que temos de fatos, mas sua explicação não deve ser proposta levianamente, nem acolhida apenas por representar reforço a posições momentâneas de interesse. A pressa em mostrar que temos opinião sobre tudo apenas faz engrossar as fileiras dos que, com algum objetivo, apresentarão explicações ardilosas para o ocorrido. É a origem das "teorias da conspiração" que encontram terreno cada vez mais fértil em nosso ambiente virtual. Usar de qualquer oportunidade ou fato para garimpar neles algo subjacente que possa ser usado a favor de uma posição é polarizar o discurso e abandonar a argumentação racional. Afinal, não é nem necessário, nem razoável, que todos tenham opinião sobre tudo. Marco Aurélio, imperador e filósofo estóico, recomendava "sempre temos a opção de não formar juízo sobre algo, e não sofrer pelo que não se pode controlar. São coisas que não pedem nosso julgamento. Deixemo-las em paz".

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O Tempero da Vida, trecho em português sobre temperos e astronomia/gastronomia. Vale a pena!
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de http://www.scielo.br/pdf/ss/v11n4/v11n4a05.pdf trecho da citação de Newton, "hypotheses non fingo":

" Até aqui não fui capaz de descobrir, a partir dos fenômenos, a causa dessas propriedades da gravidade, e sobre isso eu não invento hipóteses [hipotheses non fingo]. Pois o que quer que não seja deduzido dos fenômenos deve ser chamado de hipótese; e hipóteses, quer metafísicas, quer físicas, quer sobre qualidades ocultas, quer mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental.
Nessa filosofia, proposições particulares são inferidas dos fenômenos e, depois, tornadas gerais por indução. Foi assim que a impenetrabilidade, a mobilidade, a força impulsiva dos corpos e as leis do movimento e da gravitação foram descobertas. E para nós basta que a gravidade realmente exista, e aja de acordo com as leis que explicamos, servindo abundantemente para dar conta de todos os movimentos dos corpos celestes e de nosso mar (Principia, p. 457)"
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Marco Aurélio, Meditações:
Livro VI, 52: 52. "É lícito não formar opinião a este respeito e não sofrer atribulações da alma; as coisas em si mesmas não têm natureza capaz de criar nossos juízos. "
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Cena do filme Politiki Kouzina, traduzido no Brasil como O Tempero da Vida,
em https://link.estadao.com.br/noticias/geral,mais-canela-menos-pimenta,70003184079