segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Em favor do "não-esquecimento"

Quando no final dos anos 90 as redes de computadores se espalharam para além da comunidade acadêmica pensava-se amiúde que a união da informática (e seu jargão) com a globalização forçaria um idioma único para a comunicação: o inglês. Afinal, como conversaríamos na rede? Pela mesma forma de pensar, comunidades específicas e menos conectadas correriam o risco de ser culturalmente extintas sob o manto uniformizador da Internet.

À época e pelas 10 da noite, com a conexão Internet menos carregada, eu “sintonizava” algumas rádios gregas para desenferrujar meu conhecimento da língua. Noite dessas começou uma entrevista que inicialmente pareceu-me em italiano pela forma cantante de falar. As palavras, entretanto, não correspondiam. Acurei o ouvido e… era grego. Um grego falado com fraseado e entonação italianos, mas grego. A rádio estava cobrindo em Palermo, sul da Itália, uma pequena comunidade que falava “grecânico”, dialeto que sobrara da Magna Grécia, sobrevivendo milênios por transmissão oral. Aproveitei para comprar um CD do Canzionere Grecanico e pensei com meus botões que a Internet, em vez de aplainar culturalmente o mundo, talvez pudesse ser uma ferramenta de preservação de tradições que, mesmo frágeis lograram sobreviver em nichos por tanto tempo.

Na matéria sobre “medicina e cultura ianomâmi” de Herton Escobar publicada este mês no Estado há outro exemplo de conhecimento a ser salvo. Quantos ainda guardam os segredos de ervas mediciais e seu uso, e por quanto tempo essa informação sobreviverá? Enquanto alguns buscam o direito a apagar informações com prazo de “validade social” vencidas, outros se esforçam para preservar costumes, dialetos e informações, guardando-os na rede de modo que ganhem força, adeptos e disseminadores.

Sou das exatas e reconheço que, muitas vezes, a ciência pode assumir postura arrogante frente ao que parecem “lendas e costumes populares sem base científica comprovável”, mas pode haver mais mistérios entre o céu e a terra do que imagina nossa vã ciência. Cito exemplo: provei dia desses um doce parecido com chocolate, feito com alfarroba e bom para diabéticos. Alfarrobeira é uma árvore, dhttps://link.estadao.com.br/noticias/geral,em-favor-do-nao-esquecimento,10000051551e que tenho uma muda dada por um amigo português, que produz vagens cujas sementes moídas geram o tal “chocolate”. Eu sabia que essas sementes, por sua uniformidade, eram usadas no passado com padrão de peso. Mas descobri que a alfarrobeira é também conhecida como “pão de São João”. Estranhei o fato e pesquisei na rede. Alfarroba, passando pelo árabe, é de origem hebraica e, outra coincidência estranha, a grafia de “alfarroba” é muito parecida com a de outra palavra hebraica, “gafanhoto”. Na tradição cristã São João no deserto alimentou-se de “mel e gafanhotos”. Na literatura “oficial e científica” há “gafanhoto” porém, na tradição popular, alfarroba é o “pão de São João”! Teriam os tradutores lido erradamente e traduzido para “gafanhoto”? Seria de “mel e alfarroba” o alimento de São João? Quiçá a tradição popular tenha preservado melhor o que se passou, do que a erudição escrita. Há muito valor no que conhecimento acumulou antes da era digital. Que o preservemos.

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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,em-favor-do-nao-esquecimento,10000051551
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segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Quase tudo sobre muitos

Alguns se surpreenderam ao descobrir que um sítio na Internet vendia dados pessoais de brasileiros.

A partir do nome podia-se encontrar não apenas CPF e endereço, mas também data de nascimento, parentes, vizinhos, empresas, endereços alternativos e redes sociais de que participa. E o tal sítio alega que tudo o que mostra foi obtido na Internet aberta.

Claro que nossa privacidade está em constante risco na rede e que devemos ser cautelosos e cuidadosos no que informamos e para quem. Por outro, há alguns anos nossa informação de endereço esteve disponível via “listas brancas”, as conhecidas listas telefônicas. Listas telefônicas digitalizadas e reprocessadas podem indicar nossos vizinhos de endereço. Saber se estamos ou não em redes sociais também é quase imediato, especialmente com o enorme poder da computação de hoje associado a técnicas de garimpagem e associação de dados como o big data.

A conclusão a encarar é que muitas informações nossas já estão vastamente disponíveis na rede, mesmo as dos que não estão conectados. Isso não justifica, entretanto, que seja aceitável agrupá-las e vendê-las. Quem estaria interessado em comprar nossos dados? E com que finalidade? É bem fácil montar um cenário assustador: e se, também, nossos horários de saída e chegada, o trajeto que fazemos todos os dias, o colégio em que nossos filhos estudam e outras “miudezas” estiverem à disposição de todos?

Mais alguns detalhes interessantes sobre o tal sítio: ele não é obra de amadores. Tem o nome de domínio registrado sob o código da Suécia (.se), tem sede nas Seicheles e alega usar servidores franceses. Aceita apenas pagamentos em moedas virtuais (bitcoin) e usa CloudFlare (um CDN - Content Distribution Network) para proteger-se de ataques de negação de serviço e melhorar sua eficiência na entrega dos dados. Ah, também a identidade do registrante do domínio está oculta por um “procurador” de registro (“proxy”).

Quando se constatou o caso, uma liminar judicial solicitou que um “bloqueio técnico” fosse implementado. Lembra-nos algumas histórias passadas. Se o bloqueio filtra um determinado endereço IP, é bem provável que outros usuários inocentes do mesmo endereço possam acabar indevidamente bloqueados. Aconteceu no caso Ciccarelli, quando o IP bloqueado era o do youtube.com. Neste caso, por ser um IP ligado a um provedor de CDN, potencialmente centenas de sítios podem estar afetados. Se o bloqueio é do nome de domínio, via DNS, a missão de fazer com que todos os DNS acessíveis não traduzam aquele nome é hercúlea; na prática, impossível. Em ambos os casos há formas de contornar o bloqueio: em resumo, é difícil torná-lo uma medida efetiva.

E, mais complexo ainda, a que se visa com o bloqueio? Se a ideia é impedir o acesso a partir do Brasil, que alívio estamos dando aos donos dos dados? Estaremos dizendo que, graças às medidas tomadas, nós brasileiros agora não podemos mais aceder ao sítio problemático. O resto do mundo continua podendo! Perder “acesso ao problema”, não o resolve. É o que crianças fazem quando fecham os olhos para ignorar um monstro real ou imaginário.

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https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,quase-tudo-sobre-muitos,1740944
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