terça-feira, 22 de novembro de 2022

Narrativas - Rashomon

Rashomon é um filme japonês de 1950, escrito e dirigido por Akira Kurosawa e no Brasil renomeado para “Às portas do inferno”, que suscita analogias com o que temos hoje, especialmente após a difusão da internet urbi et orbi. Começa com tres personagens, um lenhador, um camponês e um religioso, buscando abrigo da chuva numa ruina de mosteiro e relembrando histórias passadas, que serão tratados em “flash back” no filme. O tema da conversa é o assassinato de um samurai, cujo cadáver o lenhador teria encontrado e denunciado imediatamente à polícia…

Quando da investigação sobre os motivantes do crime, ouviram-se tres depoimentos: o do pretenso assassino, o da mulher do samurai morto, e o improvável depoimento do próprio morto, que depôs através de um medium. O fato irremovível é que havia um cadáver, mas os tres depoimentos levavam a explicações totalmente diferentes. O bandido disse que preparou uma armadilha para atrair o samurai num local ermo, onde o amarrou, e que já se tinha engraçado pela mulher dele ao vê-la. Que, depois de inicialmente forçá-la, ela cedeu mas exigiu que ele duelasse com o marido, para que apenas um sobrevivesse. O bandoleiro soltou o samurai e acabou por matá-lo em duelo justo, quando ela se aproveitou para fugir. Na versão da mulher, ela, sob as vistas do samurai já amarrado, relacionou-se com o bandoleiro que, após o ato, fugiu. Envergonhada pelo feito, desamarrou o samurai e pediu que ele a matasse. Como ele passou a desprezá-la, ela, armada de um punhal e fora de sí, matou o marido, caindo desmaiada sobre ele. Na versão do morto, via medium, a própria mulher se interessou pelo bandoleiro e pediu que ele matasse seu marido, o samurai, para que ela não carregasse a vergonha de ter traido o marido. Neste momento o bandoleiro solta o samurai e pergunta a ele se prefere matar e mulher, ou que ela fuja. Ela foge e o samurai se mata com a adaga da própria esposa. O lenhador, que ouvira os depoimentos, quebra o próprio silëncio com uma quarta versão: a de que, após o encontro, o bandido teria pedido à mulher do samurai que aceitasse fugir com ele, e ela teria exigido então que eles duelassem por ela, para não serem ambos covardes. O samurai teria morrido no duelo.

Há alguma nobreza nas versões acima, mas falta coerência. Imagine-se o que aconteceria hoje, com a rede, se as quatro personagens de nossa história contassem suas versões aos seus seguidores, que as repetiriam com a adição de detalhes e ênfase. E como, e se, os que apenas lêssem os depoimentos conseguiriam ter ideia do que de fato se passou. Há uma frase de Nietzsche num fragmento de 1887 que diz que “não existem fatos, apenas interpretações”. E num mundo tão conectado, imediatista, e até mesmo superficial, as versões se multiplicam pelo simples fato de gerarem notoriedade e sensação de poder aos que as difundem, independentemente de haver base concreta para elas. Para tornar o cenário ainda mais crítico, leve-se em conta que muitas versões se basearão mais em convicções e interesses pessoais que nos fatos reais. Em outra frase, o mesmo Nietzsche nos alerta que ”as convicções representam maior perigo à verdade, que as próprias mentiras”...

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“o mundo tornou-se novamente infinito para nós, na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações” (Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 374)

"não há fatos eternos, assim como não há verdades absolutas." (Nietzsche, em Humano, demasiado humano)

"as convicções são mais perigosas inimigas da verdade do que as mentiras." (Nietzsche, em Humano, demasiado humano)

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https://www.youtube.com/watch?v=1WZZR8ceQEg

https://www.kobo.com/br/pt/ebook/rashomon-e-outros-contos-akutagawa

"Ryūnosuke Akutagawa ( 1892 - 1927) foi um escritor japonês ativo no Japão durante o período Taishō. Ele é considerado o "Pai do conto japonês", e é famoso por seu estilo e suas histórias ricas em detalhes que exploram o lado negro da natureza humana. Akutagawa é um dos escritores modernistas mais lidos no Japão. Suas histórias atemporais são investigações observadoras e brilhantes da natureza da própria literatura. Rashomon e outros contos inclui oito contos escritos por Akutagawa no período inicial e médio de sua carreira, entre 1915 e 1921. A "refeitura" ou imitação é um elemento importante de sua obra. Nessa coletânea, ele reconta uma série de fábulas históricas. Rashomon e outros contos faz parte da famosa coletânea: 1001 Livros Para Ler Antes de Morrer".




terça-feira, 8 de novembro de 2022

Ai de ti, Internet!

Parafraseando Rubem Braga em “Ai de ti, Copacabana”, e já pedindo todas as vênias pelo canhestro arremedo:

1. Ai de ti, Internet, porque já foi feito o sinal de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste.

2. Ai de ti, Internet, porque a ti chamaram Princesa, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras.

3. Já teu mar se concentrou de forma iníqua, e tu não viste o sinal.

4. Sem descentralização, como te governarás?

5. Grandes são as construções sobre ti, e elas se postam quais muralhas desafiando o mar; mas elas se abaterão.

6. E escuros peixes nadarão em teus canais, e a vasa fétida das marés cobrirá tua face.

7. E os polvos habitarão os teus porões e tuas lojas de vendas.

8. Então quem especulará sobre o valor de tuas informações? Pois na verdade não haverá informação alguma.

9. Ai dos que dormem em ti, e desprezam o vento e o ar exterior.

10. Ai dos que conseguiram bens rapidamente em ti, pois não terão tanta pressa quando virem a hora da provação.

11. Ai de teus perfis influenciadores, que servem como instrumentos de concupiscência.

12. Uivai, mancebos, e clamai donzelas, porque já se cumpriram vossos dias

13. Ai de ti Internet, porque quando for chegado o tempo de colher, tarrafas serão jogadas a partir de todos os lugares.

14. E os que estavam em aquários de vidro, serão finalmente libertados.

15. Porque discursais, fariseus da Internet? Acaso não é conhecida a multidão de vossos pecados?

16. Antes da perda, tua demência será ainda agravada. Usuários descerão uivando sobre ti e se voltarão contra teu corpo. Levará milênios para lavar teus pecados de um só verão.

17. E será reservado espaço para ti entre as algas, porque ali habitarás.

18. E estranhas legislações, qual siris, comerão o que restava ainda da tua autonomia e abertura, fantasmas de outrora.

19. Pois grande foi a tua vaidade e fundas foram tuas mazelas. Já se incendiaram os espíritos e não viste o sinal; já se tragou a liberdade e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

20. A rapina de teus mercadores, a libação de teus perdidos, e a ostentação de teus poderosos, tudo passará.

21. Assim, escuro alfanje ceifará tua comunicação, e muitos perecerão por se alimentarem de tuas falsidades.

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, pois em verdade é tarde para buscar o que já se perdeu, eis que a fúria te destruirá. Canta tua última canção, Internet!

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https://www.estadao.com.br/link/ai-de-ti-internet/
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Apocalipse 18:
https://www.bibliaon.com/apocalipse_18/

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A Crônica de Rubem Braga em
cronicabrasileira.org.br/cronicas/11534/ai-de-ti-copacabana

Rubem Braga, Ai de ti Copacabana!, 13 de novembro de 1959

1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.

2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia.

4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.

5. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.

6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.

7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.

8. Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.

9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.

10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.

11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.

12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.

13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.

14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.

15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?

16. Antes de te perder eu agravarei s tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.

17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.

18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.

19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.

21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!
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Rubem Braga