Rashomon é um filme japonês de 1950, escrito e dirigido por Akira Kurosawa e no Brasil renomeado para “Às portas do inferno”, que suscita analogias com o que temos hoje, especialmente após a difusão da internet urbi et orbi. Começa com tres personagens, um lenhador, um camponês e um religioso, buscando abrigo da chuva numa ruina de mosteiro e relembrando histórias passadas, que serão tratados em “flash back” no filme. O tema da conversa é o assassinato de um samurai, cujo cadáver o lenhador teria encontrado e denunciado imediatamente à polícia…
Quando da investigação sobre os motivantes do crime, ouviram-se tres depoimentos: o do pretenso assassino, o da mulher do samurai morto, e o improvável depoimento do próprio morto, que depôs através de um medium. O fato irremovível é que havia um cadáver, mas os tres depoimentos levavam a explicações totalmente diferentes. O bandido disse que preparou uma armadilha para atrair o samurai num local ermo, onde o amarrou, e que já se tinha engraçado pela mulher dele ao vê-la. Que, depois de inicialmente forçá-la, ela cedeu mas exigiu que ele duelasse com o marido, para que apenas um sobrevivesse. O bandoleiro soltou o samurai e acabou por matá-lo em duelo justo, quando ela se aproveitou para fugir. Na versão da mulher, ela, sob as vistas do samurai já amarrado, relacionou-se com o bandoleiro que, após o ato, fugiu. Envergonhada pelo feito, desamarrou o samurai e pediu que ele a matasse. Como ele passou a desprezá-la, ela, armada de um punhal e fora de sí, matou o marido, caindo desmaiada sobre ele. Na versão do morto, via medium, a própria mulher se interessou pelo bandoleiro e pediu que ele matasse seu marido, o samurai, para que ela não carregasse a vergonha de ter traido o marido. Neste momento o bandoleiro solta o samurai e pergunta a ele se prefere matar e mulher, ou que ela fuja. Ela foge e o samurai se mata com a adaga da própria esposa. O lenhador, que ouvira os depoimentos, quebra o próprio silëncio com uma quarta versão: a de que, após o encontro, o bandido teria pedido à mulher do samurai que aceitasse fugir com ele, e ela teria exigido então que eles duelassem por ela, para não serem ambos covardes. O samurai teria morrido no duelo.Há alguma nobreza nas versões acima, mas falta coerência. Imagine-se o que aconteceria hoje, com a rede, se as quatro personagens de nossa história contassem suas versões aos seus seguidores, que as repetiriam com a adição de detalhes e ênfase. E como, e se, os que apenas lêssem os depoimentos conseguiriam ter ideia do que de fato se passou. Há uma frase de Nietzsche num fragmento de 1887 que diz que “não existem fatos, apenas interpretações”. E num mundo tão conectado, imediatista, e até mesmo superficial, as versões se multiplicam pelo simples fato de gerarem notoriedade e sensação de poder aos que as difundem, independentemente de haver base concreta para elas. Para tornar o cenário ainda mais crítico, leve-se em conta que muitas versões se basearão mais em convicções e interesses pessoais que nos fatos reais. Em outra frase, o mesmo Nietzsche nos alerta que ”as convicções representam maior perigo à verdade, que as próprias mentiras”...
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“o mundo tornou-se novamente infinito para nós, na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações” (Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 374)
"não há fatos eternos, assim como não há verdades absolutas." (Nietzsche, em Humano, demasiado humano)
"as convicções são mais perigosas inimigas da verdade do que as mentiras." (Nietzsche, em Humano, demasiado humano)
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https://www.youtube.com/watch?v=1WZZR8ceQEg
https://www.kobo.com/br/pt/ebook/rashomon-e-outros-contos-akutagawa
"Ryūnosuke Akutagawa ( 1892 - 1927) foi um escritor japonês ativo no Japão durante o período Taishō. Ele é considerado o "Pai do conto japonês", e é famoso por seu estilo e suas histórias ricas em detalhes que exploram o lado negro da natureza humana. Akutagawa é um dos escritores modernistas mais lidos no Japão. Suas histórias atemporais são investigações observadoras e brilhantes da natureza da própria literatura. Rashomon e outros contos inclui oito contos escritos por Akutagawa no período inicial e médio de sua carreira, entre 1915 e 1921. A "refeitura" ou imitação é um elemento importante de sua obra. Nessa coletânea, ele reconta uma série de fábulas históricas. Rashomon e outros contos faz parte da famosa coletânea: 1001 Livros Para Ler Antes de Morrer".