terça-feira, 20 de junho de 2023

O busílis da questão

Que sempre houve mal-intencionados, fraudadores e mentirosos é inegável. Mas, graças à Internet e sua onipresente agilidade, tudo circula muito rapida e superficialmente. Somemos uma certa fragilização dos que participam no processo: afinal há muitos neófitos na era da comunicação digital não desenvolveram ainda couraça ou filtro para separar o joio do trigo, e fica fácil entender a corrida, nem sempre racional e sensata, em busca de lenitivos para os males que nos afligem.

Na última reunião da ICANN, semana passada nos EUA, Washington, um tema continua em voga: como tratar do chamado “abuso do DNS”. O DNS é o sistema que cuida dos nomes de domínio dos locais, entes e serviços na Internet. Ele visa a traduzí-los para números IP – os reais identificadores na rede. É claro que há sítios na Internet que tem conteúdos inadequados, propositadamente falsos ou, mesmo, ilegais numa dada cultura e legislação. Mas também é claro que a rede e o DNS propiciam formas de se identificar onde esses conteúdos estão alocados. O caminho que parece adequado é ir-se direto ao responsável pelo sítio onde o conteúdo se hospeda e verificar o que ocorreu (afinal, o sítio pode ter sido invadido, e o conteúdo lá encontrado sequer ser de conhecimento do reponsável listado).

Mas os “apressados em buscar soluções rápidas” advogam que remover o nome de domínio da tabela do DNS, prescindindo até de exame judicial prévio do caso, pode ser uma solução. Tirar a funcionalidade de um nome de domínio não implica em remover o conteúdo visado ou a possibilidade de acesso a ele. E pode ser um alerta para que o malfeitor apague as provas e “reencarne” com outro nome de domínio, em outro lugar da rede. A função de um registro da Internet é simplesmente prover uma tradução rápida e eficiente de um nome de domínio para um endereço IP. Não passa nem perto do tema “conteúdo eventualmente lá hospedado”. Não é diferente do que um serviço de localização de endereços faz, quando pedimos para levar-nos a uma rua. Faria sentido que ele respondesse “Não posso levá-lo a essa rua. Dizem que lá há atividade considerada ilegal”?

Atalhos como esses, para aliviar tensões e amenizar problemas, apenas tendem a piorar as coisas e atingir inocentes que nada tem com a questão. É fundamental entender a Internet antes de tomar providências açodadas, até porque o próprio conceito do que seja legal varia. Há países em que bebida alcoólica é ilegal, e outros em que a venda de drogas é legal. Na Internet, tudo deve poder ser acessado, e o ônus de alguém usar um serviço ilegal numa jurisdição pode ser até mesmo do próprio usuário. Duas frases no tema: de G. K. Chesterton, “não é que eles não consegam encontrar a solução. É que eles nem conseguem enxergar o problema”, e de H. L. Mencken, "sempre há uma solução fácil para cada problema complexo – uma solução simples, aceitável e… errada."

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comentário sobre "busílis", palavra que está consignada no dicionário Moraes, portanto pode ser usada sem susto:
https://pt.wiktionary.org/wiki/bus%C3%ADlis
"A origem de busílis é controversa. Vem do latim "in diebus illis" (naqueles dias), o qual algum copista dividiu ao final da página como "in die" e na outra como "bus illis" gerando controvérsia sobre o significado de "busílis" até que se percebeu o problema central era a própria palavra."
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ICANN77
https://meetings.icann.org/en/icann77

"DNS abuse"
https://www.icann.org/dns-security-threat
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terça-feira, 6 de junho de 2023

Tecnologia e neologismos...

"As odds de uma bet"

Efeito lateral da tecnologia é sua interferência na liguagem. Em adição, temos hoje IA gerando textos em português escorreito. Arrisco colocar minha colher torta nisso: causa um certo desconforto ver a introdução descuidada de novos vocábulos. Tecnologia, área pródiga em novidades, precisa de que palavras sejam criadas, neologismos que expressem melhor novos entes e conceitos. Nada há de errado nisso, mas deveríamos ter cuidado na ânsia de nos mostrarmos “atualizados”. Penso que há ao menos tres aspectos a avaliar no momento de usarmos um neologismo ou um estrangeirismo: que sua necessidade seja real (não apenas um sinônimo charmoso de palavra já existente), que se busque, assim que possível, seu aportuguesamento conforme as regras da linguagem, e que, na criação de eventuais compostos, respeitemos as regras e a semântica dos radicais usados (lembrando que “fobia” é medo...)

Adotou-se “futebol”, o aportuguesamento do importado “football” (e prevaleceu sobre propostas bizarras, como “ludopédio” ou “pedibólio”: não há como, nem porque, insistir numa inglória luta ao que caiu no uso popular). A mesma lógica gerou abajur, charme, sutiã e, recentemente, copidesque, leiaute, becape - vocábulos aportuguesados que enriquecem o idioma. O risco é que, no afã de inovar, esquecem-se expressões preexistentes perfeitas. Precisaríamos de “delivery” no lugar de nossa antiga “entrega a domicílio”? (e, sendo proparoxítona, que ao menos se gravasse “delíveri”). A disseminação de “delivery” parece irreprimível, mas por que usaríamos “printar” no ligar de “imprimir”, ou “off” se temos “desconto”? Mostrengos ainda piores grassam por ai: outro dia mesmo ouvi no rádio, “profitizar” no sentido de lucrar, render (do inglês “profit”). Há quem use “bet” como sinônimo de “aposta” e “odds” como alternativa para “probabidade”. Parece que um “poder oculto” é conferido a quem utilizar palavra importada, mesmo quando há sua conhecida correspondente nacional…

Um último ponto que talvez mereça alguma atenção é o uso de sons de caracteres que não faziam parte do idioma de Camões… Esses estrangeirismos ainda não aportuguesados, segundo Napoleão Mendes de Almeida, deveriam aparecer apoiados em muletas: aspas ou itálico. Ouvir um “i” ter som de “ai” como em “site”, dificulta os que estão aprendendo português. O brilhante e saudoso Millôr escrevia “saite” para sítio na Internet: uma palavra que os anglófonos importaram do latim e nos, ao a reimportarmos, aceitamos usar seu “i” com som de “ai”…Miremo-nos no exemplo de futebol, basquete, beque, que se “vestiram de português” para bem frequentar nossa língua.

Para encerrar a encrenca em que me meti, leio que, depois de Carlos I, e Carlos II, temos agora Charles III… Se no passado nomes de reis eram convertidos ao nosso idioma sempre que possível, agora os mantemos na língua de origem? Não será mais Luiz XV, mas Louis XV? Teremos Richard, the Lionhart em lugar de Ricardo Coração de Leão? Pedro, o Grande, passará a Pyotr?

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Sobre neologismos e estrangeirismos

https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/neologismos-e-estrangeirismos/7408

https://repositorio.ifpb.edu.br/handle/177683/751

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odds e bet

A Wikipedia redireciona "odds" para "chance":

https://pt.wikipedia.org/wiki/Chance

Já para "bet" - aposta - há um monte de sítios tratando desse tema...