terça-feira, 24 de setembro de 2024

Primo Vere

Estamos no terceiro dia de primavera de 2024. Aconteceu-me rever Carmina Burana, de Carl Orff, que começa e termina com a magnífica “O Fortuna!”. A segunda parte da cantata, Primo Vere, trata da chegada da primavera e de seus efeitos em nossa vida, ânimo e ações. Inicia com “A alegre face da primavera mostra-se ao mundo, enquanto o duro inverno foge derrotado”…

O mundo hoje é mais complexo do que era à época desses versos, há uns 1000 anos. Uma outra lembrança vem, bem mais recente e menos otimista: os textos de Franz Kafka, cuja morte fez 100 anos em julho. Quando tratamos de “previsões sombrias” nossas referências normalmente, ligam-se a Aldoux Huxley, (Admirável Mundo Novo, Os Demônios de Loudun) e George Orwell (1984, Fazenda dos Animais). Mais de vinte anos antes deles, Kafka escreveu o que pareceria então “odes ao absurdo”, como A Metamorfose e O Processo, mas que podem ser lidos também como advertências ao que poderia estar nos espreitando…

Nelas Kafka capturou a essência do “non sense” e da alienação que, afinal. permeiam a condição humana. Embora escritos no início do século XX, ressoam profundamente no estado atual de um mundo onde, sob o peso da globalização, da tecnologia avançada e de crises políticas e sanitárias, é cada vez mais frequente que a desorientação e a desumanização se manifestem.

Em “A Metamorfose”, Gregor Samsa acorda uma manhã para descobrir-se transformado em uma enorme barata. Isso poderia ser relido como um sentimento de alienação experimentado no mundo moderno. Hoje, essa metamorfose se manifesta na forma como as redes sociais alteram as identidades pessoais, na sensação de nossa impotência diante dessas forças gigantescas e, muitas vezes, nas alterações que essa “transformação” provoca no tratamento que recebemos dos outros. Mais ainda, e da mesma forma que se passa com Josef K em "O Processo", sentimo-noss à mercê de sistemas burocráticos que parecem funcionar independentemente da lógica.

O crescimento das notícias falsas, a erosão de liberdades em nome de “maior segurança”, o uso de algoritmos e dados que modelam e controlam nosso comportamentos, são reflexos de um enredo kafkiano, que revela um mundo arbitrário, labiríntico e opaco. A era digital, com sua promessa de conectividade e amplo acesso à informação, pode sorrateiramente trazer mais alienação e desumanização. E nem precisamos lembrar de efeitos da IA para constatar que essa transformação, como aconteceu com Gregor Samsa, pode nos isolar da comunidade além de comprometer ainda mais nossa privacidade.

Ao examinarmos qualquer coisa hoje em dia, é crítico ir à fonte, e não simplesmente dar ouvidos aos áulicos. Nosso Marco Civil na Internet, por exemplo, foi belamente construído em processo que durou anos. Devemos lê-lo diretamente para podermos tirar conclusões e julgamento, e não seguir apenas ao sabor das narrativas.

A canção nos recomenda que “nesta solene primavera, nos alegremos com a novidade das coisas, e sigamos a autoridade das fontes”. Boa primavera! 

===

trecho de "O Processo", de Franz Kafka:


https://vestibular.uol.com.br/resumos-de-livros/trechos-do-livro-o-processo.htm

"Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum. A cozinheira da senhora Grubach, sua locadora, era a pessoa que lhe trazia o café todos os dias por volta de oito horas, mas dessa vez ela não veio. Isso nunca tinha acontecido antes...."

===

Carmina Burana, Cantiones Profanae

https://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana_(Orff)



===

As tres canções que compõem o Primo Vere

VERIS LETA FACIES

Veris leta facies

mundo propinatur,
hiemalis acies
victa iam fugatur,
in vestitu vario

Flora principatur,
nemorum dulcisono
que cantu celebratur. Ah!

Flore fusus gremio
Phebus novo more
risum dat, hac vario
iam stipate flore.
Zephyrus nectareo
spirans in odore.
Certatim pro bravio
curramus in amore. Ah!

Cytharizat cantico
dulcis Philomena,
flore rident vario
prata iam serena,
salit cetus avium
silve per amena,
chorus promit virgin
iam gaudia millena. Ah!

OMNIA SOL TEMPERAT

Omnia sol temperat
Purus et subtilis
Novo mundo reserat
Faciem aprilis
Ad amorem properat
Animus herilis
Et iocundis imperat
Deus puerilis

Rerum tanta novitas
In solemni vere
Et veris auctoritas
Jubet nos gaudere
Vias prebet solitas
Et in tuo vere
Fides est et probitas
Tuum retinere

Ama me fideliter
Fidem meam nota
De corde totaliter
Et ex mente tota
Sum præsentialiter
Absens in remota
Quisquis amat taliter
Volvitur in rota

ECCE GRATUM

Ecce gratum
et optatum
ver reducit gaudia
purpuratum
floret pratum
sol serenat omnia
iamiam cedant tristia!
estas redit
nunc recedit
hyemis servitia.

Iam liquescit
et decrescit
grando, nix et cetera,
bruma fugit
et iam sugit
ver estatis ubera;
illi mens est misera,
qui nec vivit,
nec lascivit
sub estatis dextera.

Gloriantur
et letantur
in melle dulcedinis
qui conantur,
ut utantur
premio Cupidinis;
simus jussu Cypridis
gloriantes
et letantes
pares esse Paridis.

===

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Teorias conspiratórias


A criação de artefatos que visassem a imitar um humano é antiga obsessão. Para citar alguma referência não tão distante, Descartes em seu Discurso para o Método (1637) já cogitava um dia haver máquinas que simulassem reações humanas, mas assumia que seria muito fácil distingir as máquinas dos humanos. Na linha de engôdos, um caso que teve bastante repercussão foi o “turco mecânico”, pretensa máquina que jogava xadrez em nível bem elevado exibida entre 1770 e 1864, com bastante sucesso em toda a Europa.

A possibilidade de se emular o comportamento humano nunca saiu de cena, e ganhou ainda mais ímpeto com o surgimento do computador. Marco clássico disso foi a proposta por Alan Turing, 1950, de haver um teste para distinguir se um pretenso interlocutor, atrás de um biombo, era humano ou máquina. E para escapar da dificuldade em definir “pensar”, Turing chamou-o de “jogo da imitação”.

Semana passada, em evento de lançamento do “Observatório Brasileiro de IA”, houve uma interessante palestra de Wagner Meira, UFMG, que abordou experimentos e aspectos técnicos da aprendizagem de máquina. Recomenda-se aos interessados que assistam a ela, disponível na rede; alguns dos dados trazidos são muito interessantes. Num ponto examina-se o que acontece de imprevisível com o aprendizado de máquina quando, ao oferecer-lhe um conjunto de dados para um objetivo específico, ela extrapola gerando “aprendizado” em pontos não previstos. Por exemplo, a partir de conjuntos de eletrocardiogramas para detecção de doenças, a IA gerou ainda uma previsão de expectativa de vida dos examinados.

Outro resultado curiosíssimo veio de submeter ao ENEM tradicional diversos aplicativos LLM disponíveis hoje.O resultado foi bastante inesperado: em linguagem, humanidades e ciências naturais IA teve desempenho equivalente ou melhor que os humanos, destacando-se bastante em alguns casos. Porém, em matemática os LLM fracassaram claramente. Como justificar isso? A princípio pode-se dizer que o universo de dados é muito mais rico em exemplos de linguagem, que em resolução de problemas, mas pode-se também olhar sob outro prisma: linguagem é o apanágio que nos fez humanos. Dominar a linguagem é a forma de pensamento que temos. E nesse espaço as LLM vão espantosamente bem!. As comezinhas máquinas de calcular que se preocupem em fazer conta. IA está buscando a âmago da humanidade: o domínio da linguagem. E sai-se muito bem aí.

Ludwig Wittgenstein elaborou sobre a interação entre o pensamento e a linguagem. Seu aforismo 5.6, do Tractatus Logico-Philosophicus, diz: “O limite de minha linguagem marca os limites de meu mundo”…

Voltando ao Teste de Turing, uma máquina que acertasse todas as questões matemáticas dificilmente passaria por “humano”. Afinal, erramos bastante aí. Assim, as LLM. ao irem melhor em humanidades que em matemática, garantem maiores possibilidades de passar no teste. Um comportamento “humano, demasiadamente humano”...

É temerário tentar um diagnóstico do ponto onde nos achamos. O Tractatus fecha com o enigmático aforisma 7: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”.

===
O teste de Turing
https://pt.wikipedia.org/wiki/Teste_de_Turing


"Em 1966, Joseph Weizenbaum criou um programa que aparentava passar no Teste de Turing. O programa, denominado ELIZA, trabalhava examinando comentários digitados por um usuário procurando por palavras-chave. Se uma palavra-chave era encontrada, a regra que transforma o comentário do usuário era aplicada e a sentença resultante retornada. Se nenhuma palavra-chave era encontrada, ELIZA retornava uma resposta genérica ou repetia o retorno do comentário anterior.[22] Além disso, Weizenbaum desenvolveu ELIZA de modo a replicar o comportamento de um psicoterapeuta Rogeriano, permitindo ELIZA, assim, ser "quase que livre para assumir uma postura de desconhecimento total do mundo real".[23] Com essas técnicas, o programa de Weizenbaum foi capaz de fazer com que pessoas acreditassem que estavam falando com um ser humano, ao ponto de, para algumas pessoas ser "muito difícil de convencê-las que ELIZA [...] não é um humano".[23] Assim, ELIZA foi considerada por alguns como um programa (talvez o primeiro) a passar no Teste de Turing,"

===




"O Turco foi uma máquina de jogar xadrez supostamente provida de inteligência artificial construída na segunda metade do século XVIII. De 1770 até sua destruição num incêndio em 1854, foi exibido por vários proprietários como um autômato, apesar de o seu funcionamento ter sido revelado no início da década de 1820 como um elaborado hoax.[1] Construído em 1770 por Wolfgang von Kempelen (1734–1804) para impressionar a Imperatriz Maria Teresa da Áustria, o mecanismo parecia ser capaz de jogar um partida contra um forte oponente humano, assim como executar o problema do cavalo, onde o Cavalo deve ser movimentado no tabuleiro de modo a ocupar cada casa somente uma vez."

===
Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Tractatus_Logico-Philosophicus


https://www.gutenberg.org/files/5740/5740-pdf.pdf


5.6 The limits of my language mean the limits of my world.
7 Whereof one cannot speak, thereof one must be silent

===
A palestra de Wagner Meira
https://www.youtube.com/watch?v=O9czIDgeVFI&t=1838s
===