segunda-feira, 18 de abril de 2016

Entre o Santo e o Demo

Em 10 de abril é comemorado o dia de São Terêncio e da Engenharia. Hoje cada dia santo é dia de algo, e engenharia tem seus atrativos, ao menos para mim. Mesmo quando, um pouco constrangido, li com colegas o juramento: “… não me deixarei cegar pelo brilho excessivo da tecnologia, de forma a não me esquecer de que trabalho para o bem do homem…” Excetuando o juramento dos médicos, de origem antiga e ilustre, os demais são instantes embaraçosos nas formaturas.


Não posso ser acusado de ver o “brilho excessivo”. Aliás, sou até refratário em alguns casos. Essa falta de entusiasmo pode dever-se a um certo desencantamento com os novos tempos, mas, também, por tentar sopesar prós e contras. Por exemplo, a velha forma de pegar um táxi no ponto, ou acenar para um deles na rua, não é tão confortável como usar um aplicativo e muito menos charmosa. Mas além do “bom dia” e do endereço de destino, não preciso dizer mais nada ao taxista. Não passo meu telefone e endereço, nome completo, dados do cartão de crédito.

Por outro lado, acabamos de ler que, em seu relatório de transparência, o Uber repassou dados de 12 milhões de usuários aos órgãos de controle norte-americanos. Coisas que, via aplicativo, ficarão armazenadas por tempo ilimitado, em lugares misteriosos e à disposição de desconhecidos. Essa pequena “barganha mefistofélica”, de ganhar vantagens e atrativos grátis, levará em troca parte de minha alma privada. Sei que posso estar pregando bobagens e que o defeito é meu, porém turrão como sou, prefiro esperar um táxi livre passar, mesmo tendo um telefone no bolso e a possibilidade dos mágicos aplicativos. E sou dos que leem as letras miúdas dos contratos de adesão e tento avaliar o que eles querem de mim, em troca da felicidade que oferecem. Creiam-me, às vezes não vale a pena.

Pagar um pedágio automaticamente repassa ao sistema nosso trajeto e horários. O celular ligado permite conhecer a posição e, com aplicativos instalados, os deslocamentos são conhecidos. Recebemos propaganda de hotéis e de restaurantes nas proximidades. Passagens aéreas compradas farão com que sejamos avisados que estamos atrasados para embarque.

Há dois meses pensei em comprar um prosaico alicate pela internet e ainda hoje sou assombrado por figuras de alicates que aparecem nas telas de minha navegação, como se minha vida se resumisse na busca do “alicate ideal”. Claro que há muito conforto nisso tudo, mas a quantidade de dados coletada e devidamente digerida por ferramentas de “Big Data” é o lado obscuro do pacto que assinamos. E também não aceito o argumento de que “assinei, mas não li”. Parece um pedido de tutela. Somos crescidos e devemos ser responsáveis pelas nossas decisões, mesmo numa época em que há uma crescente tentação de permanecer na meninice e na superficialidade. De alguma forma, a maturidade hoje demora a chegar para muitos, quando chega.

Sou engenheiro e prefiro, antes, ler a regra do jogo tecnológico. Fausto, que tinha lido bem o contrato que assinara com o Demo, conseguiu livrar-se no último momento. Sorte dele!

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https://link.estadao.com.br/blogs/demi-getschko/entre-o-santo-e-o-demo/
18/04/2016 | 05h00

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