terça-feira, 29 de maio de 2018

Eça e três pecados sociais


Há uma carta a “Bento de S.” na “Correspondência de Fradique Mendes”, delicioso texto do Eça de Queiroz. É de 1900, mas parece de ontem. Nela a personagem Fradique apostrofa Bento pela ideia de fundar um jornal.

“Meu caro Bento, a tua ideia de fundar um jornal é daninha e execrável. Tu vais concorrer para que no teu tempo e na tua terra se aligeirem mais os Juízos ligeiros, se exacerbe mais a Vaidade, e se endureça mais a Intolerância. Juízos ligeiros, Vaidade, Intolerância - eis três negros pecados sociais que, moralmente, matam uma Sociedade!”

Três “negros pecados sociais” ainda mais claramente visíveis hoje. Troque-se “jornal” por “rede social” (abaixo troquei por “X”), e teste a atualidade da carta. 

Sobre o primeiro pecado, juízos ligeiros: “é com impressões fluidas que formamos as nossas maciças conclusões. Largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos ‘Este é uma besta! Aquele é um maroto!’. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há ação individual ou coletiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda. Por um gesto julgamos um caracter: por um caracter avaliamos um povo”.

No segundo pecado, a vaidade, em tempos de narcisismo em alta e da compulsiva necessidade de sermos vistos, a carta vai certeira: “a forma nova da vaidade para o civilizado consiste em ter o seu rico nome impresso no X, a sua rica pessoa comentada: eis hoje a impaciente aspiração e a recompensa suprema! O mundo quer agachar sob as duas asas que o levem à gloríola, lhe espalhem o nome pelo ar sonoro. E é por isso que os homens se perdem, e as mulheres se aviltam, e os políticos desmancham a ordem do Estado, e os artistas rebolam na extravagância estética, e os sábios alardeiam teorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os gêneros, surge a horda ululante dos charlatães. Vê quantos preferem ser injuriados a serem ignorados!”

Finalmente, a intolerância, o pecado mais atro, cria-se um novo espaço para o seu exercício, baseado em espaços murados: “dentro desse murozinho, onde plantas a tua bandeirola com o costumado lema de imparcialidade, desinteresse, etc., só haverá, inteligência, dignidade, saber, energia, civismo.

Para além desse muro, só haverá necessariamente sandice, vileza, inércia, egoísmo, traficância!”. São esses muros que impedem uma pacificação. Seria possível um eventual “aperto de mãos”, “naquele gesto hereditário que funda os pactos”, “se cada manhã X não avivasse os ódios de Princípios, de Classes de Raças, e, com os seus gritos, os acirrasse como se acirram mastins até que se enfureçam e mordam.”. Mundo dividido entre “réprobos” e “eleitos”. “X exerce hoje todas as funções malignas do defunto Satanás, de quem herdou a ubiquidade; e é não só o Pai da Mentira, mas o Pai da Discórdia”, lhes sopra na alma a intransigência, e os empurra à batalha, e enche o ar de tumulto e de pó. Não só atiça as questões já dormentes como borralhos de lareira até que delas salte novamente uma chama furiosa - mas inventa dissensões novas”.

E o típico fecho irônico: “Onze horas! Ora esta carta já vai muito tremenda e verbosa. Eu tenho pressa de a findar, para ir, ainda antes do almoço, ler meu jornal, com delícia. - Teu Fradique”. 

Sob o sol, nada de novo...



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