terça-feira, 13 de novembro de 2018

Em busca de alicerce

Avanços da tecnologia sempre provocam especulações sobre o “futuro da humanidade”. Já quanto à linguagem escrita, Sócrates, cujas ideias chegaram até nós transcritas por Platão, achava que escrever sobre algo era bem mais pobre que discutir oralmente sobre aquele tema. Seria uma representação limitada do argumento, como um retrato é em relação ao retratado. A chegada e a popularização da imprensa também gerou alertas, para não falar das diatribes sobre a revolução industrial. Estamos às voltas com a revolução da informática e da automação e, desta vez, pode ser que realmente haja motivos sérios para preocupação.

Uma forma de olhar para o que vem pela frente passa por constatarmos que agora há uma liderança da tecnologia em relação ao peso que damos a outras considerações mais humanísticas. O poder computacional cresce exponencialmente há décadas e nos leva a um descompasso com outras estruturas de pensamento. Afinal, tudo o que pode ser feito acabará por ser feito, ou seja, podem ser inúteis maiores preocupações com as consequências.

Topei com o artigo “O fim do Iluminismo”, do conhecido Henry Kissinger, em que ele examina a necessidade de uma política associada aos avanços da Inteligência Artificial. Um trecho, já no final do artigo, chamou-me a atenção. Traduzo-o rudimentarmente: “O iluminismo foi liderado por avanços na filosofia, disseminados pelas tecnologias então existente. Nossa época move-se em direção oposta. Geramos uma tecnologia potencialmente dominante, sem uma filosofia orientadora. (...) Assim, penso que a prioridade acima das demais deveria ser buscar formas de relacionar Inteligência Artificial com a nossa tradição humanística”.

Muitos já comentaram, por exemplo, sobre um dilema na programação de carros autônomos e como lidar com acidentes inevitáveis. A programação deveria buscar diminuir o número de vítimas? Ou fazer uma escolha entre as vítimas potenciais por gênero? Idade? Status? Deveria buscar a preservação do proprietário e passageiros do veículo acima de outras vidas? O prestigioso MIT (Instituto de Tecnologia de Massachussetts) criou uma forma de mapear as respostas que se obtêm, mundialmente, a esses quesitos éticos. Está em moralmachine.mit.edu. O mais perturbador, entretanto, é notar que as respostas obtidas mostram perfis éticos/morais bem diversos, conforme a cultura e costumes locais. Certamente a Internet tem “culpa no cartório” quando facilitou o acesso a todos, sem distinções de cultura local, interesses, formação. Hoje Sócrates estaria batendo boca numa rede social e é bem provável que alguém pedisse sua exclusão. Não é claro para onde vamos mas, em contraponto ao inegável benefício de expressão que a Internet possibilita a todos, há também que se manter em vista valores éticos inscritos em nossa cultura. Vem-me à mente um texto de Chesterton em que defende uma democracia onde todos devem ter voz, não apenas os que estão vivos. “A voz de nossos mortos chama-se tradição. É a parte da democracia que inclui nossos ancestrais, e que não se submete aos que estamos momentaneamente vivos”.

Parece-me vital voltarmos a buscar algum alicerce com raízes mais profundas.

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Qual deve ser a decisão de um veículo autodirigido?
moralmachine.mit.edu
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"O Fim do Iluminismo"
https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2018/06/henry-kissinger-ai-could-mean-the-end-of-human-history/559124/
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em "Orthodoxy" G. K. Chesterton
http://www.leaderu.com/cyber/books/orthodoxy/ch4.html

<...> Tradition may be defined as an extension of the franchise. Tradition means giving votes to the most obscure of all classes, our ancestors. It is the democracy of the dead. Tradition refuses to submit to the small and arrogant oligarchy of those who merely happen to be walking about. All democrats object to men being disqualified by the accident of birth; tradition objects to their being disqualified by the accident of death. Democracy tells us not to neglect a good man's opinion, even if he is our groom; tradition asks us not to neglect a good man's opinion, even if he is our father. I, at any rate, cannot separate the two ideas of democracy and tradition; it seems evident to me that they are the same idea. We will have the dead at our councils. The ancient Greeks voted by stones; these shall vote by tombstones. <...>
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