terça-feira, 12 de novembro de 2019

Voto ou consenso?


Terminou mais uma reunião da ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and
Numbers), organização que cuida de nomes e números na Internet, especialmente do
conteúdo da “raíz de nomes” na rede, onde estão registrados os “sobrenomes” gerais. Desta
raíz constam os conhecidos .com, .net, .org, e os de países, como .br, .de, .it etc.

Tópicos recorrentes nos últimos encontros envolvem a definição de normas para uma nova
chamada de interessados por um “sobrenome” genérico. São cuidados a tomar, além da
definição dos procedimentos, a proteção de nomes especiais, como os geográficos. Não
seria razoável, por exemplo, que alguém postulasse o registro de .Itália, sem que houvesse
alguma relação com o país em questão. Até para que se evite, por exemplo, a repetição de
um problema, que hoje se arrasta por 7 anos: o “sobrenome” .Amazon deveria ser delegado
a uma empresa comercial ou, por ser nome de uma região, ser reservado? Vota-se quanto a
isso, ou busca-se um consenso?

Há hora do voto geral e livre, como é o caso dos processos democráticos de eleições
majoritárias, e há hora de se buscar consenso. Um exemplo mais claro deste caso é o
funcionamento do IETF (Internet Engineering Task Force), que cuida em suas reuniões da
formulação de eventuais novos padrões técnicos para a rede. Quando se trata de uma
reunião de especialistas num tema, é raro e talvez pouco razoável, que se decida por
votação. Uma analogia simplória pode ajudar a jogar luz: imaginemos 11 engenheiros civis,
os melhores da área, discutindo sobre a segurança de um determinado projeto de ponte de
concreto. Digamos que, ao final, 5 deles digam que não é seguro, enquanto 6 afirmem que
é sólido. Deveria a ponte ser construída, ou não? Um cidadão comum estaria
confortavelmente protegido sob a tal ponte? No âmbito do IETF, num caso assim, o
resultado provável seria: “Não há decisão. Continuaremos a discutir”. Se todos os 11 são
especialistas que dominam profundamente projeto de pontes, mas discordam da
conclusão, não há como se buscar uma solução por voto: não há “representatividade” (não
se pode argumentar que as opiniões representem a vontade geral), nem se pode ignorar
que a ênfase de cada um, a favor ou contra, pode ser muito diferente. Um caminho
possível seria algo como o “concílio papal”: trancam-se os 11 especialistas numa sala, sem
contacto externo, e eles discutem entre si até sair a “fumaça branca” do consenso, e o
resultado agora poder divulgado a todos: “habemus papam”!

Consenso não representa nem unanimidade, nem sequer maioria. Representa uma
proposta que, mesmo desagradando a muitos, não provoca objeções fundamentadas
veementess. Ou seja, a proposta é algo com que todos podemos viver, mesmo que
individualmente tivéssemos soluções ligeiramente diferentes. Um processo interativo, de
discussão entre especialistas, usualmente não é algo que de valha de um “voto de maioria”.

Em 1992 Davis Clark cunhou o que seria o lema mais conhecido sobre o processo de
decisão do IETF: “Nós rejeitamos reis, presidentes e votação. Nós acreditamos em
consenso simples, e código bem escrito”. Como alertaria o impagável e insubstituível
Millôr, “é proibido e ilegal ler o texto nas entrelinhas”...

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The Tao of IETF - A Novice's Guide to the Internet Engineering
https://ietf.org/about/participate/tao/
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'Rough Consensus and Running Code' and the Internet-OSI Standards War
https://ieeexplore.ieee.org/abstract/document/1677461
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O Livro do IETF
https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/o-livro-do-ietf.pdf
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Millôr
http://observatoriodaimprensa.com.br/mural/ed688-tantos-anos-de-millor/




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