terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Ultracrepidanismo e Dogma

Esse “palavrão” aí do título é consignado em dicionários e foi montado a partir de uma expressão latina, atribuída a Plínio, o velho: “sutor, ne ultra crepidam”. Narra Plínio que houve na ilha de Cós, na antiga Grécia, um famoso pintor chamado Apeles, que teria sido inclusive o retratista de Alexandre o Grande. Apeles expunha suas obras para receber comentários e, numa delas, estava retratado um guerreiro com escudo e sandálias (crepida, em latim). Um sapateiro, ao ver a pintura, aproveitou para comentar que tiras das sandálias representadas não correspondiam às que se faziam em sapatarias. Apeles ouviu o comentário e, rapidamente, retocou o quadro. No dia seguinte o sapateiro passou de novo pelo local e, ao ver que as sandálias tinham sido retocadas, passou a fazer novas críticas sobre outros detalhes da obra. Apeles, desta vez, não quis ouvir as sugestões: “sapateiro, não vás além das sandálias” teria sido sua resposta ao impertinente sapateiro.

Assim, ultracrepidanismo é o ato de “palpitarmos” sobre temas que vão além de nosso domínio.

Com raras e honrosas exceções (nas quais lamentavelmente não me incluo) e tentados pelo poder de divulgação que a internet nos concede, expomos nossas ideias sobre qualquer coisa, sem muita preocupação quanto à familiaridade com o tema, ou com a substância e pertinência de nossos comentários. Além disso, gabamo-nos de um posicionamento “isento de preconceitos e imune a dogmas”.

Quanto a temas em voga e dogmas, por exemplo, hoje pontifica-se sobre Inteligência Artificial. Tema transdisciplinar que, longe de se limitar ao exclusivo âmbito da tecnologia, afeta ou ameaça praticamente todas as áreas do interesse humano. É inelutável que haja sempre quem se disponha a acrescentar algo a essa candente discussão, mesmo que o faça a partir de uma visão parcial e limitada do tema.

De minha parte, aproveitei para retomar alguns textos clássicos relacionados ao tema e à “cibernética”, área muito relacionada. Norbert Wiener foi quem cunhou o termo em seu livro de 1948, Cibernética, Controle de Comunicação no Animal e na Máquina, e voltou ao tema em outros livros.

Um deles, Cibernética e Sociedade, o uso humano de seres humanos, é voltado a leitores não técnicos e trata das implicações da cibernética sobre os humanos.

Nos parágrafos finais deste livreto há uma ponderação curiosa: Wiener afirma que “sem fé, não há ciência”. E esclarece que não está se trata de aspectos religiosos, mas de dogmas que todo o cientista aceita ao aventurar-se em descobrir alto. Afinal, afirmar que a “natureza segue leis gerais” é um dogma impossível de provar.

Num mundo onde, à exemplo de Alice no País das Maravilhas, bolas se transformassem em ouriços, tacos em pernas de flamingos, e a Rainha de Copas mudasse constantemente as regras do jogo, nada poderia ser tratado pela ciência. É necessário assumir o dogma de que há leis estáveis sendo seguidas para, a partir daí, buscar o seu eventual desvelamento.

G. K. Chesterton, um frasista ímpar, divide os homens em duas categorias: os que conscientemente admitem dogmas, e os que os também os admitem, porém inconscientemente...

Estes, do segundo tipo, são particularmente numerosos em tempos de Internet e redes sociais. Não há discussão ou fato que os iniba de darem sua opinião, enfática e ruidosa, e que acaba por reforçar em muitos outros o que neles poderia jazer insuspeitado. São os principais motores da onda de ultracrepidianismo que assola a rede. Mas, afinal, quem nunca?...


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G. K. Chesterton: "In truth there are only two kinds of people, those who accept dogmas and know it, and those who accept dogmas and don't know it."
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Norbert Wiener:  "The Human Use Of Human Beings: Cybernetics And Society"
https://archive.org/stream/NorbertWienerHumanUseOfHumanBeings/NorbertWienerHuman_use_of_human_beings_djvu.txt

"I have said that science is impossible without faith. By this I do not mean that the faith on which science depends is religious in nature or involves the acceptance of any of the dogmas of the ordinary religious creeds, yet without faith that nature is subject to law there can be no science. No amount of demonstration can ever prove that nature is subject to law. For all we know, the world from the next moment on might be something like the croquet game in Alice in Wonder- land, where the balls are hedgehogs which walk off, the hoops are soldiers who march to other parts of the field, and the rules of the game are made from instant to instant by the arbitrary decree of the Queen. It is to a world like this that the scientist must conform in totalitarian countries, no matter whether they be those of the right or of the left. The Marxist Queen is very arbitrary indeed, and the fascist Queen is a good match for her. What I say about the need for faith in science is equally true for a purely causative world and for one in which probability rules. No amount of purely objective and disconnected observation can show that probability is a valid notion. To put the same statement in other language, the laws of induction in logic can- not be established inductively. Inductive logic, the logic of Bacon, is rather something on which we can act than something which we can prove, and to act on it is a supreme assertion of faith. It is in this connection that I must say that Einstein's dictum concerning the directness of God is itself a statement of faith. Science is a way of life which can only flourish when men are free to have faith. A faith which we follow upon orders imposed from outside is no faith, and a community which puts its dependence upon such a pseudo-faith is ultimately bound to ruin itself because of the paralysis which the lack of a healthily growing science imposes upon it."
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https://www.brainpickings.org/2018/06/15/the-human-use-of-human-beings-norbert-wiener/






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