terça-feira, 15 de setembro de 2020

Presságios e alertas

A Lei Geral de Proteção de Dados está sendo ativada nos próximos dias. É um bom augúrio; afinal, riscos à privacidade já estavam descritos em Lucas, 12:3 “...o que vocês disseram nas trevas será ouvido à luz do dia, e o que vocês sussurraram aos ouvidos dentro de casa, será proclamado dos telhados”. 

Há obras que assombravam nosso futuro, como 1984, Admirável Mundo Novo, Revolução dos Bichos e outras, mas hoje o que pode ser mais preocupante é a “normalização” de alguns dos seus conceitos. Talvez elas estivessem mais próximas da verdade do que da ficção. Quando, por exemplo, começou a moda de programas na TV que exibiam o dia a dia de participantes fechados em ambiente controlado, estilo “grande irmão”, imaginou-se que poderia haver uma reação a esse monitoramento. Ele, além de monitorar os atos dos enclausurados, estimulava hipóteses sobre o que eles estariam ideando. Ocorreu o contrário: tornaram-se campeões de audiência. Os riscos à privacidade, ao invés de escandalizar o cidadão, passaram a ser um atrativo. Como diria o Barão de Itararé, pode ser um sintoma de que “há algo no ar, além dos aviões de carreira”… 

Outro paralelo com 1984 é a tendência crescente a se interferir na linguagem diária. Sob diversos pretextos tenta-se mexer na língua que usamos, não da forma natural, dinâmica, com que as línguas mudam, mas compelindo “para o bem geral”. Vem à mente a “novilíngua” de Orwell. Não apenas pensamentos se expressam por linguagem, mas a própria linguagem modela os pensamentos e, se queremos impedir um pensamento “inadequado”, devemos atuar sobre a linguagem para que esse pensamento não possa sequer ser produzido. “… o objetivo principal da novilígua é estreitar o campo do pensamento. Assim conseguiremos tornar o “crime de pensamento” praticamente impossível, porque não haverá palavras para expressá-lo”… Eliminar as complexidades e sutilezas da linguagem acaba por estropiar a própria capacidade humana de raciocinar. 

A conexão com a Internet não está distante. Basta associar o poder de aplicativos que instalamos, aos montes e sem muito cuidado, em nossos dispositivos. Eles tem a capacidade potencial de vasculhar não apenas o que fazemos enquanto os utilizamos, mas nossas ações em geral. Acresça-se a eles a inteligância artificial!. Não se trata, claro, de posicionar-se contra as facilidades e o conforto que trazem, mas alertar para uma análise crítica e vigilante sobre possíveis “efeitos colaterais”. Com o teletrabalho que a Covid pôs em tanta evidência, há no mercado diversos aplicativos que se destinam a “controlar a produtividade” dos funcionários que trabalham de casa. Afinal, como saber quantas horas, de fato, dedicaram à jornada remota? E alguns dos aplicativos não se restringem apenas a tentar definir o tempo de início e término da atividade, mas conseguem detectar se estamos nos “distraindo” com outras atividades locais da rede. Vários permitem, por exemplo, que se tire, de tempos em tempos, cópia da tela de nosso dispositivo, e sequer informam disso. Pode haver um “grande irmão” silenciosamente instalado no computador que usamos. Com todo um elenco de álibis para esse tipo de vigilantismo, uma clara violação de direitos, poderia passar despercebida, em segundo plano 

A funesta previsão orwelliana segue: “cada livro será reescrito, cada pintura refeita, cada estátua e rua renomeadas e cada data alterada”. Em Oceania, alterar o passado é uma possibilidade. “Quem controla o passado controla o futuro, e quem controla o presente, controla o passado”.

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Margaret Atwood compara 1984 e Admirável Mundo Novo em

In the latter half of the twentieth century, two visionary books cast their shadows over our futures.
One was George Orwell's 1949 novel, Nineteen Eighty-Four, with its horrific vision of a brutal mind-controlling totalitarian state - a book that gave us Big Brother, and Thoughtcrime and Newspeak and the Memory Hole and the torture palace called the Ministry of Love, and the discouraging spectacle of a boot grinding into the human face forever.
The other was Aldous Huxley's Brave New World (1932), which proposed a different and Softer Form of Totalitarianism - one of conformity achieved through engineered, bottle-grown babies and Hypnotic Persuasion rather than through brutality; of boundless consumption that keeps the wheels of production turning and of officially enforced promiscuity that does away with sexual frustration; of a pre-ordained caste system ranging from a highly intelligent managerial class to a subgroup of dimwitted serfs programmed to love their menial work; and of Soma, a drug that confers instant bliss with no side effects.
Which template would win, we wondered?
...Would it be possible for both of these futures - the hard and the soft - to exist a the same time, in the same place? And what would that be like?
...Thoughtcrime and the boot grinding into the human face could not be got rid of so easily, after all. The Ministry of Love is back with us...
...those of us still pottering along on the earthly plane - and thus still able to read books - are left with Brave New World. How does it stand up, seventy-five years later? And how close have we come, in real life, to the society of vapid consumers, idle pleasure-seekers, inner-space trippers, and programmed conformists that it presents?
(excerpts from Margaret Atwood's introduction (2007) to Aldous Huxley's Brave New World.)

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Daniel Oliveira, "1984 Privatizado", em 
https://expresso.pt/opiniao/2020-08-31-1984-privatizado

"...  Com a tecnologia existente, o céu é o limite. Aplicações como TimeDoctor, Hubstaff, Timing, ManicTime, ActivTrak, Teramind, WorkExaminer, Sapience, OccupEye, Softwatch, Toggl ou Harvest podem ser instaladas nos computadores (às vezes sem que o trabalhador tenha conhecimento disso)"

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Novilíngua, George Orwell, https://www.quotetab.com/quote/by-george-orwell/it-was-intended-that-when-newspeak-had-been-adopted-once-and-for-all-and-oldspeak


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A bandeira de Oceania, 1984 em:
https://en.wikipedia.org/wiki/Ingsoc


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http://arquivopessoa.net/textos/996

Alberto Caeiro "Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia"

Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas—a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

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