terça-feira, 8 de dezembro de 2020

A cruz e a caldeirinha

Estamos perto de mais um Natal, e esse em plena pandemia. O domingo que passou é o dia de São Nicolau, bispo de Mira que, segundo a tradição, distribuía escondido presentes aos pobres. É a origem de Santa Claus, o nosso Papai Noel. Nos usos cristãos é comum que se monte a árvore de Natal neste dia. Hoje isso envolve novo ritual, de máscaras para as conversas a uma prudente distância, e álcool no trato dos enfeites… Será um alívio quando pudermos voltar a convívio mais livre!

Após tão longo enfrentamento da Covid-19, passamos a ser mais o objeto do que o sujeito dessa questão. Seguimos o que nos é recomendado pelos meios, buscando manter a cautela. Afinal, mesmo que algumas medidas pareçam um pouco exageradas, é sempre melhor previnir. Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal.

Instam-nos a ficar em casa e, graças à tecnologia, podemos sim trabalhar do lar, consultar um médico sem sair da poltrona, ver os filhos estudando em frente à tela do computador. E, precisando de algo, sempre podemos comprar pela Internet: sem sair da mesma poltrona, visitamos sítios que apresentam tentadoras ofertas, escolhemos com critério algo que nos possa ser útil ou, ao menos, que possa nos ajudar a quebrar a tensão do recolhimento, melhorar o ânimo e diminuir a angústia. Ah, também uma pizza ou um lanche são encomendáveis pela rede. E os restaurantes que frequentávamos, hoje fazem “delivery” (outrora isso era chamado de “entrega a domicílio”, mas…). Remédios e bálsamos também podem ser comprados remotamente. Em suma, o “ficar em casa” parece simples e seguro de fazer.

A tecnologia nos dá o ferramental suficiente para nossas ações remotas, mas há ainda um componente físico que permanece: não se prescinde ainda do carteiro, do entregador, do “moto-boy” (ou “moto-girl”), para receber as mercadorias. Parece que esses humanos, ao contrário de nós, precisam sair por aí o tempo todo. E, mais que sair, enfrentar trânsito, manusear pacotes, interagir com muitas pessoas durante as infindáveis entregas. Certamente eles não são imunes à pandemia mas, ao que parece, também não são alvo das campanhas de pregam a cautela. Se, por de um lado, ficamos em casa para nossa própria proteção e a dos demais, isso é possível se houver uma outra parcela que arrosta o perigo para nos entregar o que adquirimos. Um incômodo desequilíbrio que escolhemos não analisar...

Examinemos isso por um outro ângulo: essa atividade de risco poderá ser suprida com a Inteligência Artificial, que promete eliminar trabalhos mecânicos. A entrega com drones auto-orientáveis parece muito próxima da realidade. Grandes companhias, cuja automação e abrangência global já gerou um sensível desmonte de empresas locais, além da supressão de empregos, estão a um passo de conseguir fazer a distribuição de produtos sem participação humana. Aliás há demonstrações impressionantes de voo seguro, complexo e altamente coordenado. Enxames de mini-drones fazem-se, até, de “luzes natalinas”.

Se parece muito humano e adequado diminuir os riscos a que estão expostos os que nos trazem produtos, especialmente em tempos de pandemia, também é certo que sua substituição por drones será irreversível e extinguirá inúmeros postos de trabalho. Sabemos que a tecnologia tem o poder de fazer cada vez mais, mas há que se cuidar de “onde, como e quando” ela entra em cena. Na abertura, livro II, de “Da natureza da coisas”, Lucrécio (século I, AC) passa um recado duro: é suave acompanhar um embate de alguém com o mar e os ventos, desde que estejamos vendo isso da terra firme e segura. “Suavi mari magno...”De Rerum Natura - Livro II - Tito Lucretius Carus


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6 de dezembro - São Nicolau de Mira
https://pt.wikipedia.org/wiki/Nicolau_de_Mira

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https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/17845/1/De%20Rerum%20Natura%20-%20Livro%20II.pdf

Suave, mari magno turbantibus aequora ventis
e terra magnum alterius spectare laborem;
non quia vexari quemquamst iucunda voluptas,
sed quibus ipse malis careas quia cernere suave est.
suave etiam belli certamina magna tueri
per campos instructa tua sine parte pericli;

É suave, grande mar com ventos que perturbam as superfícies,
desde a terra observar grande desgraça do outro;
não porque atormentar quem quer que seja é agradável prazer,
mas porque suave é ver males de que tu mesmo estás a salvo.
É suave também olhar grandes combates da guerra
dispostos pelos campos, sem parte tua de perigo.

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Suave mari magno, poema de Machado de Assim em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2097

SUAVE MARI MAGNO 

Lembra-me que, em certo dia, 
Na rua, ao sol de verão, 
Envenenado morria 
Um pobre cão. 

Arfava, espumava e ria, 
De um riso espúrio e bufão, 
Ventre e pernas sacudia 
 Na convulsão. 

Nenhum, nenhum curioso 
Passava, sem se deter, 
Silencioso, 

Junto ao cão que ia morrer, 
Como se lhe desse gozo 
Ver padecer. 


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https://link.estadao.com.br/noticias/geral,a-cruz-e-a-caldeirinha,70003543451





 

2 comentários:

Arthur Aires disse...

Você foi citado aqui.

Obrigado pela contribuição com a internet brasileira.

demi disse...

Arthur, obrigado pela referẽncia à citação. Abraço