terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Os Sextos Mandamentos

Se o decálogo cristão estipula, no seu sexto mandamento, que não se deve pecar contra a castidade, no decálogo para a Internet, o CGI (Comitê Gestor da Internet no Brasil) afirma a neutralidade no acesso à Internet: “filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento”.

Essa neutralidade da rede, que sempre foi estritamente respeitada no Brasil e na grande maioria dos países, fez com que todos saudassem a oportunidade única que se abria, não apenas para que indivíduos pudessem dialogar eletronicamente, mas também para o acesso seguro e sem limites geográficos aos mais variados materias. Cite-se o deslumbramento que foi poder acessar, já em 1994 e com Mosaic, o navegador de então, a biblioteca do Vaticano e o museu do Louvre. Eram as primeiras obras digitalizadas e colocadas à disposição via rede.

Também é importante reconhecer que, comparativamente ao que tínhamos em 1994, o cenário hoje é muito mais complexo e, de alguma forma bem mais concentrado; mas o espírito fundador inicial precisa ser mantido. É importante que cada um continue livre para expressar-se e para ir onde queira via rede. Quem abusar da liberdade estará sujeito ao que rezam as leis nacionais. A liberdade é também, afinal, a liberdade para praticar eventuais abusos, desde que, claro, sempre se responda por eles: ao exercício da liberdade prende-se o ônus da correspondente responsabilidade. Impedir alguém, a priori, de exercer seu direito à expressão, baseando-se em considerações sobre riscos que tal manifestação traria, certamente parece abusivo. É muito mais saudável obter-se um processo legal rápido, que determine se e qual violação ocorreu, submetendo o possível violador ao peso da lei.

A Internet é riquíssima em conteúdos de valor muito variado, e em ferramentas que permitem nossa expressão. A neutralidade garante que possamos acessar tudo que há, independentemente de onde se localiza. Quanto às ferramentas, parece cada vez mais importante criar uma taxonomia sobre a sua ação. Que interferência elas podem ter no conteúdo que publicamos e naquele que nos chega automaticamente? Somente após a identificação dos papéis que diferentes atores na rede têm, desde o usuário final ao conjunto de intermediários, poderemos concluir pela responsabilização adequada de cada um, face a um conteúdo ilegal ou abusivo.

Pedindo licença para forçar um pouco a analogia, haveria um paralelo entre os sextos mandamentos citados, que podemos arriscar aqui. Talvez “manter a neutralidade da rede” possa ser lido como “preservar a castidade da rede”, mantendo-a pura, sem deformações e obstáculos, por mais que se aleguem propósitos nobres.

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O decálogo do CGI:
https://cgi.br/resolucoes/documento/2009/003/

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Referência sobre acesso à biblioteca do Vaticano em 1994
https://super.abril.com.br/tecnologia/internet-ligacao-direta-com-o-mundo/

A Visit To The Vatican Library Via The Internet
https://www.bloomberg.com/news/articles/1994-07-03/a-visit-to-the-vatican-library-via-the-internet

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Neutralidade da Rede
https://pt.wikipedia.org/wiki/Neutralidade_da_rede




terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Espelho meu

Internet é tema em diversos fóruns. Assuntos técnicos ligados à evolução da rede discutem-se nas reuniões do IETF, força-tarefa de engenharia da rede, enquanto a administração de recursos que precisam de coordenação central como nomes de domínio, distribuição de números IP, pertence à constelação que orbita ao redor da ICANN, a entidade para alocações de nomes e números. Com a expansão rápida da rede ficou logo clara a necessidade de um local para o debate amplo dos outros temas importantes que extrapolam os aspectos técnicos ou administrativos. Surgiu a ideia de reuniões anuais, totalmente abertas, multissetoriais, e com espaço para discussão de qualquer tema que tangenciasse a Internet: o IGF - Fórum Global da Internet. O primeiro IGF foi em Atenas em 2006, seguindo-se o do Rio de Janeiro, em 2007 – aliás o Brasil é o único que já sediou dois IGF, pois houve também o de João Pessoa em 2015.


No IGF de 2010, em Vilna, Lituânia, discutiam-se riscos que a Internet podia trazer aos usuários, dada a quantidade de crescente de ataques e práticas maliciosas que se observava. No painel, entre outros, Vint Cerf, indiscutível pioneiro da rede e um dos criadores do TCP/IP, o protocolo que deu voo à Internet. Vale a pena rever a análise sucinta que ele fez, e continua válida: “tecnologias são ferramentas que refletem os que as usam. A Internet é um espelho da sociedade e, se você não gosta do que lá vê, não quebre o espelho, mas tente mudar o nele está refletido”. Muitas vezes a solução que nos parece mais à mão é “quebrar o espelho”, ou impedir o acesso a ele; buscar formas de obliterar o que não queremos ver. É crítico não ceder a essas tentações, sob pena de se perderem valores muito maiores.

Há, porém, outros impactos possíveis que um espelho pode causar no comportamento humano, e são tema de contos infantís, fábulas e mitos. Machado de Assis tem inclusive um conto curto, “O Espelho”, onde o protagonista vale-se do reflexo para preservar sua auto-estima. Talvez o contraponto mais interessante seja o do mito de Narciso. Ora, ao abaixar-se para beber água numa fonte, Narciso viu um belo rosto. Sem notar que era seu próprio reflexo, ele apaixonou-se perdidamente pela imagem refletida, e aquela inatingível beleza inatingível o consumiu.

A Internet, sem dúvida, reflete o mundo que temos mas, em particular, também reflete nossas próprias ações e palavras. O retorno emocional que recebemos ao participarmos ativamente na rede pode nos tornar embriagados pela imagem que queremos ou imaginamos projetar. O ego, reforçado e alimentado pela ressonância que obtem, torna-se cada vez mais exigente de ação, e cada vez menos tímido em falar sobre qualquer tema. Afinal, deve ser enfeitiçador ouvir a própria voz encobrindo outras vozes dissonantes. Caetano Veloso, em Sampa, deixa isso maravilhosamente registrado: “Narciso acha feio o que não é espelho”...

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IGF 5, em 2010, Vilna, Lituânia:

https://www.elon.edu/u/imagining/event-coverage/global-igf/igf-2010/youth-core-internet-values/


“The Internet is a mirror of society,” he said, “and if you don’t like what you see in the mirror, don’t break the mirror, you have to do something about what’s reflected in the mirror. Some of our fellow inhabitants on planet Earth don’t necessarily have our best interests at heart",

https://www.diplomacy.edu/diplonews/issue93/
The Internet is a mirror of society,” Google’s vice president Vinton Cerf explained during an hour-long private meeting with participants and tutors of DiploFoundation’s Internet Governance Capacity Building Programme. “If you look at the mirror and you don’t like what you see, you don’t fix the mirror; you try to fix yourself,”

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O mito de Narciso / espelhos

https://en.wikipedia.org/wiki/Narcissus_(mythology)

https://www.todamateria.com.br/o-mito-de-narciso/

https://pt.khanacademy.org/science/3-ano/materia-e-energia-luz/fenmenos-luminosos/a/historia-dos-espelhos

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O conto "O Espelho", de Machado de Assis

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000240.pdf