terça-feira, 29 de março de 2022

Neurodireitos

A convergência e a integração cada vez mais rápida e intensa de diferentes linhas de desenvolvimento de tecnologias, digitais, biológicas e de comportamento social, impõe que a defesa de conceitos deva se basear argumentos principiológicos, não sucetíveis a pressões do momento. Exemplo disso na área digital são as ações de preservação do ambiente Internet básico, visando à inclusão de todos e com conectividade significativa que permita acesso à informação e troca de experiências. São características inerentes a proteção dos dados pessoais e da privacidade. Outra conclusão é a necessidade de apoio firme e constante a todos possam lançar mão de criptografia livremente em suas mensagens na rede.

Preservado esse nível básico, vem a discussão sobre contruções várias, cujos impactos devem ser examinados, e que podem representar reais ameaças a direitos fundamentais. Algumas das palavras-chave em voga, que despertam nossa atenção e análise, referem-se à “Internet das coisas”, à crescente presença da inteligência artificial e, numa vertente talvez menos visível, à IoB, a “Internet dos corpos”. Se já é claro que a Internet das coisas pode trazer preocupações, especificamente quanto à privacidade, que devem sempre ser levadas em conta, o mesmo ocorre com inteligência artificial, haja vista as discussões sobre seus eventuais viéses, reconhecimento facial, detecção de emoções e previsão dos comportamentos individuais. O terceiro exemplo citado, a Internet dos corpos, não ganhou ainda maior visibilidade, mas merece atenção. Temos um grande desenvolvimento em nanotecnologia, que pode ajudar em medições, diagnósticos e tratamentos, e há cada vez mais atuadores digitais que se integram ao nosso corpo, externa ou internamente, ajudando no combate às suas disfunções. É importante constatar que esses equipamentos acabarão por ser controlados também através de conexões à Internet. A primeira preocupação óbvia é de segurança: imagine-se alguém sequestrando injetores de insulina e exigindo resgate em troca de não alterar seu funcionamento... Certamente um pesadelo que não gostaríamos de constatar.

A tendência do mercado, em concentração de ações na área da saúde via dispositivos, está em franca expansão. Bastando acompanhar a movimentação recente de grandes companhias de tecnologia. Porém há coisas ainda mais insidiosas: imagine-se que fármacos e dispositivos conectados possam atuar em nosso cérebro, tornando-nos potenciais zumbis. Esse tipo de ameaça vem disparando há alguns anos a discussão sobre “neurodireitos”, em que valores como direitos à nossa identidade pessoal, sanidade mental, autodeterminação e personalidade deveriam ser preservador em lei. Há uma recomendação da OEA sobre isso e, inclusive, um novo item na constituição do Chile, há um ano, prevê a proteção dos “neurodireitos”. Não é algo que possa ser tratado levianamente. Uma discussão ampla e pública sobre o tema deveria começar antes que surjam propostas açodadas de legislação, ou que danos já tenham sido produzidos.

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Livro garatuito sobre Internet-dos-corpos:
https://www.rand.org/pubs/research_reports/RR3226.html



https://www.ibericonnect.blog/2022/02/neurodireitos-o-exemplo-do-chile-e-a-regulacao-das-neurotecnologias/

https://opiceblum.com.br/chile-aprova-emenda-a-constituicao-para-proteger-neurodireitos/

https://www.portaldaprivacidade.com.br/chile-aprova-emenda-a-constituicao-para-proteger-neurodireitos/

https://en.unesco.org/courier/2022-1/rafael-yuste-lets-act-its-too-late

https://neurorightsfoundation.org/

https://voicesofvr.com/994-neuro-rights-initiative-a-human-rights-approach-to-preserving-mental-privacy-with-rafael-yuste/


https://en.wikipedia.org/wiki/Rafael_Yuste

https://www.searchingmedical.com/media/138/what-does-consumer-neurotech-innovation-mean-for-the-medical-device-industry

https://www.rand.org/pubs/research_reports/RR3226.html


terça-feira, 15 de março de 2022

Uma Internet

Várias organizações relevantes e ligadas à rede tem entre suas metas a luta pela preservação de uma Internet única. Como exemplo, a ICANN, instituição que cuida da raíz de nomes da rede, em 2013 assumiu o lema “Um mundo, uma Internet”, e publicou um gráfico em que descreve os diferentes níveis da rede e as diversas ações dos operadores.

O que então seria a tal “Internet única”? Como infra-estrutura física e lógica, a rede sustenta-se num conjunto de protocolos e de tecnologias desenvolvidos em comum acordo pela comunidade, aceitos e implementados pelas redes autônomas que voluntariamente se unem formando a Internet global. Esse mosaico de redes cooperantes constitui-se num ambiente de comunicação onde também crescem livremente aplicações e plataformas, que aceitam funcionar segundo os protocolos básicos. É importante assinalar que essas plataformas oferecidas ao público não se confundem com a Internet em si, e que seus méritos, riscos ou mazelas devem ser considerados especificamente. A infra-estrutura e o ambiente onde surgem as tais aplicações devem ser mantidos neutros e ubíquos, sem fronteiras, acessíveis a todos. Esse é o conceito de “neutralidade da rede”. Já se alguém reclama de desinformação, ou de mentiras na rede, isso seria tão culpa da Internet básica quanto uma ofensa ou uma falsidade é culpa da “linguagem humana”. A comunicação, o acesso a ambiente de diálogo, devem ser preservados para todos, mesmo que, como ferramentas, possam servir também a fins espúrios. Aplicações e plataformas, por outro lado, podem apresentar viéses e, podem tanto obter sucesso na comunidade, como serem abandonadas e se extinguirem. Sucesso ou morte de aplicações não causam dano à internet em si.

Em tempos complexos com os de hoje, surgem propostas que atentam contra a Internet única. Praza aos céus que não prosperem, como aliás bem tem argumentado muitas das organizações históricas da Internet. Desconectar segmentos da rede ou deformar suas características de resiliência e de redundância traria danos irreparáveis ao sonho de manter o mundo conectado e acessível a cada ser humano… O antídoto à desinformação é mais informação, não menos. E, pior ainda, uma classificação subjetiva e controlada por algumas plataformas do que seria a “informação verdadeira e útil” levará a instrumentalizar o uso da infraestrutura para fins políticos ou, pior, militares. Frequentes “chamados à ação” que visam a desestabilizar trechos da rede, procuram recrutar voluntários (ou seriam mercenários?) para ações de sabotagem à infraestrutura em si, sem que se levem em conta os estragos que isso pode trazer a segmentos da rede e seus usuários.

Podemos e devemos escolher o que acessar, no que acreditar e em que plataforma eventualmente queremos fazer parte, mas, para podermos exercitar esse direito, precisamos que a conectividade, a acessibilidade e a livre inovação sobre a camada básica da rede sejam estritamente preservadas. Um mundo, uma Internet!

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Sobre "uma Internet única":
ISOC: https://www.internetsociety.org/blog/2022/03/why-the-world-must-resist-calls-to-undermine-the-internet/

ICANN: https://www.icann.org/en/system/files/files/ecosystem-06feb13-en.pdf
https://www.icann.org/en/system/files/files/ecosystem-06feb13-en.pdf

ccNSO: https://ccnso.icann.org/sites/default/files/field-attached/council-statement-04mar22-en.pdf

RIPE-NCC: https://www.ripe.net/publications/news/announcements/ripe-ncc-executive-board-resolution-on-provision-of-critical-services
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terça-feira, 1 de março de 2022

Evoé Internet!

Terça-gorda de um ano atípico numa época difícil. É Carnaval. Os três dias a que a imprensa se referia como “triduo momesco”. Chaves da cidade entregues ao rei Momo, foliões nas ruas, e o deprimente espetáculo da “resistência carnavalesca”, onde os que se mantivessem pulando por mais tempo, vigiados pela TV, receberiam um prêmio. Lembra-me o livro “Mas não se matam cavalos?” que pungentemente tratava do tema. Evoé!, invocação hoje com bastante cheiro de naftalina, também remonta aos velhos carnavais.

O carnaval representa a oportunidade de o indivíduo se dissolver na multidão, liberto de amarras e dos limites. Evoé! O chamado ao dionisíaco que nos espreita lá do fundo e anseia sair. Essa necessidade também pode estar sendo suprida via Internet, mas com resultados diferentes, talvez inesperados. O indivíduo pode dissolver-se facilmente na multidão virtual das redes que o abraçam e, dentro delas, soltar sua voz como tantos outros. Sendo carnaval é ainda mais válido usar-se máscara, travestir-se do que se queira, e deixar-se levar por qualquer euforia que esteja à mão, sem muito pensar ou escolher. Aliás, na Internet, como na Covid, é usual que se usem máscaras, claro que com diferente objetivo.

As raízes do atual Carnaval estão na Idade Média, relacionadas ao início da Quaresma: ele representa a última oportunidade de saciar-mo-nos de carne, antes do jejum que segue. Mas há conexões mais bem mais antigas, que remontam aos ritos dionisíacos. Beber e dançar até atingir o êxtase da liberação, e assim participar de orgias eram características que, em formas atenuadas, ainda se reconhecem. Mas as celebrações iam além. Nos momentos de maior excitação, as bacantes, mulheres consagradas aos mistérios de Dioniso/Baco, deveriam estraçalhar ritualisticamente, com as próprias mãos nuas, uma vítima escolhida. O avanço da civilização, já mesmo na Grécia antiga, proscreveu esse bárbaro costume e, certamente, não veremos retalhamentos nos festejos carnavalescos. A Internet, entretanto, sempre surpreender e, seja carnaval ou não, pode ignorar freios que a civilização impôs a comportamentos. Sem sangue, linchamentos virtuais tendem a ser cada vez menos raros. O carnaval medieval, do entrudo e das brincadeiras licenciosas, pode acabar dando lugar, de novo, a modernas bacantes de Dioniso. Nos casos historicos, quando a multidão agia para linchar alguém, necessitava-se de um pretexto real ou armado, e de um “puxador do samba”, aquele que atirará a “primeira pedra”. Esse deflagrador do processo carregaria em sua consciência o peso de ter gerado o apedrejamento, e isso funcionava como uma barreira de inibição. Com as redes sociais e o tumulto que nelas impera, fica praticamente impessoal atirar a primeira pedra e sumir na multidão. A responsabilização estará diluida e a barreria de responsabilidade eliminada. As bacantes virtuais poderão assim começar o estraçalhamento sem muitas culpas a carregar. Já a quarta-feira de cinzas não parece ter mantido seu sentido...

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Sobre a "primeira pedra:
em: "Eu vi Satanás cair como um relâmpago", de René Girard: 

"Longe de ser puramente retórica, a primeira pedra é de­cisiva por ser a mais difícil de lançar. Mas por que será ela tão difícil de lançar? Porque é a única que não tem modelo. <...>
Quanto mais aqueles que desejam lançar a primeira pe­dra percebem a responsabilidade que assumiriam ao lançá-la, mais chances existem para que a deixem cair de suas mãos."

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http://institutojunguianorj.org.br/viver-dionisio-uma-experiencia-arquetipica/

https://www.dicionarioetimologico.com.br/evoe/

https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/2083400

https://pt.wikipedia.org/wiki/Baco

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"O Sagrado e o Profano: A Essência das religiões", de Mircea Eliade

Dioniso: https://blog.grandcru.com.br/carnaval-e-vinho-a-historia-da-folia-e-do-deus-dionisio/




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